Observatório da Arbitragem

A transmissão dos efeitos da cláusula de arbitragem à seguradora sub-rogada

O artigo possui como único propósito a reflexão sobre esse tema que há muito se revela controvertido na jurisprudência e na academia, a exigir um olhar, longe de definitivo, mas capaz de apresentar uma contribuição ao debate.

5/12/2023

Considerações iniciais

O presente artigo possui como único propósito a reflexão sobre esse tema que há muito se revela controvertido na jurisprudência e na academia, a exigir um olhar, longe de definitivo, mas capaz de apresentar uma contribuição ao debate.

Para fins de delimitação do tema, impõe-se o recorte de que estaremos a tratar do contrato de transporte marítimo de carga, porém, considerações de cunho geral, podem ser aplicadas a outras formas de contratação que envolvam o tema.

De início, afirmo que não constitui novidade, no mundo do comércio globalizado, a relevância do contrato de transporte marítimo de carga e, por consequência, do necessário contrato de seguro. Atualmente, não fossem esses dois contratos, não seria exagerado afirmar que o mundo estaria diferente.

É nesse cenário que o tema da transmissão dos efeitos da cláusula de arbitragem à seguradora sub-rogada ganha relevância.

A sub-rogação e o seguro

A Sub-rogação está definida nos artigos 346 e seguintes do Código Civil1.

O termo sub-rogação advém do latim subrogatio, designando substituição de uma coisa por outra com os mesmos ônus e atributos, caso em que se tem sub-rogação real, ou substituição de uma pessoa por outra, que terá os mesmos direitos e ações daquela, hipótese em que se configura a sub-rogação pessoal2.

A sub-rogação opera uma verdadeira substituição no polo ativo da obrigação, mantendo a seguradora sub-rogada a mesma posição jurídica do seu segurado.

É, pois, a mesma obrigação, porém com outra parte agora no polo ativo.

Cabe o destaque quanto ao caráter derivado da sub-rogação, porquanto ela somente existe a partir de uma anterior relação jurídica, não tendo existência autônoma, de modo que o direito da seguradora sub-rogada somente existe a partir de um primitivo contrato de transporte celebrado pelo seu segurado, este devidamente garantido pela seguradora que, ao efetuar o pagamento da indenização, se sub-roga na posição daquele primeiro.

Nos termos dos artigos 349 e 786, ambos do Código Civil3, a sub-rogação opera a transferência, para a seguradora, dos direitos e ações que competiam ao segurado, no que àquela recebe um pote de situações jurídicas que previamente eram de titularidade do seu garantido.

Não recebe nem mais, nem menos.

Um bom e típico “prato feito”.

Afirmo que, ao meu sentir, a transferência de que tratam os artigos 349 e 786, do Código Civil, não possui apenas natureza material, mas também processual, basta, para essa conclusão, observar que os dispositivos legais poderiam simplesmente se limitar a indicar a transferência dos direitos, mas, foram além, indicando a transferência também das ações que competiam ao segurado.

Em avanço, relativamente ao contrato de seguro, sua definição está no artigo 757, do Código Civil4.

O contrato de seguro é aquele pelo qual uma das partes (segurador) se obriga para com outra (segurado), mediante o pagamento de um prêmio, a garantir-lhe interesse legítimo relativo a pessoa ou coisa e a indenizá-la de prejuízo decorrente de riscos futuros, previstos no contrato5.

Sobre o contrato de seguro, no que interessa ao tema, cabe dar destaque ao já indicado artigo 757, do Código Civil, pois a seguradora se responsabiliza por riscos predeterminados, vale dizer, os riscos que lhe eram conhecidos quando da contratação do seguro ou que, ao menos, lhe eram possíveis de serem conhecidos.

É dever da seguradora analisar previamente a relação jurídica a ser segurada, inclusive porque a precificação do seguro está diretamente ligada com o risco assumido pela seguradora quando da contratação.

A seguradora é responsável apenas por riscos conhecidos ou potencialmente possíveis de lhe serem conhecidos no ato da contratação do seguro.

Por essa razão, de relevo as regras dos artigos 766 e 786, §2º, ambos do Código Civil6, reveladoras de uma exigência de boa-fé do segurado, que não poderá de qualquer forma agravar o risco da contratação, diminuindo ou extinguindo direitos da seguradora, sob pena de ineficácia do ato, bem como não poderá valer-se de omissão dolosa de informação capaz de influir no preço ou aceitação do seguro, aqui sob pena de perder o direito à indenização.

Por fim, ainda sobre o contrato de seguro, aproveita-se a seguradora dos atos praticados pelo segurado, como, por exemplo, a interrupção do prazo de prescrição, de modo que não lhe é lícito fazer uma verdadeira segmentação dos atos do segurado dos quais se aproveitará, salvo aqueles que impliquem em diminuição ou extinção de direitos do segurador sub-rogado.

Os atos do segurado, desde que não impliquem diminuição ou extinção de direitos, não estão dispostos em uma “prateleira de supermercado” para que a seguradora coloque em seu “carrinho” aqueles dos quais se aproveitará, segundo uma lógica própria de sua conveniência.

A arbitragem

A arbitragem está inserida no conceito de justiça multiportas, em que várias formas de solução adequada de conflitos estão colocadas à disposição da parte para a resolução da controvérsia.

O próprio Código de Processo Civil a incentiva, elencando dentre os seus princípios fundamentais, os métodos adequados de solução de conflitos, destacando, dentre eles, a arbitragem7.

Nessa quadra, a arbitragem é método heterocompositivo de solução de conflitos em que, um terceiro, escolhido pelas partes, no mais puro exercício da autonomia da vontade, é o responsável pela decisão do processo arbitral e pela atribuição do direito ao seu vencedor.

No processo arbitral, as partes, voluntariamente, outorgam a um terceiro o poder de decidir uma determinada contenda. Tal escolha é sempre inspirada pela confiança na idoneidade e na expertise dos árbitros. A arbitragem funda-se, portanto, na autonomia da vontade das partes, na sua capacidade de consentir em atribuir poderes a um terceiro para decidir uma controvérsia8.

Nessa quadra, a convenção de arbitragem, cláusula ou compromisso, possui dois efeitos relevantes, o primeiro, de caráter positivo, o de sujeitar o litígio à arbitragem e, o segundo, de caráter negativo, a renúncia da justiça estatal.

A escolha da arbitragem, portanto, como método adequado de solução de conflitos, impõe uma escolha também pela renúncia da jurisdição estatal. Nesse cenário, a arbitragem passa a ser regra e a justiça estatal a exceção, esta última somente autorizada a cooperar ou intervir nos casos expressos em lei9.

Para o encaminhamento do raciocínio, merece destaque a regra do artigo 4º, §2º, da Lei de Arbitragem (LArb)10.

O dispositivo estabelece verdadeira regra de proteção para a cláusula arbitral em contratos de adesão, exigindo contratação destacada ou que o procedimento arbitral se inicie por iniciativa do aderente.

A transmissão dos efeitos da cláusula de arbitragem à seguradora sub-rogada 

Após estas breves considerações a respeito da sub-rogação, do seguro e da arbitragem, é possível afirmar, sob minha ótica, que, como regra, a cláusula de arbitragem posta em contrato de transporte marítimo de carga se transmite à seguradora sub-rogada. 

Vejamos. 

O contrato de transporte, evidenciado pelo Conhecimento de Embarque, não é contrato de adesão11. 

Sob esse prisma, importante considerar o fato de que, no estágio atual da tecnologia, no regime das grandes contratações, não há contratos redigidos do “zero”, no que suas cláusulas, comumente, estão previamente definidas em documento digital, sem que isso, todavia, queira significar ausência de negociação. 

Ainda sobre esse ponto, é preciso também reconhecer que negociação não ocorre apenas com as partes presencialmente sentadas à mesa de reunião, mas por várias outras formas, até mesmo informais, como e-mails, conversas por aplicativo de mensagens ou telefone e tantas outras que a tecnologia atual nos oferece. 

Destaco também o fato de que o contrato de transporte de carga, assim como o seu correlato contrato de seguro, estão ambos inseridos em uma típica relação empresarial de lucro, a atrair o microssistema da liberdade econômica, previsto nos artigos 421, caput, e 421-A, incisos I a III, ambos do Código Civil12. 

É a própria lei que está a estabelecer uma preconcepção de paridade e simetria na relação contratual, impondo ao pretenso hipossuficiente o ônus de indicar os elementos concretos que justifiquem o afastamento da presunção. 

Não há ingênuos, incautos ou hipossuficientes, como regra, nessas relações contratuais a envolver os contratantes de transporte marítimo de carga e de seguro. 

Tais premissas permitem afastar a incidência da regra de proteção de que trata o artigo 4º, §2º, da LArb, pois este expressamente exige um contrato típico de adesão, definição que pode ser extraída do Código de Defesa e Proteção do Consumidor13 e não se pode perder de vista que a sua razão de existir está diretamente ligada à hipossuficiência de uma das partes na relação contratual.

 

Também convém afirmar que o estabelecimento, em contrato, de cláusula de arbitragem, está muito longe de representar diminuição ou extinção de direitos pelo segurado, porquanto representa uma legítima opção das partes, por um método adequado de solução de conflitos, com previsão legal, de caráter jurisdicional e com todas as garantias constitucionais do devido processo legal aplicáveis ao processo estatal14. 

O argumento de que a opção pela arbitragem em foro estrangeiro infirmaria a conclusão não se sustenta, pois que até mesmo no processo estatal é lícito às partes renunciar a jurisdição nacional, optando pelo foro internacional15. 

Seguindo, há dois pontos, que penso interligados, e que merecem nossa consideração, a saber: o conhecimento prévio da seguradora quanto à existência da cláusula de arbitragem e a transmissão dos efeitos da anuência efetivada pelo segurado quanto a esse método adequando de solução de conflitos. 

Sobre o primeiro, é inegável que a seguradora tem, ou poderia ter, conhecimento prévio sobre a existência da cláusula de arbitragem no contrato do seu segurado, e tal conclusão decorre do seu dever, enquanto segurador, de analisar previamente os riscos do contrato, inclusive, para a precificação do seguro. 

Portanto, ou bem a seguradora analisou o contrato do pretenso segurado e aceitou garanti-lo por inteiro, ou, não tendo cumprido como seu dever de análise prévia do risco, o aceitou de forma tácita com as bases constantes do instrumento. 

Sobre o segundo ponto, transmissão dos efeitos da opção do segurado pela arbitragem, reconheço ser mais complexo, a partir da exigência de que a opção pela arbitragem pressupõe manifestação expressa da parte. 

De largada, digo que a questão se resolve pela possibilidade de se atribuir eficácia em face da seguradora da opção implementada pelo seu segurado. 

O segurado, ao celebrar um contrato com previsão de cláusula de arbitragem, realizou, fruto da autonomia da sua vontade, uma inequívoca opção no sentido de que futuros litígios serão resolvidos na seara arbitral, renunciando à jurisdição estatal para as controvérsias derivadas daquela relação contratual. 

É justamente essa a posição jurídica recebida pela seguradora, do seu segurado, quando na condição de sub-rogada. A opção pela arbitragem foi legitimamente efetivada pelo segurado que a transmitiu para a seguradora, devendo esta última respeita-la por ocasião da ação em regresso. 

No exercício do direito de regresso, decorrente da sub-rogação, a seguradora é o segurado, sendo que este lhe transmitiu a sua posição jurídica, com os direitos e ações que lhe são inerentes, nem mais, nem menos.

 A opção pela arbitragem está dentre as transmissões do segurado. 

Conclusões 

Nesse cenário, é possível sintetizar os argumentos nas seguintes conclusões: 

i - A sub-rogação opera uma verdadeira substituição no polo ativo da obrigação, mantendo a seguradora sub-rogada a mesma posição jurídica do seu segurado;

ii - A sub-rogação possui caráter derivado, porquanto ela somente existe a partir de uma anterior relação jurídica, não tendo existência autônoma, de modo que o direito da seguradora sub-rogada somente existe a partir de um primitivo contrato celebrado pelo seu segurado;

iii - A sub-rogação opera a transferência, para a seguradora, dos direitos e ações que competiam ao segurado, no que àquela recebe um pote de situações jurídicas que previamente eram de titularidade do seu garantido;

iv - A seguradora se responsabiliza por riscos predeterminados, vale dizer, os riscos que lhe eram conhecidos quando da contratação do seguro ou que, ao menos, lhe eram possíveis de serem conhecidos a partir de uma análise prévia da relação jurídica segurada;

v - A escolha da arbitragem como método adequado de solução de conflitos, impõe uma escolha também pela renúncia da jurisdição estatal;

vi - O contrato de transporte de carga, assim como o seu correlato contrato de seguro, estão ambos inseridos em uma típica relação empresarial de lucro, a atrair o microssistema da liberdade econômica, previsto nos artigos 421, caput, e 421-A, incisos I a III, ambos do Código Civil;

vii - O artigo 4º, §2º, da LArb, possui a sua razão de existir ligada a uma possível hipossuficiência das partes em relação contratual estabelecida a partir de um contrato de típico de adesão;

viii - A aceitação pela arbitragem não representa diminuição ou extinção de direitos pelo segurado, tratando-se de método adequado de solução de conflitos, de caráter jurisdicional, com a garantia de observância dos princípios constitucionais do devido processo legal;

ix - No exercício do direito de regresso, decorrente da sub-rogação, a seguradora é o segurado, sendo que este lhe transmitiu a sua posição jurídica, com os direitos e ações que lhe são inerentes, nem mais, nem menos. A opção pela arbitragem está dentre as transmissões do segurado à seguradora.

__________

1 Art. 346. A sub-rogação opera-se, de pleno direito, em favor: I - do credor que paga a dívida do devedor comum; II - do adquirente do imóvel hipotecado, que paga a credor hipotecário, bem como do terceiro que efetiva o pagamento para não ser privado de direito sobre imóvel; III - do terceiro interessado, que paga a dívida pela qual era ou podia ser obrigado, no todo ou em parte.

2 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, v. II. São Paulo. 2007. Editora Saraiva. p. 256.

3 Art. 349. A sub-rogação transfere ao novo credor todos os direitos, ações, privilégios e garantias do primitivo, em relação à dívida, contra o devedor principal e os fiadores. Art. 786. Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano.

4 Art. 757. Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, v. III. São Paulo. 2007. Editora Saraiva. p. 516.

6 Art. 766. Se o segurado, por si ou por seu representante, fizer declarações inexatas ou omitir circunstâncias que possam influir na aceitação da proposta ou na taxa do prêmio, perderá o direito à garantia, além de ficar obrigado ao prêmio vencido. Art. 786. §2º É ineficaz qualquer ato do segurado que diminua ou extinga, em prejuízo do segurador, os direitos a que se refere este artigo.

7 Art. 3º Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito. § 1º É permitida a arbitragem, na forma da lei.

8 LAMAS. Natalia Mizrahi. Introdução e Princípios Aplicáveis à Arbitragem. Curso de Arbitragem. São Paulo. 2018. Editora Revista dos Tribunais. p. 28.

9 Confira-se, a título de exemplo de cooperação, o disposto nos artigos 22-A e 22-B da LArb.

10 § 2º Nos contratos de adesão, a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula.

11 Confira-se a respeito o teor do v. Acórdão, no REsp. 1.988.894/SP, 4ª turma, STJ, Relatora Ministra Isabel Gallotti.

12 Art. 421.  A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. Art. 421-A.  Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: I - as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução; II - a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e III - a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada. 

13 CDC. Art. 54. Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo.

14 Art. 21. § 2º Serão, sempre, respeitados no procedimento arbitral os princípios do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e de seu livre convencimento.

15 Art. 25. Não compete à autoridade judiciária brasileira o processamento e o julgamento da ação quando houver cláusula de eleição de foro exclusivo estrangeiro em contrato internacional, arguida pelo réu na contestação.

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Colunistas

Marcelo Bonizzi é professor doutor de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da USP/Largo São Francisco. Autor de livros e artigos. Pós-doutor pela Faculdade de Direito de Lisboa. Procurador do Estado de São Paulo. Atua como árbitro (FIESP/CAMES E CAMESC).

Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira é procurador do Estado de São Paulo. Doutor e Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP. Professor do Programa de doutorado e mestrado em Direito da UNAERP. Professor convidado de cursos de pós-graduação. Membro de listas de árbitros de diversas Instituições Arbitrais. Foi membro da Comissão Especial de Arbitragem do Conselho Federal da OAB. Autor de livros jurídicos. Coordenador Acadêmico do site Canal Arbitragem.