Olhar Constitucional

Vacinas compulsórias e dignidade humana

Vacinas compulsórias e dignidade humana.

14/8/2020

Vacinas estão sempre a despertar o imaginário coletivo e a desafiar a confiança social. Durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte que originou a Constituição de 1988, o constituinte Fábio Feldmann fez uma declaração curiosa sobre as experiências laboratoriais: "Para produção de vacinas muitas vezes se pegam coelhos vivos, colocando-os numa espécie de liquidificador em que eles são triturados"1.

Para muito além da metodologia de desenvolvimento, o povo também está atento aos componentes utilizados nas vacinas. No início do século passado, a vacina contra a varíola era extraída das feridas de vacas enfermas. Na exata dicção da Fundação Oswaldo Cruz, "líquido de pústula de vacas doentes"2. Em um português mais claro, suco de ferida.

Como é intuitivo, muitos foram os que rejeitaram a inoculação desse líquido repulsivo. Mas as coisas foram adiante. A sociedade da época propagou fake news, difundindo a crença de que pessoas vacinadas assumiriam as características fenotípicas de um boi.Noutras palavras, quem se vacinasse ficaria com "feições bovinas"3.

Nesse período conturbado, o sanitarista Oswaldo Cruz adotou uma série de medidas higienistas e articulou a aprovação de uma lei que tornava obrigatória a vacinação contra a varíola (lei 1.261/1904).Como reação social, o Governo do Presidente Rodrigues Alves vivenciou a Revolta da Vacina.

Quase 100 anos depois, no Reino Unido, o médico e pesquisador Andrew Wakefield publicou um estudo em um influente periódico científico estabelecendo um nexo de causalidade entre vacinas e autismo. Segundo ele e seus coautores, 12 (doze) crianças teriam desenvolvido autismo em razão de uma vacina tríplice-viral (sarampo, rubéola e caxumba).

Após a publicação da pesquisa, o índice de vacinação sofreu uma queda porque muitos pais se abstiveram de vacinar seus filhos. Alguns países chegaram a suspender a política de vacinação. Como era de se esperar, cerca de 10 anos depois, epidemias reapareceram no Reino Unido.

Diante dos efeitos nocivos para a sociedade, a Revista The Lancet, que veiculou a pesquisa, retratou-se formalmente.Hoje, o trabalho é atravessado por uma expressão em vermelho: "retracted". O Professor Wakefield teve sua licença profissional cassada, mas o ovo da serpente já havia sido colocado. Inúmeras famílias passaram a intentar demandas judiciais em ações reparatórias, na firme crença de que o autismo dos seus filhos havia sido originado das vacinas fornecidas pelo Governo. Como se vê, a depender das circunstâncias, a liberdade científica tem um alto preço.

Em boa verdade, a atitude mais sábia é vacinar-se. O mais sadio, vantajoso, seguro, inteligente e até solidário é que as pessoas se vacinem. Vacinas traduzem um progresso científico e civilizatório, assegurando a sobrevivência do corpo social. Infelizmente, a má-notícia é que muitos brasileiros ainda não foram persuadidos pela sensata opinião favorável à ampla cobertura vacinal.

Vacinar-se é um ato de confiança. Nem todas as pessoas aceitariam um copo d’água de um estranho na rua. Na infância, somos orientados a rejeitar doces de pessoas desconhecidas. Sucede que, em geral, as pessoas vacinadas sabem muito pouco sobre as vacinas e desconhecem seus vacinadores.

Se a vacinação exige credibilidade, há cidadãos que simplesmente não acreditam no Governo. Pesquisas de opinião revelam isso com muita nitidez. Outros indivíduos desconfiam do contexto comercial em que as vacinas são desenvolvidas. Laboratórios, gigantes farmacêuticas, preços bilionários para viabilizar a transferência de tecnologia etc.De quando em vez, adultos sabem que a ganância pode eliminar alguns escrúpulos.

O mundo recebeu com desconfiança a notícia sobre a vacina russa Sputnik V, tal como anunciada por Vladimir Putin. Se o próprio nome de batismo já sugeriria uma corrida política, a suspeita se acentua quando se sabe que a vacina foi aprovada antes dos testes recomendados pela OMS. Simplesmente, 38 (trinta e oito) voluntários foram testados em um lapso de aproximadamente um mês. Se o Estado do Paraná importá-la, a vacina russa deve ser compulsória?

Agências reguladoras têm poderes para aprovar vacinas dentro da circunscrição territorial dos países respectivos, mas os cientistas temem que governos exerçam pressão política para que essas agências expeçam licenças. É temerário quando agências de regulação estão localizadas em Estados Nacionais cujo regime político é uma democracia iliberal. No Direito,chamamos esse fenômeno de Teoria da Captura. As instituições reguladoras são independentes nesses países?

Eleições presidenciais também apressam vacinas. Se o mundo tem pressa, alguns Chefes de Estado têm ainda mais. Como sinceramente reconheceu uma Presidente da República, "nós podemos fazer o diabo quando é a hora da eleição". A declaração é verdadeira. Sejamos realistas. De fato, candidatos podem não medir esforços durante essa disputa acirrada, sobretudo quando sabem que uma vacina pode ser decisiva no pleito eleitoral.

A maneira precoce com a qual surgem determinadas vacinas causa perplexidade na própria comunidade científica, na medida em que a segurança e a eficácia podem restar comprometidas.

Em suma, vacinas têm um íntimo ponto de contato com as crenças sociais. Ao fim e ao cabo, é esse o terreno epistêmico sobre o qual os Ministros do STF andarão: a antropologia da saúde. É possível que os pais deixem de vacinar seus filhos, tendo como fundamento convicções filosóficas, religiosas, morais e existenciais? No ARE 1.267.879, o STF decidirá se o tema é dotado de repercussão geral. E se for havido como tal, a incursão meritória será efetuada.

Neste ensaio, apresenta-se uma resposta ao questionamento propriamente dito.A resposta é depende. Há basicamente duas situações distintas: brasileiros que não vivem em isolamento e brasileiros que integram comunidades tradicionais. Vejamo-las:

<_u13a_p><_u13a_p>Hipótese 1: Brasileiros que não vivem em isolamento

Em regra, raciocinando-se a partir de uma eficácia horizontal dos direitos fundamentais, a vacinação tem natureza jurídica de dever fundamental4. É possível dizer que a Constituição proclamou, no artigo 1º, um Estado Democrático de Direitos e Deveres. Cuida-se, na espécie, de uma derivação da dignidade humana como heteronomia.

Doutrinariamente, fala-se em duas dimensões: a dignidade humana como autonomia e como heteronomia. Como autonomia, a cada pessoa há de ser reconhecida a liberdade individual para efetuar escolhas existenciais. Por outro lado, por força da dignidade humana como heteronomia, é possível limitar a liberdade individual em nome de valores substantivos compartilhados pela sociedade.

A ideia é esclarecida por Luís Roberto Barroso: "[...] escolhas individuais podem produzir impacto não apenas sobre as relações intersubjetivas,mas também sobre o corpo social e, em certos casos, sobre a humanidade como um todo. Daí a necessidade de imposição de valores externos aos sujeitos. Da dignidade como heteronomia"5 (2019, p.68). – Grifo nosso.

O ordenamento jurídico brasileiro posicionou-se com clareza sobre a temática. Exatamente na ponderação desses valores, o legislador brasileiro estabeleceu: "É obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias" (art. 14, § 1º, ECA). Tecnicamente, este é um dever inerente ao poder familiar e que é extensível às hipóteses de tutela e curatela (art. 249, ECA).

A lei 6259/75, que dispõe sobre o Programa Nacional de Imunizações, assevera que cabe ao Ministério da Saúde indicar as vacinações de caráter obrigatório (art. 3º), cujo cumprimento será comprovado por meio de Atestado de Vacinação (art. 5º).

O decreto 78.231/76, por sua vez, estatui que "É dever de todo cidadão submeter-se e os menores dos quais tenha a guarda ou responsabilidade, à vacinação obrigatória" (art. 29), assim entendidas aquelas tidas como relevantes no quadro nosológico nacional e devidamente elencadas pelo Ministério da Saúde (art. 27).

A Convenção sobre os Direitos da Criança,promulgada pelo Decreto n.º 99.710/1990, preceitua que "[a] liberdade de professar a própria religião ou as próprias crenças estará sujeita, unicamente, às limitações prescritas pela lei e necessárias para proteger a segurança, a ordem, a moral, a saúde pública ou os direitos e liberdades fundamentais dos demais." – Grifo nosso.

Especificamente no que diz respeito ao coronavírus (surto de 2019), a lei 13.979/2020 previu a possibilidade de que a vacinação possa ser adotada como medida de enfrentamento da emergência de saúde pública, como medida profilática (art. 3º, III, "d").

A rápida apresentação dessa constelação normativa revela que vacinas compulsórias não constituem uma novidade. Aliás,já no século XIX, a vacina contra a varíola era obrigatória para crianças e adultos, ainda que não houvesse significativa eficácia social. Como é evidente,convém aferir a compatibilidade vertical das normas infraconstitucionais mencionadas com o texto constitucional. No que concerne à validade, há conformidade das normas dos escalões inferiores com as normas do escalão superior?

A questão que se nos afigura é o teor da Constituição Federal, que reputou inviolável a liberdade de crença (art. 5º, VI), assim como proibiu a privação de direitos por motivos de crença religiosa, convicção filosófica ou política (art. 5º,VIII). Neste dispositivo, o texto constitucional admitiu até mesmo que obrigações legais possam ser afastadas.<_u13a_p>

Por exemplo, no ano de 2020, o Ministério Público de Minas Gerais ingressou com uma ação judicial para obrigar um casal a promover a vacinação dos seus filhos menores, exatamente como exige o Estatuto da Criança e do Adolescente. Todavia, os genitores alegaram que se converteram à Igreja Gênesis II da Saúde e da Cura(crença religiosa), que proíbe a "contaminação por vacina"6. Neste caso, o entendimento firmado foi unânime: Juízo de 1º grau, Promotoria de Justiça, Procuradoria de Justiça e Câmara do TJMG se posicionaram pela obrigatoriedade da vacina.

Por outro lado, no ano de 2019, o Ministério Público de São Paulo havia adotado a mesma iniciativa e a sentença proferida pelo Juízo de 1º grau teve um desfecho diferente. Entendeu-se que os pais tinham o direito de decidir a esse respeito. Os genitores alegaram que eram veganos (convicção filosófica) e que a medida era invasiva. Segundo eles, a vacina só seria ministrada após o menor completar dois anos de idade. O parquet interpôs um recurso para o TJSP e conseguiu reverter a decisão7.

No Direito Constitucional, há pelo menos duas célebres abordagens metodológicas para solucionar problemas práticos como esses.

a) a primeira, mais comum entre autores alemães,consiste em realizar o controle de constitucionalidade das leis infraconstitucionais que restringem direitos fundamentais, por meio da proporcionalidade. Trata-se do caso mais recorrente. É importante deixar claro que, em casos desse tipo, não se realiza um sopesamento8(SILVA, 2011. p. 179). Este é voltado para situações bem mais raras, quando inexiste lei restritiva e a colisão opera-se diretamente entre princípios.Consoante esta abordagem, parte-se de um pressuposto muito específico: o chamado suporte fático amplo.

b) a segunda abordagem é mais comum entre autores do constitucionalismo norte-americano (originalistas). Busca-se o significado original de um direito, para em seguida excluir do suporte fático a possível colisão. Parte-se de um suporte fático estrito. É o que será feito a seguir.

Em uma interpretação original(ista), as liberdades de crença previstas no artigo 5º, incisos VI e VIII, acomodariam a possibilidade de que pais não vacinassem seus filhos?

Na época em que promulgada a Constituição, vacinas já eram obrigatórias. Ilustrativamente, a lei 6259/75 e o decreto 78.231/76 exigiam compulsoriamente a imunização para algumas doenças.

Analisando-se a Ata de Comissões da Assembleia Nacional Constituinte, mais especificamente a 7ª Reunião Ordinária da Subcomissão de Saúde, Seguridade e do Meio Ambiente, ocorrida em 22/4/1987,verifica-se que o Constituinte Adylson Motta exprimiu sua visão sobre o tema a ser enfrentado pelo STF: "[...] eu acho que se deveria, inclusive, submeter o pai de uma criança que não leva o filho para ser vacinado, por exemplo, a alguma sanção"9.

Nenhum dos demais constituintes presentes refutou as palavras do constituinte Adylson Motta. Em outra ocasião, a palavra foi concedida ao Sr. Reinhold Stephanes, ex-Presidente do INPS e do INAMPS, na condição de convidado, que expôs: “Nós chegamos ao ponto, neste País [...] em que a Secretaria de Agricultura atingiu um índice maior de vacinação de cães, no Estado do Paraná, do que a Secretaria de Saúde na vacinação de crianças. O que é isso?! Há algo de errado em tudo isso"10.

É possível apontar diversos outros debates em que os constituintes explicitaram, de maneira reiterada, o inequívoco propósito de alcançar a autossuficiência na vacinação e ampliar a cobertura de imunização, notadamente na Subcomissão da Ciência e Tecnologia e da Comunicação. Não houve objeção dos constituintes quanto à civilizada ideia de difundir – e até exigir – a vacinação. Quando essa ideia foi apresentada,ela foi recebida sem objeção e com deferência pelos interlocutores presentes.

Milita em favor das normas infraconstitucionais referidas uma presunção juris tantum de constitucionalidade e a abordagem originalista não afasta o que se presume, muito pelo contrário.

No Direito Comparado, o escrutínio mais rigoroso sobre leis restritivas da liberdade individual costuma ser efetuado pelo constitucionalismo norte-americano. Mesmo assim,tem-se entendido que é possível estabelecer vacinas compulsórias.

No caso Jacobson v. Massachusetts (1905)11, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que os estados-membros podem, no exercício do poder de polícia e em apreço à saúde pública, editar leis que autorizem os governos locais a exigirem vacinas de seus residentes.

Na época, o Estado de Massachusetts havia editado uma lei permitindo que, nas suas cidades, exigissem vacinação contra varíola. Jacobson recusou-se e foi multado por isso. A Suprema Corte entendeu que incumbe às Secretarias de Saúde apontar se e quando uma vacina há de ser tida como obrigatória, mesmo diante da invocação do direito constitucional à liberdade previsto pela Décima Quarta Emenda. Neste caso, concluiu-se que a vacina compulsória não era uma medida desarrazoada ou arbitrária.

Anos depois, no caso Zucht v. King (1922)12,a Suprema Corte dos EUA reafirmou o caso Jacobson para dar um passo além: desta vez, decidiu que escolas poderiam recusar a matrícula de alunos não vacinados.<_u13a_p>

É certo que, nos EUA, cerca de 40% dos Estados permitem que pessoas recusem vacinas por razões religiosas. A decisão da Suprema Corte não obriga que os Estados exijam vacinas, mas permite que façam essa exigência.

A diferença para o constitucionalismo brasileiro seria que, entre nós, a norma do Estatuto da Criança e do Adolescente é de caráter nacional. É como se a mesma discricionariedade conferida aos estados-membros dos Estados Unidos tivesse sido irrogada, no Brasil, para a União. Por fim, o Congresso Nacional fez uso desta liberdade para escolher a obrigatoriedade da medida, em uma ponderação de valores que acertadamente elegeu a vida como um direito fundamental que desfruta de uma posição preferencial e a vacinação como um dever fundamental que deriva da dignidade como heteronomia.<_u13a_p>

Resta analisar a hipótese 2, que se ocupa de pessoas que vivem em comunidades tradicionais. Por exemplo, a vacinação de membros da comunidade Amish ou de crianças indígenas da etnia Baniwa. Tais casos merecem uma análise à parte, a ser efetuada no texto vindouro.

__________

1 Atas de Comissões, Subcomissão de Saúde, Seguridade e do Meio Ambiente, 14ª Reunião Ordinária, 6/5/1987, p. 188.

2 Fundação Oswaldo Cruz. A Revolta da Vacina. 25/4/2005. Disponível aqui.

3 Fundação Oswaldo Cruz. A Revolta da Vacina. 25/4/2005. Disponível aqui.

4 Para um estudo dos deveres fundamentais como categoria autônoma, abordagem que tem sido negligenciada no Brasil, confira-se: FONTELES, Samuel Sales. Tutela Coletiva e Direitos Fundamentais: uma Hermenêutica de Equilíbrio. p. 70 e seguintes. In: VITORELLI, Edilson (org.). Manual de Direitos Difusos. 2ª Edição. Salvador: Juspodivm,2019.

5 BARROSO, Luís Roberto. Um Outro País. Transformações no Direito, na Ética e na Agenda do Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 68.

6 O caso consta do portal de notícias do sítio eletrônico do TJMG. Disponível aqui.

7 O caso consta do portal de notícias do sítio eletrônico do MPSP. Disponível aqui.

8 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais. Conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2ª edição. São Paulo:Malheiros, 2011. p. 179.

9 Assembleia Nacional Constituinte,Atas de Comissões, 7ª Reunião Ordinária, 22/4/1987, p. 63.

10 Assembleia Nacional Constituinte, Atas de Comissões, Subcomissão de Saúde, Seguridade e do Meio Ambiente, 13ª Reunião Ordinária, 5/5/1987 p. 170.

11 197 US 11 (1905).

12 260 U.S. 174 (1922).

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Colunista

Samuel Sales Fonteles é promotor de Justiça no MP/GO. Doutorando em Direito pela UFPR. Ex-assessor Especial na Procuradoria-Geral da República. Visiting Scholar na Stanford Law School (USA). Mestre em Direito Constitucional pelo IDP (Brasília). Autor de obras jurídicas. Professor. Palestrante. Ex-promotor de Justiça no MP/RO. Ex-defensor público. Twitter: @Samuel_Fonteles