Com o crescimento do comércio internacional, especialmente a partir do final da segunda guerra mundial, a importância da segurança e da previsibilidade dos negócios entabulados entre as partes contratantes, sujeitos, cada um, a diferente jurisdição e ordenamento jurídico, assim como a importância de um sistema de solução de litígios capaz de produzir resultados consistentes, coerentes e na velocidade da necessidade daquelas partes, deu azo à discussão sobre um sistema normativo uniforme e transnacional que pudesse atender àquelas demandas.
Na busca de uniformidade e previsibilidade para a redução dos custos de transação, convivem com a criação de leis uniformes reguladoras da atividade do comércio internacional, dos quais são exemplos os Inconterms, as Regras e Usos Uniformes de Créditos Documentários, as Regras Uniformes para Garantia de Contratos, todos promovidos pela Câmara Internacional de Comércio (CIC), a Lei-Modelo de Arbitragem da UNCITRAL, a Convenção Internacional sobre Compra e Venda Internacional (Viena, 1980), os princípios dos Contratos Internacionais (UNIDROIT) e a Convenção Interamericana sobre o Direito Aplicável aos Contratos Internacionais (Cidip V – Cidade do México, 1994).
É neste mesmo ambiente que surge igualmente, como alternativa às propostas de leis uniformes propostas em convenções ou tratados, o reconhecimento da existência de um sistema normativo a-nacional, ou seja, não proveniente dos Estados, mas criado espontaneamente a partir dos usos e costumes mercantis, como um “importante fator de estabilização de relações econômicas privadas entre particulares, capaz de se estruturar a partir de princípios e regras próprios, instituições não estatais de aplicação de tais normas e formas de sanção reputacional”1.
Este sistema normativo passou a ser designado como Nova Lex Mercatoria (em referência e distinção à sua versão medieval) a partir do artigo seminal do Bertold Goldman2, professor da Universidade de Paris II (Pan-theón-Assaz) que divide com Schmitthoff3 a responsabilidade de trazer para o tema à luz.
Sem pretender esgotar o tema é possível assinalar que a NLM tem sido descrita de diversas maneiras pelos seus defensores: como "um conjunto de princípios gerais e regras consuetudinárias espontaneamente referidos ou elaborados no âmbito do comércio internacional, sem referência a um sistema jurídico nacional específico", um "regime para o comércio internacional, espontaneamente e progressivamente produzido pela societas mercatorum”, “um único corpo jurídico autónomo criado pela comunidade empresarial internacional", "um sistema jurídico híbrido que encontra as suas fontes tanto no direito nacional ou internacional como na região vagamente definida de princípios gerais... chamado de 'Direito Transnacional'" - mas também como "[o] fenômeno de regras uniformes que atendem a necessidades uniformes de negócios internacionais e cooperação econômica", ou como consistindo em "todo o direito resultante de ou sob a influência de fontes transnacionais de direito e regulamentar atos ou eventos que transcendem as fronteiras nacionais"4.
Já seus detratores insistirão em dizer que a NLM não passa de uma alegoria para ora referir-se a usos e costumes normatizados pelas leis nacionais ora para referir-se a cláusulas contratuais inseridas em contratos padrões adotados no comércio internacional5.
De toda forma, independentemente de existir como efetivo sistema jurídico autônomo de direito comercial transnacional, a nova lex mercatoria existe como um conceito de forte ressonância e poderoso capital simbólico capaz de provocar intensas discussões acadêmicas até os dias de hoje6.
Contratos Padrão e Arbitragem na construção da Nova Lex Mercatoria
Na construção da NLM os contratos padrão, ou contratos formulários, criados por associações internacionais de comerciantes, na busca da padronização desses contratos de forma a reduzir os custos de transação entre outras são fontes inafastáveis daquele instituto. Aliás essa é a tese central do trabalho de Goldman que afirma:
Mas, para nos mantermos fiéis aos nossos tempos, recordaremos que a London Corn Trade Association, criada em 1877 e refundada em 1886, propôs, entre outras coisas, "produzir a introdução no comércio de cereais da uniformidade nas transações, encorajar a adopção de práticas baseadas em princípios justos e equitativos, e isto mais particularmente para contratos, fretamentos, conhecimentos de embarque e apólices de seguro; estabelecer, provocar, incentivar a divulgação e adoção de fórmulas-padrão de contratos, dos demais documentos mencionados e em geral de todos aqueles utilizados no comércio de grãos". Este programa foi plenamente concretizado, uma vez que a London Corn Trade Association estabeleceu e colocou à disposição dos comerciantes de cereais várias dezenas de contratos-tipo, cuja distribuição e aplicação são consideráveis: são de facto utilizados em muitas vendas internacionais, independentemente de qualquer participação de empresas inglesas, ou mesmo de membros da Associação. Desde então, os contratos-tipo tornaram-se amplamente utilizados noutras áreas do comércio internacional: encontram-se, em particular, no comércio de produtos agrícolas, florestais, mineiros, petrolíferos, siderúrgicos, têxteis e de bens de capital.
Contratos modelo ICC, FIDIC, GAFTA e FOSFA, a cláusula de force majure e de hardship da ICC são alguns exemplos7.
A adoção dos contratos padrão uniformizam os usos e práticas e, no caso de disputas entre as partes, ainda remetem a solução do conflito para os tribunais arbitrais especializados, normalmente constituídos sob os regulamentos das mesmas instituições internacionais que produziram aqueles contratos, reforçando a vinculação das partes àqueles usos e práticas por conta das decisões arbitrais que serão proferidas.
Assim, na identificação dos usos e práticas mercantis e na sua aplicação na solução de conflitos oriundos de contratos comerciais internacionais as sentenças arbitrais internacionais podem ser vistas como geradoras (ou confirmadoras) das regras que constituem a nova lex mercatoria8.
Em que pese a construção esboçada rapidamente nos parágrafos acima, a leitura dos contratos padrão de compra e venda internacional de commodities, indica que raramente a lex mercatoria como tal é eleita como lei aplicável aos contratos.
Assim, uma primeira análise indica que a lex mercatoria, aparentemente, é menos uma escolha das partes como lei aplicável aos contratos em si, mas, isto sim, muito mais uma fonte subsidiária para a qualificação das obrigações estre as partes, vale dizer, muito mais uma questão para análise dos árbitros quando da apreciação da natureza do conflito entre as partes, funcionando, assim, muito mais como um mecanismo de governança ex post para resolver disputas contratuais com o objetivo de manter e restaurar a ordem do comércio internacional.
Por outro lado, dada as características das arbitragens desenvolvidas nos seios das associações internacionais especializadas, as decisões podem se limitar às práticas específicas do respectivo setor, criando, assim, um instituto multifacetado, não uniforme em termos de sua aplicação, refutando a ideia de lex mercatoria como um sistema jurídico próprio e geral, vale dizer, basicamente refutando a existência mesmo desse instituto, criando um paradoxo que muitas gerações de internacionalistas ainda terão de enfrentar.
__________
1 COSTA, João Augusto Fontoura. A autonomia da nova lex mercatoria e a estabilização de relações comerciais internacionais. Revista do Instituto do Direito Brasileiro. (2013),4783-4810. 2(6)
2 GOLDMAN, Berthold, Frontiéres du droit et lex mercatoria. Revista de arbitragem e mediação, (2009), 211-230, 22
3 SCHMITTHOFF, Clive. American and European Commercial Law. Journal of Legislation, (1979), 44-57, 6(44).
4 HATZIMIHAIL, Nikitas E. The many lives-and faces-of lex mercatoria: History as genealogy in international business law. Law and Contemporary Problems, (2008), 169-190, 71(3)
5 HUCK, Hermes Marcelo. Lex Mercatoria - Horizonte e Fronteira do Comércio Internacional, Revista Da Faculdade De Direito, Universidade De São Paulo, (1992), 213-235, 87 (cf. págs. 230 e segs.)
6 TOTH, Orsolya. The Lex Mercatoria in Theory and Practice. Oxford. Oxford University Press, (2017)
7 AYOGLU, Tolga. Some Reflections on the Sources of Lex Mercatoria, in International Commercial Arbitration and the New Lex Mercatoria (2014), 27-36
8 Sobre a arbitragem no mercado internacional de commodities cf., entre outros, FAVACHO, F. G. S. C.
Aspectos Internacionais do Direito do Agronegócio. São Paulo: Lumem Juris, 2020, v.1. p.276.