Serpentes e constituições brasileiras podem ter traços em comum. Às vezes, a depender de alguns fatores e circunstâncias, ambas terão uma expectativa de vida bastante aproximada.
Ao contrário dos Estados Unidos, que só conheceu uma constituição, o Brasil já vivenciou várias delas. Nem tantas quanto a França experimentou, é verdade, mas ainda assim é possível dizer que a História Constitucional Brasileira é demasiadamente volátil. Curiosamente, há três dias, o constitucionalista norte-americano Bruce Ackerman assinou um artigo cujo título estabelecia: “O Brasil Precisa de Nova Constituição”, mas que poderia ser intitulado como “O Brasil Precisa de Nona Constituição”. O Professor de Yale indicou até mesmo quando dever ocorrer a refundação do Estado Brasileiro: no ano de 20231.
Quantos dias viverá a Constituição de 1988? Sem dons premonitórios, não há como afirmar. A julgar pela longevidade das constituições brasileiras anteriores, é possível calcular uma média aritmética que forneça a expectativa de vida de uma constituição no Brasil.
A Constituição de 1824 durou 24.442 dias. Foi a mais longeva. A Constituição de 1891, a seu turno, subsistiu por 15.847 dias, conquistando o título da carta mais duradoura no universo das constituições republicanas. A Constituição de 1934 existiu por 1.213 dias. Um desempenho medíocre, mas a democracia não costuma ir muito longe por aqui. A Constituição de 1937 vigorou por 3.234 dias. A Constituição de 1946, por sua vez, viveu por 7.433 dias, firmando um novo recorde democrático. A Carta de 1967 teve uma vigência de 1000 dias, se considerarmos a EC n.º 01/69 como uma nova constituição. Adotada esta premissa metodológica, a Constituição de 1969 perdurou por 6.925 dias.
Em um cálculo por aproximação, desprezando-se as casas decimais, a expectativa de vida de uma constituição brasileira é de aproximadamente 23 anos. Se isto é muito para alguns animais, é muito pouco para um Pacto Social. No Brasil, constituições são efemerópteras. Documentos de existências fugazes como as moscas.
Em boa verdade, uma análise realista sugere que o número de 23 anos poderia ser ainda menor. Sozinha, a constituição do Império é responsável por 40,67% do total de longevidade das sete constituições, colaborando decisivamente para a elevação deste índice. Sucede que não vivemos - e certamente não viveremos - em uma monarquia. Se o cálculo só considerasse constituições republicanas, a vida útil de uma constituição brasileira seria abreviada significativamente.
De toda sorte, seja como for, o fato é que a expectativa de vida das constituições brasileiras é de cerca de 23 anos2. Trata-se de uma possibilidade, não de uma obrigatoriedade. Como se vê, a Constituição de 1988 já ultrapassou as expectativas. A Carta Outubrina vai completar 32 anos, portanto, há um risco considerável de que venha a ser sepultada a qualquer momento. Para se ter uma ideia mais acessível, é como se a Constituição de 1988 fosse uma pessoa com 106 anos3. Todo cuidado é pouco com seres humanos que cruzaram a linha temporal de um século de existência, ou seja, que completaram cem natalícios. Cada dia há de ser vivenciado como se não houvesse amanhã. Sem qualquer pretensão de louvar o hedonismo, carpe diem.
Foi difícil chegar até aqui. A prova dos riscos corridos pela Constituição de 1988 está nas próprias ameaças históricas que rondaram a sua existência e a sua integridade. Exemplos não faltam, senão vejamos:
a) 1999 - Luís Inácio Lula da Silva afirmou que Fernando Henrique Cardoso, presidente da República, “rasgou a Constituição”, razão pela qual defendeu uma nova constituinte4.
b) 2013 - Após as chamadas Manifestações de Junho, a Presidente Dilma Roussef anunciou: “Quero, nesse momento, propor o debate sobre a convocação de um plebiscito popular que autorize o funcionamento de um processo constituinte específico para fazer a reforma política que o país tanto necessita”5.
c) 2018 - Referindo-se a uma possível candidatura para um terceiro mandato, Luís Inácio Lula da Silva voltou a abordar o assunto: “A solução no meu governo vai ser convocar uma Constituinte"6.
d) 2018 - O senador Lindbergh Farias (PT-RJ) manifestou o mesmo propósito: “De pouco valerá eleger em outubro um novo presidente que vai ficar refém desse Congresso, que só atende interesses de grandes conglomerados financeiros, e de um Poder Judiciário, que assume papel de ditador [...] Não basta eleger Lula. Se não mudar esse sistema podre, não vão deixar Lula governar. [...] nós temos que chamar, imediatamente, uma Assembleia Nacional e colocar o povo para participar desse processo”7.
e) 2018 - O programa que documentava o Plano de Governo da chapa dos candidatos Fernando Haddad e Manuela D’Ávila, no item 1.4, estampava os seguintes dizeres: “O Brasil precisa de um novo processo constituinte [...]”8.
f) 2018 - O General Hamilton Mourão, por ocasião da campanha eleitoral para a Presidência da República, durante uma palestra proferida em Curitiba/PR, sugeriu uma nova constituinte. Inclusive, redigida por uma “comissão de notáveis”.
O Brasil tem uma obsessão constituinte. Nutre-se uma compulsão por constituições. Já faz algum tempo que a Constituição de 1988 vem sendo persistentemente ameaçada por ideias tendentes a aboli-la. Em vez de obedecer à Carta Outubrina, tal como ela é, cultiva-se a intenção de descartá-la. Em 2020, a ideia foi endossada por Bruce Ackerman.
A propósito, engana-se quem pensa que esta foi a primeira vez que o Professor de Yale se posicionou desta maneira sobre o Brasil. Há mais de vinte anos, Ackerman publicou um trabalho onde criticava o transplante do sistema presidencialista norte-americano para o Brasil, inclusive suscitando se não haveria um nexo etiológico entre o presidencialismo e distúrbios políticos da América Latina9.
Constituições não são efêmeras como bolhas de sabão ou como a alegria de um sábado à noite. Elas representam a fundação de um Estado Nacional. Toda constituição é minimamente conservadora, porque vocacionada à manutenção de si mesma10. Nas palavras do Justice Antonin Scalia, “Não se pode dizer que uma constituição naturalmente sugira mutabilidade; pelo contrário, todo o seu propósito é impedir a mudança – incorporar certos direitos de tal maneira que as futuras gerações não possam suprimi-los facilmente”11.
Raríssimas exceções podem ser encontradas no Leste Europeu, a exemplo da Constituição da Bulgária. A Constituição búlgara disciplinou o seu próprio sepultamento, estabelecendo as solenidades para que seja elaborada uma nova constituição (Capítulo IX). Definitivamente, uma norma que desafia a natureza das coisas. Se o povo búlgaro assim entender de fazer, a manifestação do poder constituinte originário é incondicional.
Inspirando-se nas palavras do poeta francês Henri de Régnier, "L'amour est éternel tant qu'il dure" (“O amor é eterno enquanto dure”). O usual é que, paradoxalmente, uma constituição se pretenda eterna, enquanto dure.
A Constituição de 1988 não deve ser descartada; ela deve ser obedecida. Tal como ela é, não como gostaríamos que ela fosse. Infelizmente, se a tendência se mantiver, a CF/88 será, sim, substituída por outra ordem constitucional.
Nunca apreciei ser portador de más notícias, mas os números sugerem que a nona se avizinha. Na tradição náutica, ao contrário do pincel romântico de Ivan Aivazovsky, a nona onda é tida como a mais ameaçadora.
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1 ACKERMAN, Bruce. O Brasil Precisa de Nova Constituição. Correio Braziliense. 13/07/2020. Disponível clique aqui.
2 De acordo com a base de dados da plataforma The Animal Ageing and Longevity Database, utilizada pelo Museu de Zoologia da Universidade de Michigan, a expectativa de vida de algumas espécies de serpentes, quando mantidas em cativeiro, pode ser de até 23 anos. Um exemplo é a “Lampropeltis triangulum” (falsa coral).
3 Considerando-se a expectativa de vida do brasileiro como de 76 anos (conforme dados do IBGE - 2020). A rigor, seria como se alguém, que nasceu no ano corrente (2020), tivesse completado 106 anos em (2126). Isso porque a Constituição de 1988 já excedeu a sua expectativa de vida em 39,1%.
4 Lula Defende uma Nova Constituinte. Folha de São Paulo, 29/08/1999.
5 O anúncio foi manifestado por ocasião de uma reunião com governadores e prefeitos, na data de 24/06/2013.
6 Lula chamará constituinte se for eleito em 2018. Brasil 247, 6 de julho de 2018. Disponível em: clique aqui.
7 Lindbergh Farias sugere convocação de Assembleia Constituinte. Agência Senado, 12/07/2018. Disponível em: clique aqui.
8 Plano de Governo 2019-2022 da Coligação “O povo Feliz de Novo” (PT, PC do B e PROS), de 11 de Setembro de 2018, p. 17.
9 ACKERMAN, Bruce. The New Separation of Powers. Harvard Law Review. Vol. 113, N.º 3, January 2000. pp. 634-725.
10 FONTELES, Samuel Sales. Direitos Fundamentais. 3ª ed. Salvador: Juspodivm, 2019. p. 39.
11 SCALIA, Antonin. A Matter of Interpretation. Federal Courts and the Law. Princeton University Press, 1997. p. 40.