"A moça mandou que ele parasse. Não estava vendo que ela era uma menina?
O homem parou. Levantou embrulhado no lençol.
Duzu viu então que a moça estava nua.
Ele pegou a carteira de dinheiro e deu uma nota para Duzu."
Conceição Evaristo1
"Você pode atirar em mim com as suas palavras,
Você pode me cortar com os seus olhos,
Você pode me matar com o seu ódio,
Mas ainda assim, como o ar, eu vou me levantar"
Maya Angelou
Aqui é uma terra de abusos.
Aqui é uma terra de muitos abusos e explorações sexuais.
Naquela rua, no calorzão do meio-dia, entre restos da feira, na pressa para almoçar, ao disfarçar um gole de cachaça, na meia hora que falta para retornar ao trabalho, a exploração sexual se consuma, abocanhando infâncias. Mãos imundas tocam em vaginas que sequer menstruaram. Cabelos grisalhos oferecem uma raspa de dinheiro, coisa de 30 reais, para crianças e adolescentes desacreditadas da inocência de ser feliz. Elas praticam sexo oral, anal e tudo que a covardia humana é capaz de produzir nessas situações de vulnerabilidade sociorracial.
Eles não são doentes psíquicos. São porta-vozes da exploração sexual em plena luz do dia, já foram informados que, dificilmente, serão punidos. Sabem que a desigualdade social é uma boa padroeira de sua vileza sexual, enquanto elas passam fome todos os dias, — crianças e adolescentes da idade de suas filhas, de seus filhos. Quase sempre negras, arrastadas para a prostituição sob a atuação de um destino que se deleita em escravizar sexualmente seus corpos. Sempre foi assim, desde os primeiros momentos da exploração colonial a que foi submetido o Brasil. A escravidão, tanto a antiga quanto contemporânea, suga o/a negros/as, transformando-se os/as em bagaços, imprestáveis para uma vida própria.
Muita gente ganha dinheiro com a exploração dessas crianças e adolescentes. Donos de motéis, de bares, restaurantes. Todos de olhos semicerrados. Ganham os omissos, os que acham que são menos criminosos, alguns policiais e conselheiros tutelares que se calam por pouca coisa que é colocada em seus bolsos.
Nem é só no Nordeste que isso acontece. O problema é multirregional. E o que linhas acima se descreveu é apenas uma cena de um repertório imenso de uma nação que se acostumou a ser sexualmente violentada, da filha da empregada doméstica, ainda criança, usada para desvirginar os filhos do patrão, — dando o atestado de virilidade que o patriarcado da classe média precisa, — ao garotinho de 11 anos, que, com supostos trejeitos femininos, tem o corpo possuído, em troca de balas e refrigerantes, pelo dono do mercadinho da esquina. E todo mundo do bairro sabe disso. Fico a pensar: será que o nosso vasto mundo, este mesmo que gira e é redondo, é filho de um lucrativo abuso sexual?
Exploração sexual infanto-juvenil é crime. No entanto, é muito difícil esperar que a criminalização desse tipo de conduta tenha resultados práticos em uma sociedade que, de modo geral, sacrifica sexualmente suas crianças e adolescentes para garantir o equilíbrio libidinal de seus lares. Não são só caminhoneiros que exploram sexualmente crianças e adolescentes. A fixação do assunto nesse estereótipo impede que outros agentes delitivos sejam visualizados na lucrativa rota da exploração sexual. Deve-se recordar que a classe média também sabe guardar e proteger, convenientemente, a identidade de seus exploradores sexuais.
Aliás, essa modalidade de exploração sexual continua intensamente ativa, porque essas crianças e adolescentes — aqueles pretinhos, aquelas pretinhas que ninguém quer para chamar de filha (o) — não são vistas como pessoas em peculiar condição de desenvolvimento (art. 6° do Estatuto da Criança e do Adolescente). São enxergadas como repositórios do infecto sêmen patriarcal que nos devora, desses muitos homens que, cinicamente, dirão: "— mas ela me seduziu, foi consentido, dei um agradozinho para ajudar na renda da família, nada demais, sabe como é isso né? — aquele ali é viadinho, ninguém liga, não fui o primeiro mesmo!".
Sob o nome de "Favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável", nosso Código Penal, no art. 218-B, penaliza a conduta de "submeter, induzir ou atrair à prostituição ou outra forma de exploração sexual alguém menor de 18 (dezoito) anos ou que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, facilitá-la, impedir ou dificultar que a abandone: Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos. [...] § 2ª Incorre nas mesmas penas: I - quem pratica conjunção carnal ou outro ato libidinoso com alguém menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos na situação descrita no caput deste artigo"
Como foi dito, apesar dessas condutas criminosas serem frequentes no contexto social brasileiro, dificilmente investigações criminais são conclusivas sobre essas práticas delitivas, e, quando são, é raro que haja um trâmite processual de duração razoável e com eventual condenação. No capítulo dos crimes contra a dignidade sexual, a figura típica do estupro é a que tende aparecer no sistema de justiça criminal e é também a imagem que consegue, ao menos inicialmente, causar um arrepio social, principalmente quando a mídia insiste nos detalhes do crime ou da omissão da Justiça quanto à resolução do caso judicial. Mas para por aí. Processos criminais sobre estupro, em regra, só andam quando o réu está preso. Fora dessa situação, ficam à espera de miraculosos mutirões do Judiciário.
Feita essa breve consideração, tem-se que, no cenário da exploração sexual infanto-juvenil, tema que nos ocupa, o que mais acontece é a notificação desses casos pelo canal Disque Direitos Humanos (Disque 100). Ainda assim, muitos casos permanecem no campo da subnotificação, do silêncio social sobre a prática delitiva. De acordo com dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, no ano de 2019 houve o registro, pelo Disque 100, de 17.000 ocorrências de exploração sexual infanto-juvenil2. Mas isto não significa que 17.000 investigações foram instauradas ou que 17.000 processos criminais foram finalizados. Em relação à dinâmica do Sistema de Justiça Criminal, são raros os dados quanto ao art. 218-B do CP. Não se sabe, ao exato, quantas denúncias são oferecidas, anualmente, pelo Ministério Público, quantas condenações ou absolvições acontecem nessas situações.
Pela perspectiva da saúde pública, de acordo com a análise epidemiológica realizada pelo Ministério da Saúde, anos 2011 a 2017, "foram notificados 184.524 casos de violência sexual, sendo 58.037 (31,5%) contra crianças e 83.068 (45,0%) contra adolescentes, concentrando 76,5% dos casos notificados nesses dois cursos de vida", sendo que "a avaliação das características sociodemográficas de crianças vítimas de violência sexual mostrou que 43.034 (74,2%) eram do sexo feminino e 14.996 (25,8%) eram do sexo masculino. Do total, 51,2% estavam na faixa etária entre 1 e 5 anos, 45,5% eram da raça/cor da pele negra, e 3,3% possuíam alguma deficiência ou transtorno3."
Viviana Santiago, gerente de Gênero e Incidência Política da Organização Plan International Brasil, coordenadora da Rede Meninas e Igualdade de Gênero (RMIG), em entrevista ao Portal Lunetas, já havia alertado que no Brasil "é como se a sociedade naturalizasse mexer com uma menina negra quando ela passa na rua, porque falam ser da cor do pecado". Noutra ocasião, ela destacou, com base em dados do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), que "o Brasil é o quarto país do mundo, em número absoluto de casamentos infantis, e está entre os 5 países com número mais alto de casamentos infantis na América Latina."
É nesse áspero caminho, no qual a cultura da exploração sexual infanto-juvenil ainda é muito forte, que deve ser destacada recente decisão do Superior Tribunal de Justiça, que propôs correta interpretação quanto ao enquadramento típico do art. 218-B, §2º, inciso I, do Código Penal, evitando-se, com isso, mais um estímulo jurídico à propagação daquela cultura. No EREsp 1.530.637/SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, Terceira Seção, por maioria, julgado em 24/3/2021, o STJ definiu que a norma penal que se extrai do art. 218-B, §2º, inciso I, não exige a figura do intermediador para a caracterização do crime de favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente.
Para o STJ, no caso do 218-B, §2º, inciso I, "a norma traz uma espécie de presunção relativa de maior vulnerabilidade das pessoas menores de 18 e maiores de 14 anos. Logo, quem, se aproveitando da idade da vítima, oferece-lhe dinheiro em troca de favores sexuais está a explorá-la sexualmente, pois se utiliza da sexualidade de pessoa ainda em formação como mercancia, independentemente da existência ou não de terceiro explorador".
Na realidade, se o STJ agregasse "a figura do intermediador" à interpretação dessa norma penal, estaria atuando, por via clandestina, como se legislador fosse, em total descompasso com o clássico princípio da legalidade e taxatividade do Direito Penal, cujo caráter multissecular dispensa glosas explicativas. O STJ estaria, em última análise, fomentando uma proteção deficiente do bem jurídico em questão, a dignidade sexual e o desenvolvimento biológico e psicossocial de crianças e adolescentes, pois, com a exigência da figura do intermediador-explorador, se tornaria muito mais difícil, e até mesmo improvável, a configuração típica do art. 218-B,§2º, I, do CP.
Apesar das diversas linhas de pensamento que discutem sobre a necessidade ou não de vincular o Direito Penal a um específico conceito de bem jurídico, havendo ainda aquelas que sustentam a dispensabilidade do conceito de bem jurídico como instituto central do Direito Penal, queremos chamar atenção para o seguinte aspecto da realidade social: algumas práticas delitivas solicitam uma interpretação/construção interseccional da norma penal, no que se pode chegar ao desenvolvimento de uma Teoria Interseccional do Bem Jurídico-Penal. É o caso do art. 218-B do Código Penal.
No Brasil, em decorrência de seu sangrento histórico de escravização racial, a configuração do crime de exploração sexual infanto-juvenil articula os marcadores de raça, gênero, classe e sexualidade. Ou seja, como apontam os dados acima mencionados, as vítimas, em regra, são meninas, pobres e negras. É um crime que promove, massivamente, a interrupção da possibilidade de um saudável desenvolvimento psicossocial de mulheres negras. Elas, mais uma vez, vítimas do racismo patriarcal que fundou e continua a reorganizar nossa sociedade. Elas, outra vez, desde a infância, sendo (des) tratadas como mercadoria, tal qual, como lembra Patricia Hill Collins, um ser "totalmente alienado, que está separado de seu corpo e aparentemente não o controla [..]".4
Carla Akotirene nos diz, na ancestralidade de sua voz, que "o Direito tem sua dinâmica interseccional, misoginias, e racismos institucionais", na qual obstrui às mulheres negras o direito de registrar ocorrências, rotulando-as de "mulheres fáceis, raivosas, perigosas, sexualmente disponíveis", o que resulta no descrédito sistemático das reinvindicações das mulheres negras.5
E, de fato, o Direito aplicado ao caso concreto, aquele que se dá na rotina dos Tribunais, não tem incorporado, em suas decisões, interpretações mais próximas da concretude da questão criminal, a exemplo da Interseccionalidade. Prefere reduzir todas as variáveis que envolvem a questão criminal à genérica expressão "desigualdade social", e, com isso, se subtrai a possibilidade de uma interpretação mais viva, mais digna, que também promova, no espaço da argumentação jurídica das decisões judiciais, a reparação histórica que o Brasil deve realizar especialmente para mulheres negras.
Nesse sentido, a decisão proferida no EREsp 1.530.637/SP (STJ), apesar do acerto dogmático, segue uma linha argumentativa tradicional, quando poderia pautar o debate com foco nos transbordantes contornos interseccionais da questão criminal, deixando claro para a comunidade jurídica e não-jurídica que o Tribunal da Cidadania quer acolher, em seus debates institucionais, as polêmicas que agitam o magma social.
São muitas as negras-crianças e negra(os)-adolescentes, carentes do mínimo existencial, forçosamente adoecidas(os) na alma inicial de suas vidas. Tornam-se pequeninas nessas situações de vulnerabilidade interseccional. Mas poderão contar, sempre e sempre, com os movimentos dos Femininos Negros, que produzem iniciativas concretas de acolhimento desses seres em (sub)desenvolvimento. Mesma nessa imensa dor, a matripotência da mulher negra se reinventa e acolhe os filhos e filhas de uma comunidade-negra que, inicialmente, se estabelece pela conexão da dor.
Para finalizar, queremos lembrar, neste mês de abril em que Maya Angelou faria 93 anos, que quando uma mulher negra começa a falar o mundo gira diferente, em direção do Amor. Foi assim com Maya Angelou, poetisa, intelectual e ativista norte-americana, sexualmente abusada aos 8 anos, que, depois de cinco anos emudecida em razão desse trauma, mostrou ao mundo que a palavra de uma mulher negra é a própria revolução.
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1 Trecho do conto Duzu-Querença, do livro Olhos D'Água, de Conceição Evaristo.
2 Disponível aqui. Acesso em 07 abr. 2021.
3 Disponível aqui. Acesso em 07 abr. 2021.
4 COLLINS, Patrica Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo, 2019, p. 248
5 AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Polén: 2019, p. 71.