Introdução
Não se deve confundir a defesa das Instituições com a defesa do Estado Democrático de Direito. O mais comum é que as duas coisas aconteçam de maneira síncrona, mas nem sempre haverá coincidência entre elas.
Para defender o Estado de Direito, é necessário defender o Direito do Estado. Se aquilo que emana da Constituição e das leis não é respeitado, o Estado de Direito também não o é. Não importa se o respeito pelas regras do jogo conduz a consequências aparentemente contraproducentes. Só existe uma maneira de proteger o Estado de Direito: reafirmá-lo.
Por sua vez, para defender o Estado Democrático, é necessário obedecer ao ordenamento jurídico democraticamente elaborado. Quando um Juiz se recusa a acatar o que está posto na Constituição e nas leis, é porque virou as costas para os mandatários do povo brasileiro, que foram sufragados nas urnas, e para o próprio povo.
O deputado Federal Daniel Silveira proferiu um virulento discurso de ódio contra a Instituição Supremo Tribunal Federal e seus Ministros. Que consequência jurídica adviria desta conduta? Como já disse Lenio Streck, "a partir de uma análise constitucional mais ortodoxa", "deixemos que a Constituição nos fale" (STRECK, 2018. p. 308).
Pois bem.
O que a Constituição tem a dizer sobre isso é que, tecnicamente, o parlamentar incorreu em quebra de decoro parlamentar, na modalidade do abuso das prerrogativas, razão pela qual há de perder o mandato (art. 55, II, § 1º, CF).
Muitos não se contentaram com a solução apontada pelo constituinte. E se – objetam – o Parlamento não desempenhar esse papel? Ademais, diante da gravidade do que foi dito, alguns juristas defenderam uma reação à altura do ataque, ou seja, uma medida proporcional ao desvalor da conduta do congressista. Em termos mais claros, a prisão do Deputado foi endossada como alternativa constitucionalmente viável.
No Brasil, instituições têm sido atacadas e cumpre protegê-las. Algumas formas de proteção são mesmo mais eficientes do que outras, razão pela qual se tornam mais atrativas. Atalhos podem ser bastante convidativos. Nem todos os meios, porém, são admitidos pelo Direito Constitucional. Entre a eficiência e a Constituição, é de se preferir esta àquela.
Este ensaio não é muito ambicioso. Descabe apontar aquilo que o Deputado merecia pelo que fez. Só interessa demonstrar o que a Constituição permite que se faça diante do que foi feito. Também não se pretende elucubrar se a liberdade de expressão protege as palavras hostis mencionadas pelo parlamentar. É claro que não protege – exatamente por isso, ele cometeu quebra de decoro parlamentar, isto é, uma ilicitude qualificada como infração ético-disciplinar. Não nos ocuparemos, tampouco, do empreendimento de perquirir o eventual nexo entre o discurso ilícito e a função parlamentar, de modo a raciocinar se teria incidência a imunidade material por “quaisquer de suas opiniões, palavras e votos” (art. 53, caput, CF). Sequer cogitaremos se houve estado flagrancial pela postagem de vídeos na internet. Absolutamente. Apenas dois eixos disputarão a persuasão de quem lê:
i) Daniel Silveira foi preso preventivamente;
ii) Os crimes suscitados são afiançáveis.
É o quanto basta.
No curso da argumentação, outras questões serão analisadas de passagem. Por exemplo, uma abordagem originalista da Lei de Segurança Nacional e aspectos do INQ 4781.
Prisão preventiva escamoteada
Se as rosas não se chamassem rosas, como diria Shakespeare, nem por isso deixariam de exalar o mesmo perfume. De fato, o nome das coisas não passa de um rótulo na embalagem, mas a essência do que se rotula é indiferente à rotulação. Palavras não alteram a natureza. O nomen juris não altera a natureza jurídica.
Se a verdade interessa, o Deputado Federal Daniel Silveira foi preso preventivamente.
Dizem que a prisão foi em flagrante. Aliás, é o que consta do seu mandado de prisão em flagrante. A natureza jurídica de um instituto, todavia, não é modificada pela rubrica documental. É fácil demonstrar o que se afirma.
Quando um indivíduo arremessa uma pedra para o alto, não vai demorar muito tempo para ela cair. Se não cai, é porque não é uma pedra – ou quem arremessa não é um indivíduo. Assim é a prisão em flagrante. A medida é incapaz de sustentar a custódia da pessoa presa, a menos que seja convertida em prisão preventiva.
O Ministro Gilmar Mendes bem sabe. Conforme exprimiu no julgamento da ADI 5526, cujo desfecho teria impacto direto no afastamento (já determinado pela Primeira Turma) de Aécio Neves, “[...] hoje o flagrante não mais sustenta a prisão, necessitando ser convertido em prisão preventiva por ordem judicial”. Isso em razão do “caráter pré-cautelar”, afirmou – acertadamente – o Ministro.
O ministro Edson Fachin também sabe disso. Tomando-se as suas palavras de empréstimo, "[o] flagrante delito, após o advento da Constituição da República de 1988, deixa de poder ser considerado uma espécie de prisão cautelar processual penal, passando a mera medida de sub cautela" (ADI 5526). No seu voto, Fachin inclusive citou – e endossou – a doutrina de Luiz Antônio Câmara, para quem "[...] hoje os efeitos da prisão em flagrante não persistem indefinidamente no tempo".
A premissa é de todo correta. De fato, até os neófitos sabem que os efeitos da prisão em flagrante não persistem indefinidamente no tempo.
Voltando à metáfora apresentada, nenhum arremesso humano teria força suficiente para fazer com que uma pedra subisse, ad eternum, sem jamais cair. A prisão em flagrante não conserva a segregação da pessoa custodiada, a menos que seja convertida em prisão preventiva. Não havendo esta conversão, o flagrado será solto. Se a prisão era lícita, a soltura se fará acompanhar da fixação de medidas cautelares diversas da prisão ou da liberdade provisória (art. 310, I e II, CPP). Se ilícita, haverá o relaxamento da prisão ilegal (art. 310, I, CPP). Esta avaliação costuma ocorrer em uma audiência de custódia, "no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão" e "com a presença do acusado" (art. 310, CPP).
Alguém poderia dizer que a interface desse sistema não se comunica com a situação dos parlamentares. Um erro palmar. Como bem pontuou o Ministro Edson Fachin, todo esse regramento é extensível aos congressistas. Na ADI 5526, Fachin explicitou com muita clareza que "[e]ssas regras se aplicam também ao parlamentar preso em flagrante nas hipóteses de crime inafiançável".
Conclui-se que prisões em flagrante não sobrevivem à audiência de custódia, porque é neste ato processual que elas se dissipam ou se transformam. Tecnicamente, a prisão em flagrante não tem longevidade.
Feitos esses esclarecimentos, prossigamos.
Daniel Silveira foi preso "em flagrante" no dia 16/02/2020 (terça-feira). Em 18/02/2020 – após desrespeitado o prazo de 24h estabelecido na lei –, ocorreu a audiência de custódia. A impontualidade injustificada de audiências de custódia rende ensejo à ilegalidade da prisão e à consequente soltura, a menos que decretada a prisão preventiva (art. 310, § 4º, CPP). O ato foi realizado mediante videoconferência, embora o Código de Processo Penal exija que seja presencial (art. 310). A despeito das ilegalidades (todas periféricas se comparadas aos verdadeiros problemas), no dia 19/02/2020, a Câmara dos Deputados deliberou sobre a prisão, mantendo-a. A deliberação, em escrutínio aberto, exigiria 257 (duzentos e cinquenta e sete) deputados, ou seja, a maioria absoluta. 364 (trezentos e sessenta e quatro) parlamentares se manifestaram favoravelmente à prisão.
Daniel permaneceu preso "em flagrante" até 14/03/2021, data em que o Ministro Alexandre de Moraes concedeu prisão domiciliar (PET 9456). Se o flagrante é efêmero, como subsistiu por tanto tempo? Não nos lembram os eminentes Ministros que o flagrante "não mais sustenta a prisão"? Um flagrante zumbi, que permanece vívido tantos dias após a audiência de custódia, não passa de uma prisão preventiva escamoteada. O mandado de prisão em flagrante é a etiqueta colada sobre uma prisão manifestamente preventiva. O fel não se torna doce porque chamado de mel. A prisão domiciliar foi contaminada pela mácula na origem, que se lhe transmite por cadeia causal, a exigir uma nova deliberação do Parlamento. A medida constritiva tolhe o livre exercício do mandato e, por esta razão, há de sujeitar-se ao escrutínio da Câmara dos Deputados (ADI 5526).
Não importa como você chama essa prisão, ela não foi uma prisão em flagrante. Ontologicamente, o deputado foi preso de maneira preventiva. O mais é ilusão. E isso tem pelo menos três consequências graves:
- Congressistas não podem ser presos preventivamente (art. 53, § 2º, CF);
- Mandados de prisão preventiva não podem ser cumpridos à noite (art. 5º, XI);
- A prisão preventiva não pode ser decretada de ofício pelo Judiciário (art. 282, § 2º, CPP).
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não costuma reconhecer que, às vezes, a Corte prende (ou mantém parlamentares presos) preventivamente. O mais usual é que essa hipótese seja repudiada pelos Ministros. Na ADI 5526, o Ministro Gilmar Mendes pontuou: "quero assentar que a imunidade à prisão preventiva segue em vigor". Neste precedente, Toffoli chegou a falar em "vedação constitucional absoluta da prisão temporária ou preventiva de parlamentar federal". Alexandre de Moraes foi ainda mais incisivo: "[...] concordemos ou não, o texto constitucional é expresso e claro, trazendo tanto a regra quanto a exceção. Em regra, portanto, o congressista não poderá sofrer [...] nenhuma hipótese de prisão de natureza processual preventiva ou temporária; [...] excepcionalmente, porém, o congressista poderá ser preso, no caso de flagrante delito por crime inafiançável".
No entanto, uma análise mais rigorosa revela que, de quando em vez, a preventiva acontece.
Por exemplo, no contexto decorrente da Operação Dominó, o STJ "determinou a prisão em flagrante" do Presidente da Assembleia Legislativa de Rondônia e o Supremo Tribunal manteve a custódia (HC 89.417, Primeira Turma, j. em 22/08/2006). Para Gilmar Mendes, apesar das controvérsias, "pode-se argumentar que o STF permitiu a prisão preventiva de parlamentar"1.
No INQ 3842, j. em 15/05/2014, o STF decretou a prisão preventiva de um deputado estadual, mas teria havido um equívoco quanto à avaliação fática, vale dizer, havia dubiedade quanto ao efetivo exercício do mandato. Uma vez esclarecida essa premissa, a custódia foi substituída por medidas cautelares diversas da prisão.
Na Ação Cautelar 4039, quando o Senador Delcídio do Amaral (PT) foi preso, o STF não explicitou a expressão "mandado de prisão preventiva". Mesmo assim, a omissão da terminologia não alterou a natureza das coisas. Conforme já havíamos apontado em outro ensaio desta coluna, Delcídio foi preso preventivamente2. Esta também foi a percepção da doutrina mais atenta, que constatou esse aspecto e não hesitou em mencionar que, de fato, ocorrera uma prisão preventiva (LIMA, 2020. p. 981).
Agora, o fenômeno se repetiu com o Deputado Daniel Silveira.
Outro problema daí decorrente é o fato de que o mandado de prisão foi cumprido durante o horário noturno. Juízes não podem ordenar prisões durante a noite, por expressa determinação constitucional (art. 5º, XI, CF). Como contornar isso? Onde se leria mandado de prisão preventiva, redigiu-se "mandado de prisão em flagrante".
Por fim, a Procuradoria-Geral da República ajuizou a ação penal correlata, mas não postulou a prisão preventiva do parlamentar. Por ocasião da audiência de custódia, o Ministério Público também não vindicou a prisão preventiva. O Juiz Natural não poderia, então, fazê-lo de ofício (art. 282, § 2º, CPP). Mas fez. Como solucionar isso? Alterando-se o nome de batismo. Mais uma vez, onde se leria mandado de prisão preventiva, grafou-se "mandado de prisão em flagrante".
Como se vê, é muito simples contornar quase todos esses obstáculos jurídicos. Bastaria chamar a prisão preventiva de prisão em flagrante, como se gatos domésticos fossem presenteados com bravura quando chamados de leões. O poder transformador das palavras!
Porém, mesmo que o país fosse persuadido sobre o acerto da tese jurídica de que a prisão de Daniel Silveira foi efetuada em flagrante, premissa equivocada, ainda subsistiria um obstáculo incontornável: em se tratando da prisão de membros do Parlamento, o flagrante é necessário, mas não é suficiente.
Os crimes da Lei de Segurança Nacional são afiançáveis
Juristas mais dóceis se empenharam, com muito esmero, no esforço contorcionista de convencer as pessoas sobre a existência de um estado flagrancial. Embora muito tenham escrito, nada disseram, entretanto, sobre o mais nítido impedimento da prisão. Trata-se da circunstância de que os crimes suscitados na Lei de Segurança Nacional são afiançáveis.
Antes de abordar esse aspecto, seria negligente omitir que a própria incidência da Lei de Segurança Nacional no suporte fático já deveria causar um mínimo de perplexidade naqueles que têm reverência pela Carta Outubrina.
Os constituintes que promulgaram a Carta de Outubro desconfiavam da Lei de Segurança Nacional e conscientemente escolheram proteger os parlamentares em face desse diploma. Esta é a verdade histórica.
Conforme se extrai da Ata da Segunda Reunião Extraordinária da Subcomissão do Poder Legislativo, realizada em 22 de abril de 1987, as palavras do constituinte Farabulini Júnior descreviam o receio de que congressistas viessem a ser presos com base na Lei de Segurança Nacional:
"Como Vossas Excelências sabem, existe a Lei de Segurança Nacional, que está em vigor, pois foi revogada, na legislatura passada, apenas em parte. Era desejo da sociedade brasileira revogá-la por inteiro, mas, infelizmente, isto não aconteceu. Os deputados e senadores correm realmente sérios riscos de serem enquadrados nesta lei [...] Uma série de artigos da Lei de Segurança Nacional vigente poderá levar o parlamentar a resvalar".
Em razão disso, o constituinte Farabulini acrescentou que as imunidades protegeriam parlamentares dos crimes contra a Segurança Nacional: "Não há crime contra a Segurança Nacional que possa vir a ser praticado por parlamentares que mantém o seu mandato com imunidade material e processual".
O receio era de todo justificável. Bastaria olhar para o passado, isto é, voltar os olhos para a História Constitucional. Na vigência da Constituição de 1967, durante o Regime Militar, parlamentares eram imunes por suas opiniões, palavras e votos. As Emendas nº 1/69 e 11/78 alteraram a disciplina das imunidades, para estabelecer que deputados e senadores seriam invioláveis por suas opiniões, palavras e votos, exceto em crimes contra a Segurança Nacional. Aliás, as imunidades parlamentares também foram cerceadas pela Constituição de 1937, contemporânea ao Estado Novo, um documento autoritário.
Não se trata de uma coincidência.
Em boa verdade, a latitude das imunidades parlamentares revela o coeficiente democrático de uma dada Carta Política. A qualidade de uma democracia pode ser medida pelo desenho constitucional das imunidades parlamentares. Uma grandeza varia em função da outra. E a ideologia da segurança nacional, como se vê, sempre assombrou legisladores brasileiros e atuou contra esses valores.
Em uma reação consciente a essas experiências, as imunidades foram reafirmadas pela Constituição de 1988. Tamanha a importância dessa prerrogativa propter officium, a preocupação de assegurá-las já teve início durante os trabalhos da Assembleia Nacional, ou seja, ainda antes da Constituição ser concebida. Os próprios constituintes desfrutavam da imunidade por ocasião dos trabalhos na Assembleia Nacional. Consoante a Resolução da Assembleia Nacional Constituinte n.º 2, de 25 de março de 1987, no seu artigo 1º, § 2º: “Os Constituintes são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos, no exercício de suas funções, em qualquer tempo ou lugar, não podendo ser processados criminalmente, nem presos sem licença da Assembléia Nacional Constituinte, salvo em caso de flagrante de crime inafiançável”.
Ainda durante os trabalhos da Assembleia Nacional, o constituinte Valter Pereira apresentou a emenda 381140-5, para que a imunidade prisional dos parlamentares não incidisse em crimes comuns, mas somente em crimes políticos. Segundo ele, "o mandato popular não deveria ser utilizado como escudo para a prática do ilícito". A emenda foi rejeitada, confirmando a pretensão do constituinte de atribuir caráter amplo ao "freedom from arrest", inclusive – e principalmente – no que concerne aos crimes contra a segurança nacional.
Assim foi feito. A Constituição de 1988 reconheceu a prerrogativa. Alguns anos depois, na revisão constitucional de 1993, as imunidades parlamentares sobreviveram a 143 (cento e quarenta e três) propostas de emendas.
Nada disso adiantou. Embora o constituinte originário tenha se cercado de todos os cuidados para proteger os parlamentares com imunidades, o STF as tem esvaziado. De maneira sincera, Gilmar Mendes já asseverou que "[...] a observação dos fatos permite afirmar que, no Supremo Tribunal Federal [...], está em curso um movimento branco para colocar à prova os limites das imunidades parlamentares". Segundo o Ministro, "[p]ode-se afirmar que, nesse último par de anos, o Tribunal testou a imunidade parlamentar mais do que em toda a sua história" (ADI 5526).
Quem adivinharia que, no futuro, o texto constitucional não teria qualquer força normativa para impedir que um deputado fosse preso em razão do enquadramento na Lei de Segurança Nacional?
O chicote troca de mão. Primeiro, o Deputado Daniel Silveira foi preso com base na referida legislação. Dias depois, um jovem foi preso em flagrante por um tweet que supostamente incitaria um atentado contra o Presidente da República. O autor das postagens alegou a existência de animus jocandi. Ainda no mês de março do corrente ano, o humorista Danilo Gentili manifestou em suas redes sociais uma opinião que também pode ser caracterizada como discurso de ódio, porém, contra parlamentares. Mais uma vez, a Lei de Segurança Nacional foi invocada. A Procuradoria da Câmara dos Deputados endereçou ao STF um pedido de prisão do apresentador (PET 9478).
Sejamos coerentes.
Se algo não pode ser dito em relação a Ministros do STF, naturalmente também não pode ser dito em relação a congressistas ou ao Presidente da República. A envergadura da liberdade de expressão há de ser a mesma. Juridicamente, no que concerne às liberdades comunicativas, há fungibilidade discursiva quando o conteúdo versa sobre membros dos Poderes. Se a crítica transborda da licitude quando dirigida a integrantes do Judiciário, pela mesma razão, será qualificada como ilícita quando referente ao Chefe do Executivo ou a membros do Parlamento.
Para a Procuradoria da Câmara, inclusive, o fato seria conexo ao INQ 4781, devendo ser distribuído por dependência. Em 05 de março, por decisão do Ministro Presidente Luiz Fux, o pedido de prisão foi distribuído por prevenção ao relator Alexandre de Moraes (PET 9478). Em outras palavras, humoristas da sociedade civil não têm foro no STF, mas podem ser julgados por ele. Parlamentares têm foro (art. 53, § 1º, CF), mas não são julgados por ele (AP 937 QO). Um sistema caótico, que subverte tudo aquilo que um estudante, algum dia, aprendeu nos bancos das Universidades.
Mais curioso ainda é saber que, na opinião doutrinária do Professor Luís Roberto Barroso, a Lei de Segurança Nacional não foi recepcionada pela Constituição de 1988. Convém transcrever suas conclusões acadêmicas (2009, pp. 276-277):
"A Constituição de 1988 foi a superação histórica do regime que tinha como um de seus fundamentos a ideologia da segurança nacional, e toda carga autoritária que dela decorria. [...] Produto de uma outra época, a Lei de Segurança Nacional, tanto na sua filosofia quanto nos princípios e conceitos que utiliza, não se harmoniza com o Estado democrático de direito introduzido pela Constituição de 1988".
Inusitado. A opinião registrada não fez eco nas decisões do STF. Feitas estas importantes considerações sobre a Lei de Segurança Nacional, que causava arrepios nos constituintes brasileiros, convém retornar ao tema da afiançabilidade dos delitos tipificados nesse diploma.
"Incansável" é quem nunca se cansa. "Indefensável" é aquilo que jamais se defende. "Inescusável", qualidade do que não admite escusa. O sufixo elucida perfeitamente. "Inafiançável", da mesma forma, designa somente os delitos que nunca admitem fiança – não os inúmeros outros crimes que, apesar de afiançáveis, à vista das peculiaridades do caso concreto (reincidência, contumácia, gravidade em concreto, risco à instrução processual etc.), não permitirão que uma fiança seja concedida.
O STF tem ignorado o sentido das palavras, em um ato de apostasia constitucional. Na Ação Cautelar 4039, a Corte entendeu que, se a prisão preventiva deveria ser aplicada, não cabe fiança. Por conseguinte – e aqui temos um salto argumentativo –, "o crime é inafiançável". Na Lógica, isso equivaleria a dizer que: "no caso prático de ontem, você não foi vencido. Então, você é invencível". A proposição é absurda. Da premissa, não segue a conclusão. Nem sempre quem vence é invencível. E nem toda fiança impossibilitada se traduz em crime inafiançável.
Se o constituinte afirma que uma infração é inafiançável, a fiança é sempre proibida ou será proibida quando necessária a decretação da prisão preventiva? Basta lembrar que, quando a Constituição preceitua que racismo é inafiançável, isto significa que jamais será cabível a fiança, não que às vezes ela não caberá. Confundir inafiançabilidade de um delito com impossibilidade de concessão de fiança no caso concreto é uma iniciativa nada convincente.
Crimes inafiançáveis integram o rol de delitos que não permitem, aprioristicamente, liberdade provisória mediante fiança. Em suma: são delitos que, de antemão, independentemente das vicissitudes do caso concreto, já se sabe que não admitem fiança.
A Constituição Federal previu a inafiançabilidade em apenas três incisos do artigo 5º. Todos foram transplantados para o art. 323 do CPP. Dito isto, Senadores e Deputados só podem ser presos em flagrante nos crimes de:
Racismo (art. 5º, XLII);
Terrorismo (art. 5º, XLIII);
Tortura (art. 5º, XLIII);
Tráfico de drogas (art. 5º, XLIII);
Crimes hediondos (art. 5º, XLIII);
Ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (art. 5º, XLIV).
Ao analisar a decisão proferida pelo Ministro Alexandre de Moraes, no INQ 4781, vê-se que os crimes suscitados estavam todos tipificados na Lei de Segurança Nacional. Como não estão no rol descrito acima, a contrario sensu, são todos afiançáveis. Como lembra a doutrina, "as hipóteses de cabimento de fiança são definidas negativamente [...]" (BADARÓ, 2017). Daí porque não é possível prender em flagrante um deputado pela prática desses delitos.
E como já foi escrito algum dia, "não é papel do Supremo Tribunal Federal reescrever as formas de [...] prisão de parlamentar. Não há competência para além do texto constitucional. Respeitemo-lo" (STRECK, 2018. p. 311).
Para piorar o cenário acima, a prisão inconstitucional foi determinada no bojo de uma investigação criminal instaurada pelo próprio Supremo Tribunal Federal (INQ 4781), com o beneplácito de parte da doutrina. Tu quoque, Brute, fili mi?
Tomado por um espírito de indecisão, Lenio Streck manifestou-se de maneiras radicalmente opostas, em um curto espaço de tempo, sobre o INQ 4781. Basta o simples cotejo das opiniões contrastadas a seguir:
Visão de Lenio Streck sobre o INQ 4781 |
Ano de 2019[3] |
Ano de 2020[4] |
O Supremo Tribunal Federal pode investigar crimes? |
"o STF já havia deixado claro, na ADI 1.570, que o juiz não pode investigar crimes [...]. Se precedente valer, então estamos em face de um easy case." |
"A instauração de inquérito de ofício (...) já foi realizada [...] no âmbito do HC 152.720 [...]. Portanto, existe precedente a respeito. [...] que deve ser lido do seguinte modo (...): é possível que o STF instaure inquérito de ofício." |
O Supremo Tribunal Federal pode investigar ataques que não ocorreram nas dependências da sua sede? |
“[...] o artigo 43 do RISTF, [...] tem um problema de não recepção constitucional. (...) não dá azo a que o próprio STF investigue fatos que não ocorreram na sede ou dependência do STF. (...) não dá essa abrangência. Não encaixa." |
"Também há o aparente problema no sentido de que os ataques e as fake news não teriam sido cometidos na sede do Supremo Tribunal Federal. [...] em um ambiente virtual, a velha noção de um local físico não faz mais sentido [...]" |
Uma bipolaridade hermenêutica. Vive-se uma época distópica em que constitucionalistas conservadores sustentam uma "intervenção militar constitucional", o que é um despautério. Noutra ponta, constitucionalistas progressistas sustentam a validade do INQ 4781, o que também é um despautério. E a esta altura o referido inquérito já teve filhos e logo terá netos. Outros tribunais replicaram a iniciativa. É a periclitação do sistema acusatório.
Conclusão
Em nome da defesa das Instituições, o Direito do Estado Brasileiro tem sido abandonado por quem era responsável pela sua veladura. Esse processo de abandono tem ocorrido com o beneplácito de alguns juristas que, durante muito tempo – e há pouco tempo –, sustentavam um cumprimento “ortodoxo” da Constituição.
Todo cuidado é pouco com quem diz defender o Estado de Direito sem o Direito do Estado. Convém desconfiar de quem afirma proteger o Estado Democrático, mas não respeita os frutos normativos que a árvore da Democracia, algum dia, já produziu.
É fácil defender o cumprimento intransigente da Constituição em mares tranquilos. Difícil é observar a ortodoxia constitucional quando as circunstâncias indicam que a solução apontada pelo constituinte pode não ser a mais vantajosa.
Constituições não são escritas por mensageiros dos deuses ou seres iluminados, mas sim por seres humanos imperfeitos. Quando se trata de um dado problema da vida, nem sempre o destinatário dos seus comandos aceita a solução apontada no texto como aquela mais sábia a ser tomada. É exatamente nesse momento que muitos se deparam com o impulso quase invencível de corrigir o que está escrito na norma constitucional. É nessas circunstâncias que reflexões induzem a crer que outros arranjos constitucionais poderiam ser mais eficientes. É quando se apresenta o desafio da obediência constitucional.
Em casos mais radicais, alguns juristas sugerem o abandono do texto, um ato de verdadeira apostasia constitucional. Louis Michael Seidman apresenta uma sugestão extrema: "O teste para a obrigação constitucional se apresenta quando se pensa que, consideradas todas as hipóteses, a coisa certa a ser feita é X, mas o que a Constituição nos diz para fazer é Não-X. [...] Mas quem, em sã consciência, faria isso? [...] por que nós tomaríamos um rumo diverso apenas em razão das palavras escritas em um pedaço de papel de mais de duzentos anos atrás?" (SEIDMAN, 2012. p. 7).
Considerando-se todas as variáveis, talvez a prisão de Daniel Silveira fosse a alternativa mais vantajosa (X). Porém, a Constituição nos diz que não é possível prendê-lo nessas circunstâncias (Não–X). Por que tomaríamos um rumo diverso?
Porque a Constituição é inegociável.
Resistamos à tentação dos atalhos. A Constituição há de ser cumprida a qualquer tempo, seja para quem for, tal como ela é. Não há Estado de Direito sem estrita observância ao Direito do Estado.
Referências bibliográficas
BADARÓ, Gustavo. Curso de Processo Penal. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.
BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. Tomo II. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Volume Único. 8ª ed. Salvador: Juspodivm, 2020.
SEIDMAN, Louis Michael. On Constitutional Disobedience. Oxford University Press. 2012.
STRECK, Lenio Luiz. 30 Anos da CF em Julgamentos: uma radiografia do STF. Rio de Janeiro: Forense, 2018.
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1 Conforme se extrai do seu voto na ADI 5526.
3 STRECK, Lenio. O caso do STF e as fake news: por que temos de ser ortodoxos! CONJUR. 18de abril de 2019. Disponível aqui.
4 STRECK, Lenio. Oliveira, Marcelo Andrade Cattoni de. SILVA, Diogo Bacha e. Inquérito judicial do STF: o MP como parte ou "juiz das garantias"? CONJUR. 28 de maio de 2020. Disponível aqui.