Olhares Interseccionais

Quem vai dizer o nome deles? O caso Alexandre, Lucas e Fernando, os meninos de Belford Roxo

Quem vai dizer o nome deles? O caso Alexandre, Lucas e Fernando, os meninos de Belford Roxo.

10/5/2021

"Meu filho, volte pra casa

Cabô

Ô Neide, cadê menino?

[...]

Quem vai pagar a conta?
Quem vai contar os corpos?
Quem vai catar os cacos dos corações?
Quem vai apagar as recordações?
Quem vai secar cada gota
De suor e sangue
Cada gota de suor e sangue
Cabô"

Luedji Luna1

Rememoro a cena final do filme Ó Paí Ó2, em que duas crianças, Cosme e Damião, filhos de dona Joana, mulher negra, cristã, dona do cortiço onde vive a maioria dos personagens da trama, desaparecem de casa em pleno festejo de carnaval. A mãe, que já não se contenta em somente clamar a Deus, implora à Mãe Raimunda, sua vizinha candomblecista, que faça um jogo de búzios para ela. Incrédula, a vizinha atende ao pedido e, tomada pelo desespero do que estava sendo visto nos búzios, assusta dona Joana, que diz não querer ir em frente na missão da descoberta do paradeiro das crianças pelos búzios.

Sr. Gerônimo, o comerciante da redondeza que contrata os serviços de segurança particular de um policial militar, sabe o que aconteceu aos meninos. Eles foram mortos pelo seu funcionário que alegou ter "limpado a área". Logo, Iolanda, a travesti, invade a casa da Ialorixá para dar a fatídica notícia sobre a morte a dona Joana... “Seus filhos”. Nesse momento, dona Joana segura o vestido branco longo e corre, aos prantos. Ao fundo, ouve-se o lamento entoado por Ninha3: "Jesus, desde menino, é palestino, é palestino, ralé é.4"

A cena é forte, emocionante e corriqueira. As mães pretas estão em posições marcadas por violências e violações. Elas sofrem a dor da perda dos filhos, seja enterrando-os ou procurando-os. Percorrendo a música cantada durante a cena final do filme, elevo os meus pensamentos à ralé. Segundo o dicionário, ralé é a "denominação ao conjunto de pessoas que pertencem àquela que é vista como a classe social mais baixa. Animal que é habitualmente presa de uma ave de rapina".5 Não é necessário muito esforço para visualizarmos, no contexto da sociedade brasileira, quais corpos estão situados na ralé e quais autoridades são as aves de rapina.

27 de dezembro de 2020, tarde de inverno no Rio de Janeiro. Os tempos estão incertos, a pandemia da Covid-19 trouxe uma nova variante e os corpos seguem empilhados pelos hospitais e cemitérios. Nas comunidades periféricas, mesmo antes da confirmação do primeiro caso, a população já estava exposta às variantes do vírus da fome, do desemprego, dos desaparecimentos forçados e da morte.

Naquela tarde fria de domingo, as câmeras de segurança filmaram 3 crianças negras, andando sem camisa, conversando inocentemente pelas ruas da Comunidade do Belford Roxo. Essas foram as últimas imagens de Fernando Henrique Soares, 11 anos, Lucas Matheus Manhães Silva, 8 anos e Alexandre da Silva, 10 anos. Desde então, eles estão desaparecidos e o que persiste até o momento é o silêncio ensurdecedor das autoridades competentes.

"Meninos de Belford Roxo", essa é a expressão que os apresenta em todas as reportagens sobre o caso. A dimensão do sistema de justiça e os instrumentos midiáticos, corroboram a tese sobre os corpos que merecem atenção e os que devem ter perpetrada a invisibilidade. Neste caso, e em tantos outros em que as vítimas são negras, sejam crianças ou adultos, impera forte criminalização e estigmatização.

A forma pela qual Alexandre, Lucas e Fernando foram apresentados pela mídia, a partir das notícias que conformaram o caso na opinião pública, redundou no confisco da humanidade e cidadania dessas crianças. Isto porque, o destaque é para "os meninos de Belford Roxo", os nomes aparecem de forma tímida, escrito em letras menores. Bebendo da fonte de Ana Flauzina, destaco que "o racismo tem a desumanização como uma de suas marcas mais brutais. Por isso, sofrimento em carne negra não registra."6

De acordo com a mãe de Fernando Henrique, assim que perceberam o desaparecimento das crianças, compareceram à Delegacia com o intuito de registrar a ocorrência:  "Eu vim na polícia. Eu e as outras mães. [...] Eles falaram para gente ir para casa, de repente eles estavam na casa de coleguinha. Foi isso que eles falaram, que a gente podia ir para casa e ficar tranquila, que as crianças iam aparecer".7

Informação que vai de encontro ao que reza a lei 11.259/2005, que acrescentou o § 2º ao art. 208 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Além de determinar investigação imediata em caso de desaparecimento de crianças e adolescentes, após notificação aos órgãos competentes, obriga a comunicação do fato aos portos, aeroportos, Polícia Rodoviária e companhias de transporte interestaduais e internacionais, fornecendo-lhes todos os dados necessários à identificação do desaparecido8.

Mais de 130 dias em que as mães e familiares não têm notícias, não sabem se eles comem, dormem, sentem frio ou ainda respiram. Cabe pedir música no Fantástico? Se a resposta for positiva, pedirei a Elza Soares para dizer qual a carne mais barata do mercado. Muito provavelmente, Fernando, Lucas e Alexandre serão lembrados.

E, por falar em Fantástico, eles mereceram apenas 0:43 segundos de atenção, em reportagem exibida no dia 3 de janeiro de 2021, 7 dias após o desaparecimento.9 Essa foi a chamada: "Parentes de meninos desaparecidos em Belford Roxo (RJ) fazem protesto neste domingo". Aqui, mais uma vez percebemos que a desumanização chega aos parentes, eles não têm identidade.

O caso segue investigado pela Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense, que, mesmo na posse das câmeras de segurança que filmaram as crianças, "não encontraram no vídeo o momento que os meninos são filmados." Mais de 2 meses depois, o Ministério Público solicitou o mesmo material e encontrou as imagens de Fernando, Lucas e Alexandre.10 Ainda assim, não ouve progresso nas investigações.

Dor, angústia, incerteza e expectativa, sentimentos evocados por familiares de pessoas desaparecidas e que trazem à tona dados extremamente perturbadores denunciando o silêncio das autoridades sobre o assunto. De acordo com o Anuário de Segurança Pública, somente em 2019, 79.275 pessoas desapareceram no Brasil, aproximadamente 217 pessoas por dia.11 Os números são avassaladores. As famílias ficam aprisionadas à imagem da indeterminação – se estão vivos, querem o abraço do reencontro, se morreram, querem ofertar a dignidade do sepultamento, viverem o luto real.

De acordo com dados estatísticos do Programa SOS Crianças Desaparecidas, da Fundação para a Infância e Adolescência (FIA), órgão vinculado à Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos do Rio de Janeiro, 72,66 % das crianças desaparecidas no Estado do Rio de Janeiro são pretos e pardos.12 Informação que contém muitos significados, o racismo também performa os desaparecimentos e a ausência de políticas efetivas por parte do aparato estatal.

É por isso que Vilma Piedade diz que o termo sororidade não contempla as dores das mulheres negras, em lugar disto nós enfrentamos processos de dororidade. Para a autora, "assim como o barulho contém o silêncio, Dororidade, pois, contém as sombras, o vazio, a ausência, a fala silenciada, a dor causada pelo Racismo. E essa Dor é Preta".13

Portanto, como forma de afirmar nossa identidade sempre assaltada, me valho de Lélia González para responder à pergunta que dá título a esse texto. Eu ouso dizer o nome deles, porque "negro tem que ter nome e sobrenome, senão os brancos arranjam um apelido… ao gosto deles".

__________

1 LUNA, Luedji. Cabô. Álbum: Um corpo no mundo. Gravadora Yb Music. Faixa 8.

2 Filme brasileiro, lançado no ano de 2007, baseado na peça de teatro de mesmo nome, dirigida por Márcio Meirelles e estrelado pelos atores e atrizes do Bando de Teatro Olodum.

3 Ninha é cantor e compositor, conhecido como O Gogó de Ouro da música baiana.

4 Canção "Jesus é palestino", composição de Carlinhos Brown, Gerônimo Santana e Alaim Tavares, interpretada por Ninha, ex. cantor da banda Timbalada.

5 Disponível aqui. Acesso em 03 mai. 2021.

6 FLAUZINA, Ana. A medida da dor: politizando o sofrimento negro. In: Encrespando - Anais do I Seminário Internacional: Refletindo a Década Internacional dos Afrodescendentes (ONU, 2015-2024) / FLAUZINA, Ana; PIRES, Tula (org.). - Brasília: Brado Negro, 2016, p. 65

7 Disponível aqui, acesso em 03 mai. de 2021.

8 Lei 11.259/2005. Disponível aqui. Acesso em 03 mai. de 2021.

9 Disponível aqui, acesso em 03 de mai. de 2021.

10 Disponível aqui.

11 Disponível aqui.

12 Estatística do SOS crianças desaparecidas. Disponível aqui, acesso em 05 mai. De 2021

 

13   PIEDADE, Vilma. Dororidade. São Paulo: Editora Nós, 2018, p. 16.

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Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

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Wanessa Mendes de Araújo juíza do Trabalho Substituta - TRT da 10ª região; mestra em Direito pelo programa de pós-graduação da UFMG; especialista em Direito e Processo Tributário pela Universidade de Fortaleza; graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará; membro da comissão de Tecnologia e Direitos Humanos da Anamatra. Foi professora em curso de graduação e pós-graduação em Direito.