Aferir a arbitrabilidade objetiva consiste em saber se a matéria objeto do litígio pode ser resolvida por arbitragem. O critério fundamental é o que está previsto na fórmula contida na segunda parte do caput do art. 1º da Lei nº 9.307, de 1996, e no seu §1º: as partes podem submeter a arbitragem conflitos relativos a “direitos patrimoniais disponíveis”. Identificar quais são esses “direitos patrimoniais disponíveis” é um dos maiores desafios enfrentados no contexto das arbitragens envolvendo a administração pública.
Afirma-se com frequência que o contrato administrativo seria um contrato sujeito a um regime especial, de direito público, exorbitante do direito privado, caracterizado pela existência de prerrogativas públicas. Nesses contratos, “atos de império” seriam praticados pela administração pública com prerrogativas e privilégios de autoridade, e impostos unilateral e coercitivamente ao particular. Esses atos, por serem indisponíveis, seriam inarbitráveis, ficando a arbitrabilidade restrita tão somente aos seus efeitos patrimoniais.
Ocorre que, para proferir uma decisão a respeito das consequências patrimoniais de um ato administrativo, o tribunal arbitral precisa analisar, ainda que incidentalmente, a sua legalidade. Nessa linha de raciocínio, o entendimento firmado pelos árbitros acerca das questões prejudiciais inarbitráveis não forma coisa julgada. Isso significa que a parte derrotada na arbitragem poderia propor ação judicial com vistas a discutir, como principal, a questão inarbitrável incidentalmente decidida, gerando séria insegurança jurídica.
Para que a arbitragem se apresente como um meio de resolução de controvérsias que forneça uma prestação jurisdicional efetiva é preciso extrair da expressão “direitos patrimoniais disponíveis” um significado que garanta ao jurisdicionado a obtenção de uma decisão não apenas célere e técnica, mas que também seja segura. A solução para tanto pode ser encontrada no direito administrativo contemporâneo, que reconhece na consensualidade um relevante instrumento para o atendimento do interesse público.
Não é condizente com o arcabouço legislativo atual, e tampouco necessário para que se garanta a adequada consecução do interesse público, entendimento no sentido de que a administração pública deve agir sempre em posição de superioridade em relação ao particular, impondo condutas por meio de atos administrativos unilaterais, “de império”. A administração pública pode atuar, no atendimento do interesse público, dispondo de direitos e assumindo obrigações.
Haverá disponibilidade sempre que a administração pública puder optar por assumir obrigações perante o contratado, em prol do atendimento de um interesse público concreto. Assim, a forma e eventuais limites ao exercício de determinadas prerrogativas da administração pública poderão ser contratualizadas, para viabilizar o atingimento do interesse público. Tratando-se de obrigações contratuais, serão revestidas, ainda que indiretamente, de patrimonialidade, havendo, assim, arbitrabilidade. Ainda, o tribunal arbitral possui jurisdição para analisar a legalidade de um ato administrativo praticado em decorrência de um inadimplemento contratual, ainda que esse ato administrativo consista no exercício de numa prerrogativa da administração pública. A própria lei 14.133, de 2021, a nova Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos, reforça esse entendimento, ao declarar, em seu art. 151, que são arbitráveis as questões relacionadas ao inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes.
Por outro lado, algumas prerrogativas são exercidas em decorrência de questões externas ao contrato que poderão demandar, a depender do caso, para atendimento do interesse público, a sua modificação ou extinção. Qualquer prerrogativa da administração pública que verse sobre um interesse público futuro e intangível, como é o caso da prerrogativa de modificar unilateralmente ou de rescindir unilateralmente o contrato por motivo de interesse público, não será revestida de qualquer disponibilidade. Isso ocorre porque a administração pública não está autorizada a negociar sobre prerrogativa que se destina à garantia de um interesse público que apenas se revelará em decorrência de circunstâncias futuras, desconhecidas das partes contratantes.
Assim, são arbitráveis os conflitos relativos a adimplementos e inadimplementos contratuais, ainda que relacionados às cláusulas regulamentares do contrato administrativo ou ao exercício de determinadas prerrogativas da administração pública, como é o caso da fiscalização, aplicação de sanções pelo inadimplemento do contrato, intervenção na prestação do serviço e, em algumas situações, da extinção unilateral do contrato. Não são arbitráveis, entretanto, os conflitos relativos ao exercício de prerrogativas da administração pública que, embora incidam sobre a relação contratual, são motivadas por circunstâncias externas ao contrato, como é o caso da prerrogativa de modificar unilateralmente ou de rescindir unilateralmente o contrato por motivo de interesse público.
De qualquer forma, não há dúvidas de que, à luz do direito administrativo contemporâneo, é possível a utilização da arbitragem, de forma segura pelas partes, em atendimento ao princípio da eficiência que rege a atuação administrativa, nos termos da Constituição Federal.
__________
*Esse artigo foi elaborado a partir da tese de doutoramento defendida em 21 de setembro de 2023 e expressa opinião acadêmica da autora.