"Nos registros brasileiros
A injustiça predomina
E o danado esquecimento
Na injustiça se culmina
Pois ainda não se acha
Tudo que se examina
Esquecidas da história
As mulheres inda estão
Sendo negras, só piora
Esse quadro de exclusão
Sobre elas não se grava
Nem se faz uma menção (...)"
Jarid Arraes1
Todos os anos, o mês de março tradicionalmente é dedicado às discussões relacionadas a questões de gênero, em razão de se comemorar no dia 8 de março o dia internacional das mulheres. Esta data, que costuma ter um viés universalizante no que toca as discussões de gênero, repercute desde as mensagens de felicitações nas redes sociais até a realização de eventos (hoje virtuais), publicação de artigos e outras formas de prestar “homenagens”. Porém, no universo do feminismo negro, em verdade, é o “julho das pretas” o mês em que se relembra a trajetória e luta de mulheres negras e possui como data culminante dessas celebrações o 25 de julho, dia em que se comemora do dia internacional da mulher negra Latina Americana e Caribenha. No Brasil, especificamente, é dia da Mulher Negra e da Memória de Tereza de Benguela.
E quem foi Tereza de Benguela? Poucos sabem. Rainha quilombola que chefiou por décadas a resistência do Quilombo de Quariterê, organizou política e administrativamente sob a forma de parlamento e implantou, ainda, um sistema de defesa.2
Guerreira Zeferina foi outra rainha quilombola que liderou a resistência de escravizados, unindo homens e mulheres em prol da luta pela liberdade e hoje seu nome é relembrado em um bairro da cidade de Salvador-Ba: a Comunidade Guerreira Zeferina.
Outro nome pouco conhecido na história nacional, heroína da independência, Maria Felipa de Oliveira, mulher marisqueira, negra e pobre que liderou cerca de 40 (quarenta) mulheres na batalha em prol da independência da Bahia ao derrotar uma frota de Portugueses, tendo, após esse feito, exercido expressiva liderança na Ilha de Itaparica-BA em busca da defesa dos direitos da população em situação pobreza.
Tereza de Benguela, Guerreira Zeferina e Maria Felipa são exemplos de mulheres negras que fizeram história e ainda que não sejam devidamente conhecidas pela população brasileira, contribuíram diretamente para a mudança do estado de coisas e foram instrumentos de transformação social.
Bases históricas como estas servem para demonstrar que a mulher negra brasileira sempre esteve ativa na luta pelo combate às desigualdades e efetivação de direitos, sobretudo quando estão em agrupamento, ou "aquilombamento", usando o adequada terminologia criada por Abdias do Nascimento.
Alheias, de certo modo, à perspectiva teórica e acadêmica proporcionada pela teoria clássica feminista, as mulheres negras precisaram articular-se no mundo concreto de maneira coletiva para combater suas diuturnas opressões e reivindicar direitos, não apenas para si, mas sobretudo para os seus. O movimento social de mulheres negras nasceu genuinamente no seio popular e podemos citar como exemplo deste tipo de articulação coletiva as Associações e Clubes de mães em busca de creches, ou as Associações de mulheres de bairros em busca de políticas públicas e saneamento básico para a comunidade; ou ainda os diversos movimentos organizados de mulheres para o enfrentamento da violência doméstica. Este tipo de articulação coletiva foi uma das bases do que viria a tomar a forma do movimento feminista negro, hoje atrelado às discussões de cunho antirracistas, desigualdade de classe, gênero, combate a intolerância religiosa e também permeado por críticas epistemológicas.
Sueli Carneiro3 ao destacar as conquistas alcançadas pelo movimento feminista, afirma que um dos orgulhos do movimento feminista brasileiro é o fato de, desde o seu início, estar identificado com as lutas populares e com as lutas pela democratização do país e atribui ao movimento de mulheres negras a incorporação da temática raça na saúde, direitos reprodutivos, saúde da mulher e sexualidade. Destaca-se, ainda, a criminalização e medidas contra o feminicídio e violência contra a mulher como um legado dos movimentos populares de mulheres. Contudo, a célebre autora não se olvida da critica à perspectiva eurocêntrica e universalisante do feminismo hegemônico.
Historicamente, outra crítica corrente às práticas do feminismo hegemônico e ocidental é a exclusão e silenciamento das mulheres negras e as indígenas dos debates, eis que , durante muito tempo, o feminismo hegemônico teria sofrido de uma espécie de miopia em relação as opressões raciais em razão da visão de mundo eurocêntrica e neocoloniatista, muito embora tanto o racismo e o feminismo compartilhassem como ponto convergente a ideologia de dominação justificada pelas diferenças biológicas. Tal fenômeno relacionado a ausência inicial de discussões raciais no âmbito do feminismo hegemônico seria denominado por Lélia Gonzáles de Racismo por Omissão4, uma vez que o antirracismo deve ser visto como algo que não deveria ser externo à prática dos Movimentos de Mulheres, eis que se trata de uma atitude ligada aos melhores princípios feministas
Neste sentido, o feminismo negro revela-se um importante contraponto em relação ao feminismo liberal, o qual possui a idéia de emancipação da mulher através da igualdade de direitos em relação ao homem, bem como a implementação dos direitos individuais de maneira prioritária. O feminismo que emerge das bases das lutas populares de mulheres desafia o debate em relação a caráter prioritário dessas pautas liberais, na medida em que agrega como elementos essenciais como prioridade política: o combate ao racismo e a dignidade da pessoa humana.
A consciência da diversidade dos mecanismos de opressão possibilitou, ainda, a consciência da necessidade de articulação diferenciada dessas mulheres negras agregadas sob a forma de movimento, eis que a luta por emancipação passaria necessariamente pela luta pela implementação de políticas públicas voltadas para as necessidade básicas da população negra, em razão das consequências advindas do amplo processo de desigualdade social que foi deflagrado desde o período escravista.
Nesse contexto, é sabido que população negra sofreu sistematicamente a omissão do Estado em efetivar o direito ao usufruto de direitos sociais, com suas necessidades básicas vilipendiadas. Com efeito, a luta de mulheres nascidas nesse contexto de desigualdade passou pela busca de emancipação através da reivindicação pela implementação dos direitos fundamentais de segunda dimensão, os chamados Direitos Sociais e Coletivos, os quais exigem postura positiva do Estado na implementação de políticas públicas para redução das desigualdades sociais, garantia de bem estar social e dignidade da pessoa humana. A luta de uma é a luta de todas5.
Ao abordar o histórico de movimentos de mulheres Negras no Brasil, Luiza Bairros, expoente do feminismo negro, desenvolveu crítica que vai ao encontro do pensamento de Lélia Gonzales ao afirmar que "Não há dúvidas que as mulheres do Movimento Feminista trazem uma contribuição importantíssima do ponto de vista de uma visão do mundo, feminina, mas também são essas mesmas mulheres formadas para desconhecer as desigualdades raciais, formadas para pensar o Brasil como uma democracia racial e aí, contraditoriamente, ainda que o Movimento Feminista consiga perceber em que nível a diferença de sexo é utilizada no sentido da produção das desigualdades, ele não consegue sacar a recriação constante dos mecanismos de discriminação racial das quais as feministas têm sido instrumento."
Dentre legados importantes das práticas de campo do movimento social de mulheres negras que tiveram repercussões para os direitos sociais, podemos citar que foi um grupo de mulheres negras, integrantes do Teatro Experimental do Negro, que criou a primeira Associação das Empregadas Domésticas em 1936 na cidade de Santos-SP. Então lideradas por Dona Laudelina de Campos Mello, reivindicavam a regulamentação do trabalho doméstico e garantias de direitos trabalhistas. Este foi o passo inicial para a conquista paulatina de direitos para as empregadas domésticas que vergonhosamente durou décadas, havendo um mínimo reconhecimento na década de 70 com a CLT – Consolidação das Leis do Trabalho que lhes conferiu o direito de registro em carteira, salário mínimo e previdência . No entanto, isso não foi suficiente visto que a maioria dos direitos que conhecemos hoje foram conferidos muito tardiamente com a PEC das domesticas em 2013.
O movimento de mulheres negras também esteve presente na luta pela redemocratização do país, bem como apresentou significativa contribuição para a aposição de direitos fundamentais e sociais na Carta Magna de 1988. O Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres (CNDM) foi criado em 1985, vinculado ao Ministério da Justiça, para promover políticas que visassem eliminar a discriminação contra a mulher e assegurar sua participação nas atividades políticas, econômicas e culturais do país6.
Este Conselho foi fruto da coalização de diversos grupos feministas e firmou uma importantíssima agenda junto à Assembleia Constituinte e trazia bandeiras como "Constituinte pra valer tem que ter palavra de mulher" , "Constituinte pra valer tem que ter direitos da mulher". O Chamado Lobby do Batom.
Extremamente heterogêneo, é importante ressaltar que a primeira formação deste Conselho teve Lélia Gonzales como conselheira. Outro importante expoente do feminismo negro brasileiro, Sueli Carneiro, ainda foi coordenadora do Programa Mulher Negra do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher em Entre 1988 e 1989. Na oportunidade, a comissão da Mulher negra do CNDM criou a campanha “Mulher Negra, 100 anos de discriminação, 100 anos de afirmação”.
No contexto de redemocratização do Brasil, o CNDM apresentou a Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes7, bem como diversas propostas de emendas sobre direitos das mulheres, com o intuito de englobar de maneira relativamente consolidada as reivindicações dos movimentos feministas, como a proibição de discriminação salarial por motivo de sexo, cor ou estado civil, função social da maternidade, direito de acesso ao planejamento familiar.
Outro exemplo de atuação para efetivação de direitos capitaneado por movimentos de mulheres são as associações de bairros da cidade de Salvador, a quais apresentaram a Emenda 19/1987 que tinha como o objetivo de assegurar o direito das donas de casa à aposentadoria8;
A Carta Constitucional de 1988 introduziu o racismo como crime inafiançável e imprescritível, nos termos da lei, sujeito à pena de reclusão. Essa conquista foi fruto da articulação do movimento negro, mas também dos movimentos de mulheres negras. É bem de ver que a luta coletiva de mulheres negras sempre esteve atrelada às lutas do Movimento Negro organizado, eis que a pauta prioritária deste movimento era o combate ao racismo, com a emergência da necessidade de conhecer a própria história e identificar as formas explicitas e implícitas de discriminação e opressão, bem como desenvolvimento da consciência do que é ser negro e negra.9
Contudo, ainda dentro dos embates ocorridos dentro do Movimento Negro, as mulheres negras também experienciaram o fenômeno do sexismo e discriminação pelo gênero, o que as levou à necessidade de agregar a luta feminista ao legado da luta popular de movimentos de mulheres.
Nesse contexto, a consciência da opressão de classe e a omissão do Estado da implementação de políticas públicas não era a única resposta para o a opressão sofrida pela mulher negra. O fenômeno do sexismo e silenciamento também ocorria dentro do Movimento Negro por parte de seus pares do sexo masculino.
A despeito das divergências teóricas sobre a definição precisa do que efetivamente constitui um movimento feminista, na sua dimensão política e social, bem como o que caracterizaria os movimentos de mulheres em sua dimensão de legitimidade popular, é preciso ter em conta que não há um movimento social que se possa amoldar nos limites do que seria um modelo de movimento social único, nem tampouco extrair o que seria ou não prática política feminista, dada a diversidade de feminismos e problemas vivenciados pelos diversas categorias de mulheres.
Verificamos que a articulação em forma de movimento feminista de mulheres negras possui duas bases importantes: a luta antirracista desenvolvida dentro no Movimento Negro e a luta dos movimentos sociais populares de mulheres em busca da implementação de necessidades básicas, direitos sociais e coletivos
Ainda consoante a teoria clássica sociológica feminista,10 as mulheres não estão inseridas no sistema de micropolítica em razão de terem sido historicamente alijadas deste processo. Porém, quando conseguem reconhecer sua história e a história de suas lutas, percebem a profunda relação entre a política e a micropolítica, o que possibilita a apropriação, com sucesso, do protagonismo na reivindicação de seus direitos.
Nesse contexto, deve se reconhecer a condição da mulher negra como sujeita de direitos humanos e a possibilidade real de ser protagonista do processo de enfrentamento das mazelas sociais advindas do legado do processo histórico escravista e a abolição da escravatura ainda inacabada, através da capacidade de auto-organização para a busca de soluções em face das opressões sofridas, de modo que a articulação e organização das mulheres revela-se vital ainda hoje para a conquista de direitos.
__________
1 ARRAES, Jarid. Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis. São Paulo: Pólen, 2017. Pg 97,
3 CARNEIRO, S. Mulheres em movimento . Estudos Avançados, [S. l.], v. 17, n. 49, p. 117-133, 2003. Disponível aqui. Acesso em: 11 mar. 2021.
4 GONZALEZ, Lélia. “Por um feminismo afrolatinoamericano”. Revista Isis Internacional, Santiago, v. 9, p. 133-141, 1988.
5 CARNEIRO, Suely (2011) Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero.
8 BIROLI, Flávia. Gênero e desigualdades: os limites da democracia no Brasil. São Paulo, Boitempo, 2018.
9 BAIRROS, Luiza. A Mulher Negra e o Feminismo. In. O Feminismo do Brasil: reflexões teóricas e perspectivas / Ana Alice Alcantara Costa, Cecília Maria B. Sardenberg, organizadoras. – Salvador: UFBA / Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher, 2008.