Olhares Interseccionais

Por uma consciência negra interseccional

Por uma consciência negra interseccional

20/11/2020

Encontrei minhas origens

Encontrei minhas origens
em velhos arquivos

....... livros
encontrei
em malditos objetos
troncos e grilhetas
encontrei minhas origens
no leste
no mar em imundos tumbeiros
encontrei
em doces palavras

...... cantos
em furiosos tambores
....... ritos
encontrei minhas origens
na cor de minha pele
nos lanhos de minha alma
em mim
em minha gente escura
em meus heróis altivos
encontrei
encontrei-as enfim
me encontrei

Oliveira Silveira1 

Cortaram as mãos, deceparam sua cabeça! Zumbi, exposto em praça pública na cidade de Recife, conheceu a morte em 20 de novembro de 1695.  Apesar de ter sido acolhido pela mata, a emboscada do colonizador conseguiu alcançá-lo. Capturou-se o corpo. E só. A consciência negra resistiu. Desliza na atemporalidade. E hoje deve ser, alegremente, comemorada. Foram mais de 100 anos de Quilombo dos Palmares (1597-1695), símbolo histórico da resistência negra à opressão ditada pelo velho mundo.

O antropólogo Kabengele Munanga conta que a palavra quilombo, versão aportuguesada de Kilombo, termo originário dos povos de língua bantu, refere-se a espaços geográficos, de acesso difícil, surgidos nos séculos XVI e XVII, ocupados por negras/os escravizadas/os que se rebelaram contra seus senhores. Munanga observa que os quilombos brasileiros, apesar de constituídos em sua maior parte por negros, tornaram-se “espaços abertos a todos os oprimidos da sociedade (negros, índios e brancos), prefigurando um modelo de democracia plurirracial que o Brasil ainda está a buscar.2” O quilombo também era uma sociedade guerreira.

Aquilombar-se, portanto, é um dos primeiros atos de consciência negra.

Os sorrisos que amanhecem neste 20 de novembro de 2020 revelam a euforia de um pertencimento racial, que diz que “negro é a raiz da liberdade” ou “somos black power”. São reflexos da felicidade em ver Kamala Harris eleita como a primeira mulher negra a ocupar a vice-presidência dos Estados Unidos. Depois do assassinato de George Floyd, promovido pela polícia norte-americana, a História precisava dar alguma esperança de que esse racismo estatal pode ser estancado.

Rostos negros sorriem, porque, efetivamente, negros lábios começaram a narrar as próprias histórias. Negritudes se reconhecem em uma comunidade de saber, sentir e viver, que relembra o propósito maior da ancestralidade: o amor. As gotas de vida que, custosamente, venceram o rochoso solo do preconceito racial se transformaram em oceanos de sabedoria, que se comunicam com as próximas gerações. “Eu sou porque nós somos” (Ubuntu).

A questão já não é mais de encontrar um/a negro/a doutor/a, figurante de certo heroísmo negro. Agora que se repete que há um racismo estrutural no Brasil, em que o Estado tende a uma política de matança de pessoas negras – o que já havia sido denunciado por Abdias Nascimento na década de 1970 como genocídio do povo negro3 –, a perspectiva interseccional (raça, gênero e classe) também passou a ser enfatizada nas análises políticas sobre a estrutura social brasileira. 

Neste dia em que, no Brasil, vidas pretas comemoram seu (re)existir, deve-se lembrar que o Dia Nacional da Consciência Negra só foi reconhecido oficialmente com a edição da lei 10.639/03 (História e Cultura Afro-brasileira), sendo que a lei 12.519/11 reafirmou o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra. 

Esse reconhecimento legal foi possível devido às ininterruptas lutas do Movimento Negro Unificado (MNU), empenhado para que a memória histórica da população negra fosse respeitada. Percebe-se que, quando o assunto é a reparação histórica à população negra, os caminhos estatais nem sempre estão abertos. A implantação de cotas raciais no setor público é outro exemplo de incansável luta dos movimentos negros, em um processo de árdua disputa legislativa e de constante vigilância sobre o cumprimento do Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.228/10).

Destaque-se, ainda, que somente em 2020 se obteve uma deliberação oficial, por meio do Tribunal Superior Eleitoral, ratificada por decisão do Supremo Tribunal Federal, sobre a obrigatoriedade de que a repartição de recursos do fundo eleitoral e do tempo gratuito de propaganda seja proporcional ao total de candidaturas negras disponibilizadas pelo partido político. No entanto, esse é um pleito antigo dos movimentos negros.

De fato, os movimentos negros são as bases estruturais das negritudes contemporâneas, que passaram a liderar saberes científicos, literários, filosóficos, jurídicos, esportivos etc. São essenciais à descoberta, por vezes lenta e dolorida, do “tornar-se negro”. Como registra Munanga, há negritudes possíveis, múltiplas, unidas em resistir a uma histórica opressão política e econômica, que insiste em subjugar a população negra nos quatro cantos do mundo.4

Neste dia de celebração da consciência negra, além de recordar que Lewis Hamilton é um consagrado ícone da Fórmula 1, lembre-se que a distinção entre consciência negra e consciência universal segue atualíssima, e sem qualquer ânimo de segregação racial. Aliás, um fato histórico, muito aplaudido no Direito, é exemplificativo de como a ideia de um sujeito universal, de suposta consciência “humanitária”, não priorizou o respeito ao jeito de ser da gente preta.

A Revolução Francesa (1789), que se dizia ser para todos, com o lema liberdade, igualdade e fraternidade, não conseguiu sustentar a extensão desses ideais para a libertação de colônias africanas, que continuariam, por muito tempo, a ser exploradas pela Europa. A Revolução do Haiti (1791-1804), um dos marcos do Constitucionalismo Negro, conduzida por pessoas escravizadas  que se rebelaram contra seus senhores e saíram vencedoras,   não contou com o apoio ideológico da França revolucionária, que se sentiu amedrontada ao notar que o modelo haitiano de revolução, efetivamente libertário, poderia ser copiado por outras colônias francesas.

Isso apenas mostra o que passou a ser lugar-comum no Direito. Na prática, quando se diz que determinado direito é para todos, leia-se todos, menos para negras/os. A figura do sujeito universal, na forma como foi desenvolvida juridicamente – um portador ficcional de direitos humanos –não inclui as especificidades da presença negra no mundo.

Ter uma consciência sobre a história e o tempo presente da negritude é o necessário ponto de partida para se entender a própria dignidade enquanto negra/o.  Em regra, a autopercepção sobre a negritude se dá de forma pejorativa, quando o negro/a sente que sua pele é motivo de todos os insultos vindos do mundo branco, que violentamente se impôs como referência estética, cultural e política.

Que negra/o sou? Qual a história que devo buscar? Com quem devo desabafar as primeiras angústias de um conflito psicológico interracial? Com quem devo compartilhar as alegrias de ser negra/o, independentemente de qualquer classificação aviltante determinada pelo patriarcado branco e elitista? Quem serei a partir do momento em que me reconheço como negra/o? Qual afrofuturismo guiará a consciência negra?

São algumas perguntas para um processo de conscientização negra que possui vários caminhos e requer muita solidariedade afetiva entre as negritudes.

Mas se o Dia da Consciência Negra é uma homenagem à figura histórica de Zumbi dos Palmares, deve-se lembrar que ele não esteve só na resistência negra ao colonizador. Contou, indispensavelmente, com Dandara dos Palmares, sua esposa, com quem teve três filhos, guerreira que lutou nas batalhas de libertação, conhecedora da capoeira e figura sempre presente nas atividades de agricultura do quilombo. Dandara dos Palmares, para a história da resistência negra no Brasil, é tão importante quanto Zumbi dos Palmares. Talvez o patriarcado, que também alcança as masculinidades negras, fazendo-as opressoras, não tenha permitido que se enxergasse a figura revolucionária que é Dandara do Palmares.5

Apenas em 24 de abril de 2019, foi sancionada a lei 13.816/19, que inscreveu os nomes de Dandara dos Palmares e Luiza Mahin, mãe de Luiz Gama, no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, depositado no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, em Brasília. O patriarcado é nocivo, mesmo na construção da história da negritude. Por isso, propõe-se uma consciência negra interseccional, que respeite, o quanto antes, as elevadas contribuições históricas de mulheres negras, que não foram poucas. Consciência negra interseccional, que deve ter como fundamento as pluralidades dos movimentos de mulheres negras, que não são identitários, pois se mostram capazes, a partir dessa encruzilhada interseccional, de promover o encontro com outras tantas diversidades, encampando lutas para além do enfrentamento ao racismo e ao sexismo.

Dandara dos Palmares cometeu suicídio assim como a psicanalista e escritora Neusa Santos Souza, autora do referenciado livro Tornar-se negro: as vicissitudes do negro brasileiro em ascensão social (Graal, 1983). Neusa Santos, precursora do movimento da psicologia preta (Black Psychology) no Brasil, em 20 de dezembro de 2008, “lançou-se do alto de uma construção, um imponente edifício onde vivia na Rua General Glicério, Laranjeiras6”, no Rio de Janeiro. Dandara dos Palmares, em 1694, ao ser capturada, atirou-se de uma pedreira ao abismo, porque preferiu a morte dada por si própria a ter que retornar à condição de escravizada.  

Inspirando-se na musicalidade de Emicida, pode-se dizer que muitas mulheres negras têm sido Ismálias, “querem tocar o céu, mas terminam no chão”, por conta da persistente opressão imposta pelo “duplo patriarcado”, cujas violências são, em grande medida, também reproduzidas por homens negros submersos nas hierarquizações de gênero ditadas por homens brancos, cujos privilégios, no entanto, aqueles jamais alcançam.

Para romper essa realidade, a nova consciência negra há de ser uma consciência negra interseccional, que enxergue cada pessoa em sua singularidade pluriversal, para a qual a Justiça não deve permanecer alheia, se, de fato, pretende  ser uma Justiça democrática, atenta à necessidade de reparação histórica e oficial aos excluídos/as, que ainda são a base corpórea sobre qual  recai as chibatadas dos afortunados/as de privilégios sociais.

Se “todas as mulheres são brancas” e “todos os negros são homens”, “algumas de nós têm coragem.”7 Que mulheres negras sigam demonstrando a coragem herdada de suas ancestrais e construindo caminhos que honrem nossos passos, que vêm de tão longe! Que homens negros não esperem um guia moral dos herdeiros do patriarcado! Que negros homens se encaminhem às negras mulheres, agradecendo-as pelo sacrífico histórico de suas vidas, que garantiram a (re) existência de quilombos, que, hoje, podem ser encontrados nas comunidades, conexões de uma verdadeira solidariedade. Que a gente preta prossiga viva, porque vidas pretas importam e merecem desfrutar de uma felicidade que entoe amorosidade! 

______________

1 O Dia Nacional da Consciência Negra – celebrado, anualmente, em 20 de novembro, data da morte de Zumbi dos Palmares – foi idealizado por Oliveira Silveira. Convencido da necessidade de recontar nossa história, de reverenciar nossos heróis e heroínas esquecidos, e de resgatar nossos saberes ancestrais invisibilizados, o poeta imortalizou a memória de Zumbi dos Palmares.

2 MUNANGA, Kabengele. Origem e histórico do quilombo na África. Revista usp, n. 28, p. 56-63, 1996.

3 NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Editora Perspectiva SA, 2016.

4 MUNANGA, Kabengele. Negritude-usos e sentidos. Autêntica, 2015, p. 11-20.

5 DOS SANTOS LEITE, Maria Laís. Lutando com Dandara de Palmares: feminismos e representatividade na literatura contemporânea. RELACult-Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura e Sociedade, v. 6, n. 1, 2020. Para uma leitura ficcional, com referência em dados históricos, confira-se. ARRAES, Jarid. As lendas de Dandara. A autora, na apresentação, do livro, critica o machismo que envolve a comemoração do Dia da Consciência Negra. Nesse mesmo sentido, outro artigo de Jarid Arraes: Clique aqui. Acesso em 10. nov. 2020.

6 Clique aqui

7 Referência ao título do livro All the Women Are White, All the Blacks Are Men, But Some of Us Are Brave”. Gloria T. Hull, Patricia Bell Scott, and Barbara Smith. Feminist Press: 1993.

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