Olhar Constitucional

Pareidolia constitucional

Pareidolia constitucional.

5/6/2020

Quem olha para as nuvens à procura de unicórnios, certamente, os encontrará. E se procurasse um dragão, estaria igualmente propenso a vislumbrá-lo. Aos poucos, as nuvens assumem a forma do animal ou do objeto que se buscava enxergar. Trata-se de um fenômeno psicológico descrito pela literatura como pareidolia.

Aliás, até mesmo quem não busca imagens determinadas pode ser sugestionado a percebê-las. Suponhamos que um indivíduo contemple um quadro de arte abstrata de Jackson Pollock, quando é interrompido por alguém que indaga: "você foi capaz de identificar a sereia subliminarmente retratada por Pollock nesta obra?". Minutos depois, após algum empenho e esforço de abstração, a suposta sereia provavelmente seria encontrada.

Assim o é no Direito Constitucional. O texto constitucional, tanto quanto as nuvens do céu, é um campo fértil para as pareidolias. Por exemplo, há quem enxergue no artigo 142 da Constituição Federal uma autorização para intervenção militar constitucional, expressão que traduz um oximoro. Na Lógica, seria possível dizer que "intervenção militar" e "constitucional" são circunstâncias mutuamente exclusivas. Como a luz e a escuridão, não podem conviver simultaneamente, porque se repelem.

As pareidolias dizem mais sobre quem as enxerga do que sobre o objeto deturpado. Não por acaso, psicólogos apresentam imagens abstratas para avaliar as características psicológicas de quem as visualiza, a depender do que é visualizado. O psiquiatra suíço Hermann Rorschach foi responsável pelo famoso Teste de Rorschach, hoje realizado em muitos concursos para Magistratura e Ministério Público. O teste consiste em apresentar imagens que se fazem acompanhar de uma pergunta como "o que você vê?". Há candidatos a juízes que enxergam crianças brincando. Outros, crianças brigando. Apesar de controverso, o teste teria, então, a utilidade de revelar um pouco dos traços ocultos da personalidade do observador.

O texto constitucional é uma lâmina de Rorschach. Uma das razões para esse fenômeno é que, de uma maneira geral, constituições costumam usar linguagem vaga. Ao contrário de uma Instrução Normativa da Receita Federal, cuja função é esclarecer aquilo que nem mesmo a lei detalhou, o texto constitucional é visto de maneira "porosa". Fala-se em "textura aberta", dentre outras sinestesias cafonas que utilizamos para tentar dar concretude a algo abstrato.

Certa feita, Luís Roberto Barroso advertiu que "em termos práticos, a dignidade, como conceito jurídico, frequentemente funciona como um mero espelho, no qual cada um projeta seus próprios valores"1. É possível ir além. Não apenas a dignidade humana, mas quase todos os princípios fundamentais (Título I) e Direitos Fundamentais (sobretudo, no Título II, mas espalhados ao longo da Constituição) permitem uma relação especular.

Trata-se de uma questão bastante desafiadora, por duas razões:

i) Cidadãos brasileiros certamente não desejam juízes e tribunais entregues às suas pareidolias constitucionais.

A sociedade não espera magistrados que, à vista de um texto normativo, enxergam o que lhes aprouver. Há uma expectativa social de que o Direito fabricado pelos seus mandatários sufragados nas urnas seja aplicado com fidelidade democrática e obediência, ainda que admitamos que seres humanos tenham inclinações inconscientes.

Até mesmo o jurista alemão Karl Larenz, representante da chamada Jurisprudência dos Valores, censura essa prática indiferente ao Império da Lei2:

Para alguns juízes é óbvia a tentação a deixar de lado, devido a esta meta, o complicado e nem sempre satisfatório caminho relativo à interpretação e aplicação da lei, e retirar a sua resolução directamente do seu ‘arbítrio’ judicial, do seu sentimento de justiça aguçado pela sua actividade judicial, do seu próprio entendimento do que é aqui ‘justo’ e ‘equitativo’. A fundamentação da resolução assim obtida efectua-se posteriormente, sendo que aí é a meta, precisamente a resolução antecipada, que determina o percurso. Qualificámos anteriormente este procedimento como não legítimo, pois não toma a lei como bitola do achamento da resolução e comporta o perigo de manipulação da lei. Não pode, com certeza, impedir-se o juiz de formar uma opinião preliminar relativa à resolução que há-de achar. Ele pode esperar vir a encontrá-la confirmada pela lei. Mas esta fidelidade à lei, a que está obrigado, exige dele a disponibilidade para permitir que a sua opinião preliminar seja rectificada pela lei. Não é lícito introduzir na lei o que deseja extrair dela. [...] a lei, nalgumas matérias, dá fundamentalmente preferência à segurança jurídica, à conveniência ou praticabilidade, face à justiça do caso. Não pode o juiz, tão-pouco, simplesmente sobrepor-se à decisão valorativa do legislador a ela subjacente.

No caso Bush v. Gore (2000)3, a Suprema Corte dos Estados Unidos enfrentou um desacordo sobre a contagem de votos para a eleição presidencial. O julgamento foi 5x4. Coincidentemente, os cinco juízes conservadores votaram a favor do Partido Republicano, enquanto os quatro juízes mais liberais votaram fa­voravelmente ao Partido Democrata. Psicologicamente, um desfecho um tanto quanto suspeito.

ii) Cada Poder da República tem uma capacidade institucional.

A capacidade dos juízes é julgar conforme o Direito, valendo-se de argumentos de princípios (não de política)4. Em uma síntese feliz, o Ministro Luiz Fux já asseverou que "Ao contrário do Poder Legislativo e do Poder Executivo, não compete ao Supremo Tribunal Federal realizar um juízo eminentemente político do que é bom ou ruim, conveniente ou inconveniente, apropriado ou inapropriado. Ao revés, compete a este Tribunal afirmar o que é constitucional ou inconstitucional, invariavelmente sob a perspectiva da Carta da 1988" (ADI 6298 MC/DF).

Se, ao fim e ao cabo, juízes decidem desacordos sociais pautados no que é vantajoso ou desvantajoso, elogiável ou moralmente censurável, eles não fazem uso da sua capacidade institucional. A qualidade da decisão é a mesma do que aquela tomada por qualquer pessoa.

A opinião jurídica de um juiz até pode prevalecer sobre os julgamentos pessoais de um cidadão, mas a opinião não jurídica de um magistrado é despida de qualquer primazia sobre os seus concidadãos. Como pontuou o sociólogo francês Gustave Le Bon, no século XIX, "entre um célebre matemático e o seu sapateiro pode existir um abismo sob o aspecto intelectual, mas do ponto de vista do caráter e das crenças a diferença é em geral nula ou diminuta"5. Ora, se um Juiz primeiro procura as respostas para dilemas sociais dentro de si mesmo, para somente depois buscar um pretexto justificador no ordenamento jurídico, não há qualquer diferença entre ele, o julgador, e um cidadão não letrado nas ciências jurídicas. A esse respeito, Le Bon é categórico: "[e]m tudo o que é matéria de sentimento – religião, política, moral, afetos, antipatias etc. -, os homens mais eminentes muito raramente ultrapassam o nível dos indivíduos ordinários"6. Disso resulta que a opinião de um Juiz, quando não respaldada na Constituição e nas leis, traduz apenas um ponto de vista moral, como qualquer outro.

O problema está apresentado. A pergunta adequada é: como, então, dar conteúdo às disposições abertas da Constituição, assegurando um "governo das Leis, não um governo dos Homens" (aqui, convém acrescentar: e das Mulheres)? Se o texto constitucional é como uma lâmina de Rorschach, como se desvencilhar das pareidolias constitucionais?

No passado, Alexander Bickel, citado por John Hart Ely7, questionou: "Resta-nos fazer as perguntas mais difíceis. Que valores (...) são suficientemente importantes, ou fundamentais, ou seja o que for, para serem preferidos pela Corte em face de outros valores afirmados pelos atos legislativos? E como a Corte deverá desenvolvê-los e aplicá-los?"

Chegou o momento de responder como preencher este corpo sem alma chamado texto constitucional. O Direito natural? Os princípios neutros? A razão? Uma leitura moral da Constituição? Nada disso.

Há um poderoso antídoto para minimizar ou talvez eliminar as pareidolias constitucionais. Trata-se de uma abordagem jusfilosófica que permite ao intérprete buscar um resultado que até então desconhecia. Uma procura pelo desconhecido.

Nessa abordagem, que ainda não foi apresentada pelo articulista que vos escreve, diante de cláusulas constitucionais vagas, o intérprete não procurará no texto constitucional uma resposta fornecida pela sua intuição. Afinal, quem olha para as nuvens à procura de unicórnios, certamente, os encontrará. Somente quando se desconhece a resposta constitucional, não se cede ao impulso de visualizá-la na lâmina de Rorschach.

Que abordagem é esta? Já não é mais assunto pra hoje. Já fomos longe demais. Isso será abordado nos ensaios vindouros desta coluna.

Eu prometo.

__________

1 BARROSO, Luís Roberto. A Dignidade Humana no Direito Constitucional Contemporâneo. A construção de um conceito jurídico à luz de uma jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2014. pp. 9-10.

2 LARENS, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3ª Edição. Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa. 1997. p. 493.

3 531 U.S. 98 (2000).

4 DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 129.

5 LE BON, Gustave. Psicologia das Multidões. 3ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2018. Primeira edição publicada em 1895. p. 33-34.

6 Idem.

7 ELY, John Hart. Democracia e Desconfiança. Uma teoria do controle judicial de constitucionalidade. São Paulo: Martins Fontes, 2016. p. 57.

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Colunista

Samuel Sales Fonteles é promotor de Justiça no MP/GO. Doutorando em Direito pela UFPR. Ex-assessor Especial na Procuradoria-Geral da República. Visiting Scholar na Stanford Law School (USA). Mestre em Direito Constitucional pelo IDP (Brasília). Autor de obras jurídicas. Professor. Palestrante. Ex-promotor de Justiça no MP/RO. Ex-defensor público. Twitter: @Samuel_Fonteles