Nos últimos anos, o Brasil tem assistido a uma crescente utilização da arbitragem como um meio adequado para a resolução de conflitos, especialmente em contratos empresariais, como é o caso dos contratos de franquia. No entanto, algumas recentes decisões judiciais, especialmente do TJSP - Tribunal de Justiça de São Paulo1, têm levantado questionamentos sobre a segurança e previsibilidade deste instituto nas relações de franchising. Este artigo tem como objetivo tecer breves considerações a respeito do posicionamento jurisprudencial das Câmaras Especializadas do Tribunal de Justiça de São Paulo.
A arbitragem é amplamente reconhecida como uma ferramenta eficaz para resolver disputas em contratos complexos. Nos contratos de franquia, que podem ser classificados como híbridos2, as partes muitas vezes possuem uma relação empresarial de longo prazo e de elevada complexidade. A arbitragem, assim, é uma alternativa adequada, rápida e especializada, que permite, inclusive, o desafogamento do já bastante assoberbado Poder Judiciário. A escolha pela arbitragem geralmente é realizada por meio de cláusula compromissória, presente no contrato, que direciona qualquer conflito contratual futuro para uma câmara arbitral.
De modo a manter a segurança jurídica de tal cláusula e estabelecer a força necessária para vinculação das partes à arbitragem, há um princípio basilar: o da competência-competência3. Esse princípio estabelece que é o próprio tribunal arbitral quem, em primeiro lugar, tem a competência para decidir sobre sua jurisdição, ou seja, se ele pode ou não julgar a disputa em questão. Esse princípio busca garantir que a arbitragem funcione de forma autônoma e eficiente, sem intervenções desnecessárias do Judiciário.
Contudo, há exceções a esse princípio. Segundo a jurisprudência da Col. STJ, o Judiciário pode analisar e afastar a vinculação das partes à arbitragem, desde que a patologia da cláusula seja evidente, isto é, que seja possível verificar a sua patologia prima facie4. Exemplificativamente, são os casos em que, de plano, verifica-se a inexistência da cláusula arbitral ou que estão ausentes os requisitos necessários para sua validade ou eficácia (e.g. cláusula arbitral vazia).
Vale dizer, só é permitido ao Judiciário, em hipóteses excepcionais, adentrar à análise perfunctória sobre a existência, validade e eficácia da cláusula arbitral. É defeso, portanto, analisar questões relacionadas à relação contratual para, então, verificar a validade e eficácia do compromisso arbitral (e.g. desequilíbrio contratual, dependência econômica e hipossuficiência).
Apesar dessa posição ser, até recentemente, consolidada nos Tribunais de Justiça e no STJ, houve a recente prolação de acórdãos que afastaram a obrigatoriedade das partes de dirimirem seus conflitos perante a arbitragem, mesmo com a existência e celebração de cláusula compromissória. Esses julgamentos, que serão indicados a seguir, têm algo em comum: os contratos eram de franquia.
Recentemente, o TJSP, em julgamento da apelação 1003513-24.2020.8.26.0271, reconheceu uma cláusula arbitral como patológica, sob o fundamento de que não houve a devida prestação de informação ao franqueado sobre os custos e despesas para acesso à arbitragem. Segundo a decisão, essa informação deveria estar na COF - Circular de Oferta de Franquia, até porque um dos pilares da relação de franchising é a prestação adequada de informação e esclarecimentos ao franqueado. O tribunal entendeu que a ausência dessas informações violaria o princípio da boa-fé objetiva, um pilar fundamental nas relações contratuais, privaria de todo o efeito do negócio jurídico (CC, art. 122) e a sua celebração caracterizaria abuso de direito (CC, art. 187), dado que impediria o acesso à justiça ao franqueado. Por esses motivos, houve o reconhecimento de invalidade da cláusula compromissória.
A decisão trouxe à tona uma importante discussão: até que ponto a falta de informação na COF pode justificar o afastamento de uma cláusula arbitral validamente acordada pelas partes? Embora a legislação de franquia exija transparência e uma comunicação clara entre franqueador e franqueado, há de se considerar o contexto completo. O franqueado, como empresário, tem acesso facilitado a informações sobre os custos da arbitragem, que podem ser consultados diretamente nos sites das câmaras arbitrais. Seria razoável exigir que todos os detalhes estejam contidos na COF, especialmente quando essas informações são de fácil obtenção?
O tema acendeu debates tanto no meio do franchising quanto na comunidade arbitralista. Nessa linha, em consulta realizada pelo CBAr - Comitê Brasileiro de Arbitragem, a professora Aline Terra5, posicionou-se em relação a este entendimento do TJSP, principalmente sobre o dever de informação:
“O dever de informação convive, portanto, com o ônus de autoinformação, expressão do dever geral de diligência que a todos incumbe para tutela e promoção de interesses próprios. Referido dever não se impõe de maneira uniforme a todos, mas ostenta diferentes graus conforme as circunstâncias do caso concreto, dentre as quais se destacam aquelas relativas aos meios disponíveis para obtenção da informação mediante esforços razoáveis: se é possível ao agente obter a informação adotando esforços razoáveis e padrão médio de diligência, mas não o faz, suportará as consequências adversas da sua conduta negligente. (...) Esclarecidas as bases jurídicas, é possível afirmar que o dever de informação imposto ao franqueador na fase pré-contratual não ostenta a extensão que o acórdão lhe conferiu. Encerra ônus do candidato a franqueado se autoinformar acerca dos custos relativos à solução de controvérsias via arbitragem, ainda que o contrato seja celebrado por adesão.”
Em julgado ulterior (apelação 1026438-08.2021.8.26.0100), a 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJSP, uma vez mais, afastou cláusula compromissória firmada em contrato de franquia. Neste decisum, a corte entendeu que a alteração da situação econômica da parte não poderia impedi-la de buscar a tutela jurisdicional de seus pleitos, sob pena violação ao direito constitucional previsto no art. 5º, inc. XXXV.
Neste caso concreto, a parte não teria recursos para custear o procedimento arbitral. E, assim, afastou-se o cumprimento da cláusula, “baseada na teoria da imprevisão e no princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição”.
Em oportunidade ainda mais recente, o TJSP, ao julgar a apelação 1086295-14.2023.8.26.0100, considerou que a cláusula compromissória, celebrada em contrato de franquia, era inválida, pois não houve o cumprimento do requisito disposto no art. 4, §2º, da lei de arbitragem, que estabelece os requisitos de validade para a cláusula de arbitragem em contrato de franquia.
Segundo a decisão, não há menção à arbitragem no local destinado para assinatura específica da cláusula de eleição de foro, motivo pelo qual a cláusula seria inválida. Isto é, embora o franqueado tenha assinado especificamente uma cláusula que confirmava a sua declaração quanto à cláusula de foro, que estabelecia a arbitragem, o TJSP entendeu que não houve o cumprimento do requisito constante do art. 4º, §2º, da lei de arbitragem.
Conquanto as decisões acima tenham causado grande repercussão no meio jurídico, é importante destacar que há inúmeros precedentes no âmbito do TJSP, igualmente recentes, reconhecendo a validade e eficácia de cláusulas compromissórias em contratos de franquia. Nesse sentido e apenas a título de ilustração: apelação 1124890-53.2021.8.26.0100; apelação 0020148-50.2023.8.26.0576; apelação 1064938-46.2021.8.26.0100; apelação 1132102-38.2015.8.26.0100.
As recentes decisões do TJSP geraram preocupações no meio jurídico, diante da insegurança acarretada em torno da utilização da arbitragem no segmento do franchising. Como se sabe, a previsibilidade e a confiança que deveriam permear as relações empresariais ficam comprometidas com a variação do posicionamento jurisprudencial acerca de determinados temas, o que, por sua vez, pode afetar negativamente o ambiente de negócios e o fluxo de investimentos no país.
Diante dessa crescente insegurança jurídica, será fundamental observar como o STJ se posicionará sobre a força vinculante das cláusulas arbitrais. O STJ tem, em diversas ocasiões, reforçado a importância da arbitragem como um mecanismo legítimo e eficiente de resolução de conflitos, e sua jurisprudência tende a proteger a autonomia da vontade das partes, especialmente em relações empresariais.
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1 TJSP, Apel. n. 1086295-14.2023.8.26.0100, Rel. Des. Cesar Ciampolini, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 19.6.2024 e TJSP, Apel. n. 1003513-24.2020.8.26.0271, Rel. Des. Alexandre Lazzarini, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 1.6.2022.
2 Não se encaixam como contratos típicos de associação de agentes econômicos (contratos de sociedade – interesses convergentes entre as partes) e nem contratos de intercâmbio (interesses divergentes entre as partes). Como ensina o professor e ministro Eros Grau: “nos contratos de comunhão de escopo (...) os interesses dos contratantes são paralelos. Se um dos contratantes sofre prejuízo, os outros também o suportam. Do espírito de solidariedade de interesses que os caracteriza, o lema: a vantagem dele é a minha vantagem, minha vantagem é a sua vantagem” (Eros Grau, Licitação e contrato administrativo, São Paulo: Malheiros, 1995, pp. 91/92).
3 Art. 8º, parágrafo único, da Lei 9.307/96: “[c]aberá ao árbitro decidir de ofício, ou por provocação das partes, as questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória.”
4 "(...) o Poder Judiciário pode, nos casos em que prima facie é identificado um compromisso arbitral 'patológico', i. e., claramente ilegal, declarar a nulidade dessa cláusula, independentemente do estado em que se encontre o procedimento arbitral" (STJ, REsp nº 1.602.076/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, j.15.9.2016)
5 Aline de Miranda Valverde Terra. Parecer Jurídico. Disponível aqui. Acesso em 23 de set. de 2024