Observatório da Arbitragem

Arbitragem tributária: Análise das implicações do PL 2486/22

O PL 2.486/22, do senador Rodrigo Pacheco, permite o uso da arbitragem em todas as fases do contencioso tributário, incluindo conflitos já existentes. Destaca-se por permitir arbitragem tributária mais ampla, mas enfrenta críticas, como a restrição para créditos reconhecidos e a limitação de questões constitucionais.

27/8/2024

Introdução

O projeto de lei 2.486/22, de autoria do atual presidente do Senado Federal, senador Rodrigo Pacheco (PSD/MG), dispõe sobre o uso da arbitragem para dirimir controvérsias tributárias, sem restrição à fase processual, podendo, inclusive, ser adotada em conflitos já instaurados no contencioso administrativo e judicial. Trata-se de importante avanço em relação aos demais projetos em andamento, cujo alcance é extremamente limitado.

Ao analisar as disposições preliminares do PL 2.486/22, entretanto, surgem questões complexas que precisam de revisão por parte dos legisladores. O texto proíbe a arbitragem tributária e aduaneira para créditos que tenham reconhecimento inequívoco, mesmo extrajudicial, pelo devedor. Essa disposição é controversa, uma vez que há jurisprudência no sentido de reconhecer que a confissão da dívida não impede o questionamento judicial da obrigação tributária.

Além disso, o STJ já decidiu que parcelamentos e transações realizados após o prazo prescricional não restabelecem a exigibilidade do crédito tributário. Esse tema não é novo e a doutrina se divide. Alguns acreditam que o sistema de precedentes deve ser seguido sempre que houver conflito entre fisco e contribuinte. Outros defendem a total liberdade do juízo arbitral, argumentando que a função do árbitro é solucionar o conflito apresentado de forma autônoma e independente.

Propostas do PL 2.486/22

Entre as principais mudanças, o projeto de lei prevê, em seu art. 5º, inciso II, que os precedentes judiciais são normas jurídicas para fins de julgamento arbitral, impondo ao árbitro o dever de segui-los, conforme o art. 927 do CPC, sob pena de nulidade da sentença arbitral (art. 29, inciso X do PL 2486/22).

Além disso, o art. 31 do projeto de lei enfatiza a aplicação dos temas de repercussão geral 881 e 885, destacando a observância aos precedentes constitucionais nas relações de trato continuado e impondo a interrupção dos efeitos de sentenças arbitrais que contrariem tais entendimentos.

O PL 2.486/22 apresenta diversas propostas para a arbitragem tributária, mas um dos aspectos mais incentivadores para os contribuintes é o desconto incidente nas multas, que servirá como verdadeiro estímulo para a adesão ao processo arbitral.

Críticas e implicações

A) Arbitrabilidade – limites materiais

A principal função da arbitragem é oferecer uma forma mais rápida e eficiente de resolver conflitos, contribuindo para a redução do elevado contencioso fiscal. A adoção de um sistema de precedentes é crucial para uniformizar entendimentos, criar previsibilidade e confiança no Direito, promover igualdade e isonomia, favorecendo a pacificação dos conflitos.

Já votado pelo Senado Federal e enviado à Câmara dos Deputados, o PL 2.486/22 estabelece que a arbitragem tributária deve seguir os precedentes judiciais. O texto até então aprovado proíbe a arbitragem tributária e aduaneira para créditos que tenham reconhecimento inequívoco, mesmo que extrajudicial, pelo devedor. Esta disposição é controversa, pois há jurisprudência que reconhece que a confissão da dívida não impede o questionamento judicial da obrigação tributária. Além disso, como já foi dito, o STJ decidiu que parcelamentos e transações realizados após o prazo prescricional não reestabelecem a exigibilidade do crédito tributário.

O PL 2.486/22 trata das matérias que podem ser submetidas à arbitragem tributária de forma negativa, ou seja, especifica nos parágrafos 1º e 2º do art. 4º àquelas que não podem ser julgadas por arbitragem. Estas incluem: 1) controvérsias envolvendo a constitucionalidade de normas jurídicas ou a discussão sobre leis em tese, e 2) sentenças arbitrais cujos efeitos prospectivos resultem, direta ou indiretamente, em regime especial diferenciado ou individual de tributação.

A restrição à utilização da arbitragem para resolver disputas que envolvam questões de constitucionalidade merece reflexão, o que parece reduzir excessivamente o alcance da arbitragem, especialmente na área tributária, na qual muitas questões estão relacionadas a matérias constitucionais.

Conforme o projeto de lei, as matérias submetidas à arbitragem serão àquelas previamente escolhidas pela Fazenda Pública. Dessa forma, não há risco de um contribuinte impor unilateralmente o julgamento arbitral de uma matéria – seja constitucional ou não – que a Fazenda Pública considere inadequada para tal método. Assim, não deveria haver limitação prévia na lei sobre as matérias passíveis de julgamento por arbitragem. Tampouco há impedimento técnico para a submissão de conflitos envolvendo matéria constitucional à arbitragem, desde que no âmbito do controle difuso, uma vez que o controle concentrado é reservado ao STF.

Quanto à vedação de que a sentença resulte em “regime especial diferenciado ou individual de tributação”, também parece inadequada, pois, na esfera tributária, toda sentença judicial de algum modo atribui ao sujeito passivo um tratamento diferenciado em relação a outros que não levaram a mesma discussão ao Poder Judiciário.

Há ainda questionamentos sobre as situações adequadas para a arbitragem tributária. Se os precedentes devem ser seguidos independentemente da via adotada, o resultado da resolução do conflito, seja na arbitragem ou no Judiciário, deveria ser o mesmo. Estas questões podem e devem ser discutidas, mas parece que a arbitragem tributária se limitará a casos específicos que envolvem provas técnicas complexas e de elevado valor para as partes, permitindo que elas aproveitem todos os benefícios.

Entre as propostas estão a introdução de mediação e arbitragem nas discussões tributárias com a União, uma nova lei para o processo administrativo fiscal, mudanças no CARF -Conselho de Administração de Recursos Fiscais e a criação de um código de defesa dos contribuintes. O objetivo é reduzir litígios e encontrar soluções para conflitos entre contribuintes e autoridades sem a necessidade de recorrer ao Judiciário, um passo importante para a redução da litigiosidade no país, pois, de acordo com dados do CNJ, as execuções fiscais representam um terço dos processos em tramitação, com uma taxa de solução de apenas 12%.

A iniciativa é legítima, um verdadeiro avanço, até bem pouco inexistente. Incentivar outras formas de prevenção e solução de conflitos, além daquelas que já conhecemos, significa uma evolução positiva. A aprovação desse projeto dá ensejo a criação de um espaço menos conflituoso e mais harmônico entre o contribuinte e a Fazenda Nacional e, a depender do seu sucesso, extensivo às fazendas estaduais e municipais.

O senador Efraim Filho (União-PB), relator da comissão temporária, destacou em audiência que essa iniciativa é tão importante quanto a reforma tributária, evidenciando que a litigiosidade gerada pelos problemas do processo administrativo é central no chamado Custo Brasil.

B) Observância aos precedentes vinculantes dos tribunais superiores

Em paralelo, o projeto de lei determina que a sentença arbitral deve respeitar os precedentes reiterados e vinculantes dos tribunais superiores, sob pena de nulidade. Estabelece que a arbitragem tributária deve ser decidida com base na legislação brasileira, devendo observar os precedentes vinculantes dos tribunais superiores, que assumem a natureza de normas jurídicas do ordenamento. Além disso, o PL prevê que será “nula a sentença arbitral se: (...) art. 29, inciso X – proferida em contrariedade a precedente qualificado de que trata o art. 927 da lei 13.105/15”.

Os precedentes vinculantes compõem o ordenamento jurídico com a mesma importância das demais normas do sistema. Portanto, a jurisprudência reiterada dos tribunais superiores tem significativa importância na conformação do sistema aplicável. É inevitável, portanto, que sua aplicabilidade nos julgamentos arbitrais seja estabelecida, sob pena de nulidade, conforme previsto pelo PL 2.486/22.

Além disso, o projeto sugere a aplicação subsidiária da lei 9.307/96 à arbitragem tributária e aduaneira, o que pode ser visto como uma tentativa de aproximar modelos com pressupostos distintos. A arbitragem, como instituto geral, é um processo de julgamento privado que busca oferecer uma justiça adequada à administrada pelo Poder Judiciário, permitindo que partes capazes de contratar utilizem-na para resolver litígios sobre direitos patrimoniais disponíveis. 

Expandir amplamente o campo arbitrável em matéria tributária e aduaneira é uma iniciativa ousada, desafiadora e controversa, especialmente ao considerar a arbitragem para a prevenção de controvérsias no contencioso administrativo. Nesses casos, mesmo que a prevenção não seja a essência da arbitragem, submete-se a constituição do crédito tributário a um terceiro fora da relação obrigacional.

É sabido que a atribuição do tributo é uma atividade exclusiva da autoridade administrativa, mesmo que essa tarefa se reduza à mera homologação. A intervenção de terceiros na constituição do crédito tributário pode sugerir um avanço normativo inadequado em matéria reservada à lei complementar, levantando dúvidas sobre a constitucionalidade do projeto.

Estas são apenas algumas impressões iniciais que anunciam um debate fervoroso pela frente.

Conclusões

O PL 2.486/22 representa um avanço significativo na arbitragem tributária ao permitir a aplicação desse método para resolver controvérsias em todas as fases do processo, tanto no contencioso administrativo quanto no judicial. Esta flexibilidade é um destaque em comparação a outras propostas, como o PL 4.257/19 e o PL 4468/20, que têm escopos mais restritos.

Ao não limitar previamente as matérias tributárias passíveis de arbitragem e ao permitir que estas sejam estabelecidas por ato da Fazenda Pública, o PL 2.486/22 se destaca pela sua abordagem inclusiva. No entanto, a ausência de regras detalhadas sobre o procedimento arbitral representa uma lacuna que pode ser preenchida com a aplicação subsidiária da lei de arbitragem.

A vedação de arbitragem para disputas envolvendo a constitucionalidade e a imposição de regimes especiais é uma limitação que reduz o potencial da arbitragem tributária. Embora o projeto estabeleça restrições, como a vedação à arbitragem em disputas que envolvam a constitucionalidade de normas jurídicas, essa limitação é aplicada apenas em tese, pois as matérias submetidas à arbitragem serão escolhidas previamente pela Fazenda Pública. Assim, a vedação à inconstitucionalidade não impede, de fato, a resolução de questões complexas e significativas por meio da arbitragem, oferecendo uma oportunidade para reduzir a litigiosidade e encontrar soluções eficazes no âmbito tributário.

Um ponto de destaque do PL 2.486/22 é a exigência de respeito aos precedentes vinculantes dos tribunais superiores, garantindo que a arbitragem esteja alinhada com o ordenamento jurídico existente. Essa exigência é fundamental para assegurar a uniformidade e a previsibilidade nas decisões arbitrais, especialmente em um campo no qual a jurisprudência dos tribunais superiores tem papel importante.

Um dos aspectos mais atraentes do projeto é o desconto incidente nas multas tributárias para os contribuintes que optarem pela arbitragem. Esse incentivo financeiro é significativo porque pode ser o fator decisivo para que muitas empresas e indivíduos considerem a arbitragem como uma alternativa viável e vantajosa ao litígio judicial tradicional. As multas tributárias, que podem ser extremamente onerosas, frequentemente desencorajam os contribuintes a contestarem débitos fiscais, mesmo quando acreditam ter argumentos sólidos. O custo elevado das penalidades, somado ao longo e incerto processo judicial, leva muitos a preferirem pagar as multas ou buscar acordos menos favoráveis com o Fisco. 

Ao oferecer um desconto nas multas àqueles que optam pela arbitragem, o PL 2.486/22 não apenas alivia o peso financeiro sobre os contribuintes, mas também incentiva uma resolução mais ágil e eficiente dos conflitos. Esse desconto funciona como um poderoso incentivo porque reduz significativamente o risco financeiro envolvido na disputa tributária. Com um custo potencialmente menor, os contribuintes podem se sentir mais encorajados a buscar a arbitragem como um meio de defesa de seus direitos, especialmente em casos nos quais há complexidade técnica ou necessidade de interpretação mais especializada da legislação tributária.

Em resumo, o PL 2.486/22 avança na direção de uma arbitragem tributária mais ampla e adaptada à realidade dos conflitos tributários, embora algumas áreas ainda necessitem de regulamentação mais detalhada. A combinação de uma abordagem inclusiva com a observância dos precedentes judiciais estabelece uma base sólida para o desenvolvimento futuro da arbitragem tributária no Brasil onde a segurança jurídica tem papel fundamental para garantir a previsibilidade e a estabilidade das relações.

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Colunistas

Marcelo Bonizzi é professor doutor de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da USP/Largo São Francisco. Autor de livros e artigos. Pós-doutor pela Faculdade de Direito de Lisboa. Procurador do Estado de São Paulo. Atua como árbitro (FIESP/CAMES E CAMESC).

Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira é procurador do Estado de São Paulo. Doutor e Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP. Professor do Programa de doutorado e mestrado em Direito da UNAERP. Professor convidado de cursos de pós-graduação. Membro de listas de árbitros de diversas Instituições Arbitrais. Foi membro da Comissão Especial de Arbitragem do Conselho Federal da OAB. Autor de livros jurídicos. Coordenador Acadêmico do site Canal Arbitragem.