Nunca foi muito fácil falar em arbitragem esportiva e ser imediatamente compreendido.
O imaginário popular costuma relacionar esse termo com a figura do cidadão que, ungido pelo sistema esportivo como árbitro e munido de um apito e de um conjunto de cartões (vermelho e amarelo atualmente), garante o bom andamento de uma partida de futebol1. É, de fato, arbitragem. E é esportiva.
Em tempos em que lançar mão do google costuma solucionar problemas, nesse caso a emenda pode ficar pior que o soneto. Segundo páginas e páginas de resultados, no mundo das apostas, arbitragem esportiva é sinônimo de apostas certas ou sem riscos (surebets), nas quais o jogador aproveita-se das odds das diversas casas de apostas para sempre ganhar. Mais uma que, não se pode negar, é arbitragem, e é esportiva.
Num meandro labirinto como esse torna-se tarefa das mais inglórias; digna de um gol de placa, explicar que por arbitragem esportiva também se pode entender um meio adequado de solução de controvérsias naquela seara. E é desta que iremos tratar.
Tão difícil quanto situar a arbitragem como meio adequado de solução de controvérsias no meio esportivo é a tarefa de desvendar as várias espécies de “arbitragens esportivas” supostamente enquadradas nesse gênero, eis que parte desses fenômenos costumam apresentar elementos bastante semelhantes a uma arbitragem, mas carecem do elemento que mais distingue esse instituto: A voluntariedade2.
Dentre as arbitragens esportivas que fazem jus ao nome e carregam todos os elementos daquele instituto, inclusive a voluntariedade, pode ser citada aquela objeto de cláusula ou compromisso entre atletas, clubes, federações, entre outros, voltada a dirimir disputa envolvendo direitos patrimoniais disponíveis.
Na mesma esteira, a arbitragem trabalhista esportiva, a qual, desde que observados os contornos estabelecidos pela legislação trabalhista (art. 507-A da CLT) e atendidos os parâmetros que vêm sendo delineados pela jurisprudência da justiça do trabalho, é admissível como forma regular de utilização deste mecanismo privado de solução de controvérsias.
Os procedimentos arbitrais carreados nestes casos podem, em tese, ser “ad hoc” ou institucionais e, neste último caso, pode-se lançar mão de qualquer câmara arbitral idônea, passando pelas câmaras tradicionais até chegar a câmaras “a priori” especializadas, como a CNRD - Câmara Nacional de Resolução de Disputas da Confederação Brasileira de Futebol e o CBMA - Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem, o qual possui, inclusive, regulamentos próprios para a arbitragem esportiva3-4.
Por outro lado, a chamada cláusula estatutária/regulamentar, utilizada na seara esportiva através da inclusão de cláusula arbitral em regulamento ou estatuto, pode ensejar problemas relacionados ao citado elemento basilar da voluntariedade.
Conforme já afirmei em outra oportunidade5, a posição monopolística exercida pelas entidades de administração do esporte no que concerne às respectivas modalidades atribui-lhes uma posição de poder em relação àqueles que delas dependem – em termos de chancela esportiva de resultados – para o livre exercício profissional. Assim, diferentemente do que ocorre com o acionista que opta por ingressar nos quadros de uma companhia e, ao fazê-lo, adere ao respectivo Estatuto, os profissionais do esporte não têm a opção de fazer ou não parte da Federação da respectiva modalidade. Se querem seus resultados validados nacional e internacionalmente, precisam fazê-lo. Assim, a cláusula arbitral estatutária não pode ter o mesmo tratamento em uma e outra situação. A voluntariedade, na seara esportiva, deve ser efetiva e não pressuposta.
Como exemplo desse tipo de “arbitragem esportiva”, pode ser citado o art. 59 do estatuto do COB - Comitê Olímpico Brasileiro6, que institui o tribunal arbitral do desporto para julgar, em primeira instância e de acordo com as regras de arbitragem, uma série de disputas.7 A previsão repete-se nos estatutos de entidades filiadas, como a CBV - Confederação Brasileira do Voleibol, que chega a prever, no art. 69, que “caso as partes falhem em chegar a um consenso amigável, os conflitos ou litígios deverão ser submetidos, em caráter cogente, à Arbitragem (...)”8, solapando de vez a voluntariedade que deveria reger a eleição de tal meio de solução de conflitos. Outro exemplo – denominado por alguns de competência associativa – é o procedimento previsto no Regulamento da CNRD - Câmara Nacional de Resolução de Disputas da Confederação Brasileira de Futebol (art. 3º) nas situações em que não há convenção de arbitragem firmada pelas partes, sendo a competência também lastreada na previsão estatutária ou regulamentar, independentemente da manifestação de vontade dos envolvidos.
Por fim, uma última espécie relevante de arbitragem esportiva é a desenvolvida no âmbito da CAS - Corte Arbitral do Esporte, tribunal arbitral com sede na Suíça especializado em questões esportivas e com atuação como instância única ou recursal em disputas relacionadas ao esporte9. Sem adentrar nas hipóteses de previsão do CAS como instância recursal nas arbitragens por referência mencionadas (o que é bastante comum e recai na mesma problemática da voluntariedade já explorada), há uma atuação bastante interessante daquela corte no que diz respeito à segunda instância recursal de atletas internacionais em caso de procedimentos envolvendo potenciais violações à regra antidopagem10. Trata-se de situação “sui generis” em que a primeira instância do procedimento é levada a cabo no bojo da justiça desportiva antidopagem – instância de natureza não arbitral11 – e a segunda instância – de acordo com a opção do atleta12 – é levada a cabo no bojo de uma arbitragem instituída perante o CAS.
Com essa última espécie “sui generis” que mistura justiça desportiva e arbitragem esportiva, verdadeira jabuticaba brasileira, para usar da expressão tão comumente utilizada pelo prof. Carlos Alberto Carmona, retomo o início desta coluna, agora tendo demonstrado, e não apenas afirmado, o quanto é difícil navegar pelas diversas “arbitragens esportivas” existentes. Dar nome aos bois não é tarefa fácil e esse foi apenas o primeiro capítulo do que ainda pretendo escrever sobre esse tema.
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1 Muito embora é sabido que o árbitro é também um ator das demais modalidades esportivas, o imaginário popular não se afasta da figura, outrora vestida em listras brancas e pretas, que simboliza as regras do jogo no campo de futebol, podendo, por vezes, ser o algoz de uma derrota, quando multidões creditam à sua “má prática” o resultado indesejado de sua equipe do coração.
2 A voluntariedade da arbitragem lhe é elemento constitutivo e essencial na medida em que a Constituição Federal assegura, no art. 5º, inc. XXXV, que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Ou seja, tal “exclusão” deve ser voluntária. Nessa mesma linha, Carlos Alberto Carmona afirma que “a escolha do meio adequado de solução de controvérsias é sempre voluntária, ou facultativa, eis que não existe no Brasil a arbitragem obrigatória (abolida entre nós em 1866)”. CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo: um comentário à Lei nº 9.307/96. 4ª Ed. São Paulo: Atlas, 2023, p. 35.
3 Disponível aqui.
4 Disponível aqui.
5 NUNES, Tatiana Mesquita. Olímpia e o Leviatã: a participação do Estado para garantia da integridade no esporte. Belo Horizonte: Forum, 2023.
6 Art. 59. Fica instituído o Tribunal Arbitral do Desporto, o qual terá competência para julgar, em primeira instância, de acordo com as regras de arbitragem estabelecidas na legislação brasileira (Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996), através do qual todos os membros de poderes e de todos e quaisquer órgãos do COB, bem como as entidades associadas, liadas, vinculadas ou reconhecidas, comprometem-se desde já a submeter à arbitragem os litígios que possam surgir, sempre observadas as disposições de seu regimento interno e suas próprias regras de procedimento: I - as questões de qualquer natureza oriundas dos Jogos Olímpicos, Jogos Pan-Americanos e Jogos Sul-Americanos, ou a eles relacionadas, ou quaisquer outras competições esportivas de igual natureza nas quais seja o COB o responsável pelo envio da delegação brasileira; II - as questões entre as entidades filiadas ou vinculadas ao COB e suas respectivas Federações e associações liadas, seus dirigentes, atletas e treinadores, ou entre qualquer destes e o Comitê Olímpico Brasileiro; III - as questões entre o COB, quaisquer das entidades referidas no item II deste artigo, destas entre si, seus dirigentes, atletas e treinadores, e terceiros com os quais tenham estabelecido relações contratuais ou mantenham vínculo em decorrência de disposições legais; IV - as questões entre as pessoas jurídicas referidas no item II deste artigo; V - as questões decididas pelos Poderes do COB.
7 Esta previsão causou bastante discussão no bojo do caso “Wallace”, no qual uma decisão do Conselho de Ética do COB foi levada, em recurso, para apreciação em arbitragem instituída no CBMA (naquele momento, a Câmara eleita pelo COB na qualidade de “Tribunal Arbitral do Desporto”).
8 Disponível aqui.
9 Disponível aqui.
10 A disciplina em questão encontra-se no art. 8º do Decreto 8.692/2016 e em diversas disposições do Código Brasileiro Antidopagem.
11 A Justiça Desportiva, com assento no art. 217, § 1º, da Constituição Federal de 1988, difere da arbitragem, na medida em que, no mínimo durante o período de sessenta dias a que se refere o § 2º, tem exclusividade na apreciação das disputas envolvendo disciplina e competições esportivas, diferindo a apreciação judicial a que e refere o art. 5º, inc. XXXV, da Constituição.
12 Embora, neste caso, o elemento voluntariedade seja solucionado no que diz respeito ao atleta, dúvidas podem surgir em casos nos quais a submissão de recurso ao CAS seja feita por outras partes interessadas. Nada obstante, a discussão é bastante complexa para os limites desta coluna, cabendo estudo aprofundado em outra oportunidade.