Olhar Constitucional

Apostasia constitucional

Apostasia constitucional.

18/6/2020

No artigo anterior desta coluna, concluímos que o texto constitucional pode ser tão vago quanto as nuvens do céu, tornando-se um campo fértil para pareidolias. Quando um satélite fotografou o solo do Planeta Marte, muitos vislumbraram um rosto na superfície marciana. Assim são alguns juízes quando observam o texto poroso da Constituição.

É bom que se diga, todavia, que até mesmo o texto constitucional possui zonas mínimas de certeza. Nem tudo é duvidoso na interpretação constitucional. No ano de 1967, o ministro do STF Aliomar Baleeiro explicitou algumas obviedades. Por exemplo, "[q]uando se fala, na Constituição, no 'Senado', só pode ser no ‘Senado Federal'". E prosseguiu o jurista: "Por exclusão, podemos dizer o que é segurança nacional. Vejamos o que não é segurança nacional: bola de futebol não é segurança nacional, bâton de môça não é segurança nacional, cigarro de maconha não é segurança nacional"1.

Nem sempre sabemos ao certo o que uma coisa é, mas às vezes sabemos pelo menos o que ela não é. Uma norma constitucional pode significar muitas coisas, mas não pode significar todas as coisas. Diz-se polissêmica a regra que é dotada de polissemia, ou seja, a regra que carrega consigo vários – não infinitos - significados.

Se uma placa na orla marítima estampa os dizeres "é proibido o uso de biquíni", é possível que um turista conclua tratar-se de um ambiente conservador, onde trajes sumários não são vistos com bons olhos. Um naturista, ao observar os mesmos dizeres, na mesma placa, pode inferir que está em uma praia de nudismo.

Hans Kelsen diria que ambos estão corretos, porque ambos estão circunscritos à "moldura da norma"2. Do turista ao naturista, isto é, do maiô à nudez, não há biquíni. E não havendo biquíni, a norma foi observada. Porém, ninguém – frise-se, ninguém - está autorizado a inferir que a placa veicula uma permissão para a utilização de biquíni. Se, à vista da placa ostensiva e apesar dela, alguém tivesse a desfaçatez de afirmar que o biquíni é permitido, o intérprete seria visto pela comunidade como aquele que simplesmente repudia a regra por ela – a comunidade - estipulada. Um apóstata.

A apostasia consiste no ato de renegar ou repudiar uma dada crença, apartando-se do grupo que a comunga. Consoante o Código de Direito Canônico, o delito de apostasia é o repúdio total da fé, cuja pena é a excomunhão latae sententiae3. No Direito Islâmico, a sanção pode ser mais severa. Talvez o mais famoso apóstata tenha sido Judas, o traidor. Na Arte, a apostasia foi ilustrada pelo pincel do pintor francês Alfred Dehodencq, quando, no século XIX, retratou a execução de uma judia marroquina.

Alguns juízes repudiam a crença na Constituição, abandonando o Pacto Social. Laurence Tribe, professor de Harvard, descreve que determinados intérpretes simplesmente ignoram dispositivos constitucionais, a pretexto de que, nessas circunstâncias anormais, levar essas normas em consideração seria desastroso para a sociedade. Em casos tais, muitos agem como se as regras constitucionais fossem "invisíveis"4.

Diferentemente das pareidolias, que se projetam sobre cláusulas constitucionais vagas, a apostasia consiste na rejeição deliberada de textos constitucionais dotados de clareza meridiana. Três exemplos são ilustrativos.

I. O Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral da possibilidade de candidaturas avulsas para pleitos majoritários5. Na prática, isto significa que, na visão do Tribunal, saber se a Constituição deve ser cumprida tal como é, não como gostaríamos que ela fosse, é um tema que transcende os limites subjetivos da causa. Tamanha a relevância desta querela, há de ser considerada como um assunto pertinente para ser debatida no apelo extremo.

A Constituição de 1988 parece ser um tanto quanto simplória a respeito do tema. Diz o texto constitucional: "São condições de elegibilidade, na forma da lei: [...] a filiação partidária (art. 14, § 3º, V, CF). Meus olhos me dizem que a controvérsia está solucionada. A expressão "são condições de elegibilidade..." deve ser entendida como "a elegibilidade está condicionada por". Ou ainda: "só é elegível quem atender as seguintes condições".

Tamanha a clareza, o próprio Ministro Luís Roberto Barroso, que propôs a submissão da questão para que fosse reconhecida a repercussão geral, admitiu: "Sob a Constituição de 1988, tal como ela tem sido até aqui interpretada, subsiste a exigência de filiação partidária e, consequentemente, a proibição das candidaturas avulsas".

Se é do seu conhecimento, por que abandona o texto constitucional? Por um impulso cívico e bem-intencionado de corrigir a obra de Ulysses Guimarães, ajustando-a para os dias de hoje. Barroso esclarece que "[...] se há algum espaço da vida institucional que não está funcionando bem, as pessoas bem-intencionadas patrioticamente devem [...] pensar soluções que aprimorem o modelo institucional. Proteger a Constituição e aprimorar as instituições faz parte do núcleo da nossa missão constitucional". – Grifo nosso.

Não há como proteger a Constituição de si mesma. Se o texto exigiu filiação partidária como condição para a candidatura, protege-se este mandamento cumprindo-o com fidelidade e humildade. Alterações não são proteções. Pelo contrário, proteger é conservar.

No que parece ter sido um diálogo com Barroso, Luiz Fux encerra a questão: "[...] não cabe ao Supremo Tribunal Federal, ainda que com as melhores intenções, aperfeiçoar, criar ou aditar políticas públicas, ou, ainda, inovar na regulamentação de dispositivos legais, sob pena de usurpar a linha tênue entre julgar, legislar e executar"6 – Grifo nosso.

II. Há boas razões para achar que o impeachment de Dilma Roussef foi realizado sem que houvesse motivos jurídicos suficientes para essa medida disruptiva. Também há boas razões para considerar que existiu, sim, crime de responsabilidade. Entretanto, nenhuma razão há para, uma vez escolhida a via interpretativa do impeachment como a mais correta, deixar de aplicar a sanção de inabilitação para a função pública por 8 (oito) anos.

O texto constitucional é claro. No processo de impeachment, "[...] funcionará como Presidente o do Supremo Tribunal Federal, limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis" (art. 52, parágrafo único, CF/88) – Grifo nosso.

Onde está escrito "com inabilitação" deve-se entender "com inabilitação". A preposição "com" é um vocábulo antônimo da preposição "sem". Apesar de tudo, sob a presidência de um Ministro do STF, o Senado decidiu que uma coisa não implicaria a outra. Simplesmente, entendeu-se que haveria a perda do cargo, mas sem a inabilitação para o exercício da função pública. Apostasia constitucional.

Não por acaso, o Ministro Celso de Mello assinalou que "O parágrafo único do artigo 52 da Constituição da República compõe uma estrutura unitária incindível, indecomponível. De tal modo que, imposta a sanção destitutória consistente da remoção do presidente da República, a inabilitação temporária por 8 anos para o exercício de qualquer outra função pública ou eletiva representa uma consequência natural, um efeito necessário da manifestação condenatória do Senado".

III. O Supremo Tribunal Federal determinou a prisão do Senador Delcídio do Amaral, fundamentando que ele estaria em estado flagrancial pelos crimes de integrar organização criminosa (art. 2º, caput, lei 12.850/13) e de embaraçar investigações que envolvam organização criminosa (art. 2º, § , lei 12.850/13)7. Tais delitos são afiançáveis.

A Constituição, por sua vez, estabelece que "[...]os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável" (art. 53, § 2º, CF). A argumentação do STF de que o caso concreto reclamava a decretação de prisão preventiva, o que supostamente faria com que não fosse cabível a fiança (art. 324, IV, CPP), se levada a sério, autorizaria a prisão de parlamentares por quaisquer crimes que permitem a prisão preventiva. Para piorar, o Supremo expediu mandado de prisão, prática descabida em prisões em flagrante. Na essência, ignorando-se o rótulo, um senador da república foi preso preventivamente pelo STF. Apostasia constitucional.

Na apostasia constitucional, o texto constitucional é objeto de traição. Renega-se a constituição e a sua supremacia, ou seja, aparta-se do Estado de Direito e do dever de obediência e fidelidade que decorrem da Democracia. Trata-se, acima de tudo, de uma renúncia à humildade necessária para aceitar as convenções jurídico-sociais.

Quando juízes e tribunais deturpam textos vagos com suas pareidolias ou repudiam normas claras por atos de apostasia, consequências políticas, econômicas, sociais e jurídicas surgirão. Mas não vem ao caso examiná-las agora. Se é possível abordá-las nos ensaios vindouros, a tempo e a modo, com gráficos e dados empíricos...

...tanto melhor.

__________

1 STF, RE 62.731.

2 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. p. 390.

3 Cânones 751 e 1364.

4 TRIBE, Laurence H. The Invisible Constitution. Oxford Press, 2008. p. 12.

5 ARE 1054490, Tema 974.

6 ADI 6298 MC / DF, Rel. Min. Luiz Fux.

7 STF, Ação Cautelar 4039.

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Colunista

Samuel Sales Fonteles é promotor de Justiça no MP/GO. Doutorando em Direito pela UFPR. Ex-assessor Especial na Procuradoria-Geral da República. Visiting Scholar na Stanford Law School (USA). Mestre em Direito Constitucional pelo IDP (Brasília). Autor de obras jurídicas. Professor. Palestrante. Ex-promotor de Justiça no MP/RO. Ex-defensor público. Twitter: @Samuel_Fonteles