Há algum tempo habita minha reflexão, quando penso em produção antecipada da prova na Arbitragem, a questão sobre as suas hipóteses desvinculadas da urgência e a viabilidade da criação do chamado “Árbitro da Prova”, o que o Acórdão do REsp. 2.023.615 somente reforçou, com uma solução em favor da Arbitragem.
Aqui, desde logo, cabe o destaque no sentido de ser minha visão que, independentemente da situação fática posta, havendo convenção de arbitragem, a solução deve, sempre que possível, ser buscada dentro da Arbitragem.
A opção pela Arbitragem é fruto da livre manifestação das partes e, portanto, há de ser prestigiada.
"Arbitragem é arbitragem, e isso justifica seja ela 'objeto de um tratamento autônomo', verdadeiro sistema, com características próprias, a distinguir este método de solução de litígios"1.
Estabelecida essa premissa, é sabido que a convenção de arbitragem (cláusula/compromisso), enquanto instrumento de manifestação do consentimento das partes para arbitrar, impõe a derrogação da jurisdição estatal.
Em síntese apertada, a convenção de arbitragem tem um duplo caráter: como acordo de vontades, vincula as partes no que se refere a litígios atuais ou futuros, obrigando-as reciprocamente à submissão ao juízo arbitral; como pacto processual, seus objetivos são de derrogar a jurisdição estatal, submetendo as partes à jurisdição dos árbitros2.
Portanto, é esse efeito negativo da convenção de arbitragem que merece realce, na medida em que, se as partes, no livre exercício da manifestação de vontade, no exercício da sua autonomia privada, fazem a opção pela Arbitragem, estarão automaticamente renunciando à jurisdição estatal, salvo naqueles casos expressamente previstos em lei de cooperação ou intervenção.3
Essa é uma opção irretratável e obrigatória4. A jurisdição estatal, repise-se, somente estará autorizada a atuar nas hipóteses expressamente previstas em lei5, sob pena de violação da convenção de arbitragem.
A jurisdição arbitral passa a ser regra e a jurisdição estatal exceção.
Aliás, a própria ratio do princípio da competência-competência6, reforça a ideia de primazia da jurisdição arbitral sobre a estatal nas hipóteses em que as partes convencionaram validamente sujeitar conflitos presentes ou futuros à Arbitragem.
Adiante, para efeito desta breve reflexão, iremos superar qualquer discussão sobre a aplicabilidade ou não das normas do Código de Processo Civil ao processo arbitral, ainda que, ao meu sentir, a aplicação subsidiária, superado o necessário teste de compatibilidade com a Arbitragem, é plenamente possível. Ainda que assim não seja, ao menos a ratio da norma processual civil me parece plenamente aplicável para solução de problemas concretos da Arbitragem.
Cabe mencionar, também, a possibilidade de as partes ajustarem, em comum acordo, a expressa aplicação das normas do Código de Processo Civil.
Dito isso, o Código de Processo Civil, em seu Artigo 381 e incisos7, inaugurou o que se convencionou chamar de exercício do direito autônomo à prova.
Assim, a produção antecipada da prova, preparatória ou incidental, significa implementar um determinado meio probatório em momento anterior àquele em que costumeiramente se implementaria, não mais apenas fundada no risco de perecimento (urgência), mas, também, para fins de autocomposição ou outro meio de solução de conflito ou, ainda, para evitar ou justificar o ajuizamento de ação.
Na lição do Ministro Marco Aurélio Bellizze, reconhece-se, assim, à parte o direito material à prova, cuja tutela pode se referir tanto ao modo de produção de determinada prova (produção antecipada de prova, prova emprestada e a prova "fora da terra"), como ao meio de prova propriamente concebido (ata notarial, depoimento pessoal, confissão, exibição de documentos ou coisa, documentos, testemunhas, perícia e inspeção judicial). ... Nesse contexto, reconhecida a existência de um direito material à prova, autônomo em si – que não se confunde com os fatos que ela se destina a demonstrar (objeto da prova), tampouco com as consequências jurídicas daí advindas, podendo (ou não) subsidiar outra pretensão - a lei adjetiva civil estabelece instrumentos processuais para o seu exercício, que pode se dar incidentalmente, no bojo de um processo já instaurado entre as partes, ou por meio de uma ação autônoma (ação probatória lato sensu)8.
Nesse ponto, convém ressaltar que o litígio de que trata o Artigo 1º, da Lei de Arbitragem9, reside no conflito de interesses a respeito da própria prova, validado pela existência de um direito material autônomo à sua produção, constituindo-se em causa de pedir da ação probatória lato sensu.
Veja-se, assim, que, se esse conflito relacionado com a prova que se pretende produzir antecipadamente, estiver, direta ou indiretamente, ligado à uma relação jurídica sujeita à convenção de arbitragem, será nessa seara privada que a controvérsia haverá de ser dirimida.
Não é por outra razão que a disposição do Artigo 382, §4º, do Código de Processo Civil10, deve comportar interpretação tendente a vedar apenas a defesa ou recurso que estejam relacionados com aspectos da valoração da prova em si, porquanto há vedação expressa ao Magistrado de, no âmbito restrito da produção autônoma da prova, realizar qualquer juízo de valor nesse sentido11.
Na produção antecipada da prova o Magistrado apenas zela pela regularidade formal da sua produção, mas não a valora.
Na esteira de precedente do Superior Tribunal de Justiça12, não se pode admitir, portanto, interpretação que elimine o contraditório por inteiro, mas apenas e tão somente em relação às matérias impertinentes ao procedimento (valoração do conteúdo da prova), excluindo-se da restrição legal, questões controvertidas relacionadas com o objeto da ação e do seu procedimento (regularidade formal da produção antecipada da prova).
Aqui, nesse ponto, cabe a indagação: Por que não um “Árbitro da Prova”?
Para começar a responder a indagação, primeiramente, convém lembrar que as partes que celebram uma convenção de arbitragem, podem ou não, conduzir o procedimento administrado por uma instituição arbitral, respeitando o seu regulamento, sendo fato que a arbitragem ad hoc, atualmente, é exceção e, mesmo nessa hipótese, nada impede que as partes façam a opção legítima pela observância de um regulamento específico.
Nesse passo, a adesão a um determinado regulamento de instituição arbitral possui o efeito imediato de fazê-lo de observância obrigatória para toda e qualquer controvérsia relacionada com a convenção de arbitragem.
Caminhando, para as hipóteses de produção antecipada da prova fundadas na urgência, em que há o risco do seu perecimento, o sistema já apresenta solução, seja no “Árbitro de Urgência” previsto na maioria dos regulamentos das instituições arbitrais, seja, na ausência de sua previsão, pelo mecanismo de cooperação com a jurisdição estatal expressamente previsto na Lei de Arbitragem.
Em qualquer dos casos, “Árbitro de Urgência” ou cooperação da jurisdição estatal, a solução permanece no âmbito da Arbitragem, eis que, na segunda hipótese, será sempre lícito ao Árbitro rever a decisão do Juiz estatal, tendo esse mecanismo natureza evidentemente excepcional.
Todavia, para os demais casos, fins de autocomposição ou outro meio de solução de conflito ou, ainda, para evitar ou justificar o ajuizamento de ação, o Recurso Especial 2.023.615 determinou uma solução em favor da Arbitragem, no que penso ser viável ir mais além e buscar na figura do “Árbitro da Prova”, não apenas uma solução em favor da Arbitragem, mas uma solução em prol da consolidação da Arbitragem como método completo e adequado de solução de conflitos, fruto da opção legítima das partes.
O “Árbitro da Prova” seria um Árbitro previsto no regulamento da instituição arbitral com a função exclusiva de conduzir o procedimento da produção antecipada da prova, sem a necessidade da formação de um Tribunal Arbitral para esse fim, o que, nesse último caso, seria a única solução viável para manutenção da resolução do conflito sobre a prova no âmbito da Arbitragem, sem implicar em denegação do acesso à justiça13.
Inclusive, esse mesmo “Árbitro da Prova” poderia – deveria - conduzir também a produção antecipada da prova fundada na urgência, dado que gerir a produção da prova é tarefa cuja especialização conduz sempre a melhores resultados, evitando nulidades futuras ou mesmo provas mal produzidas, com impacto no resultado do mérito de um futuro e eventual procedimento arbitral.
Nos moldes do que já ocorre com o procedimento conduzido pelo Juiz estatal, diante da vedação expressa do Artigo 382, §2º, do Código de Processo Civil, repetimos que o “Árbitro da Prova” não exerceria qualquer valoração sobre o conteúdo da prova produzida, limitando-se a fazer a gestão da sua produção.
Penso ser importante afirmar que, mesmo não fazendo qualquer valoração sobre o conteúdo da prova produzida, porém já conhecedor dos fatos da demanda, ainda que parcialmente, o “Árbitro da Prova” que a colheu de forma antecipada, não deve participar de eventual Tribunal Arbitral que venha a ser formado no futuro, sendo prudente preservar a equidistância e a independência que, “aos olhos das partes”, poderia estar comprometida com a repetição.
Um outro aspecto que conspira em favor do “Árbitro da Prova” é o fato de que a prova produzida de modo antecipado, com todas as formalidades que lhe são inerentes, não demanda a repetição em eventual e futuro procedimento arbitral, relevando o destaque que se utilizará na Arbitragem prova colhida por árbitro especializado e acostumado com as peculiaridades do processo arbitral, o que não aconteceria se essa mesma prova fosse colhida pelo Juiz estatal.
Aliás, penso, inclusive, que, se a prova antecipada viesse a se produzir no âmbito da justiça estatal, ainda que com todas as formalidades que lhe são inerentes, não se poderia desconsiderar a hipótese plausível de a parte pretender a sua repetição no âmbito do procedimento arbitral que viesse a ser instaurado, justamente em razão de haver diferença significativa entre o modo de colheita da prova conduzido pelo Juiz, forjado na justiça estatal, e pelo Árbitro, forjado na justiça privada. São formas de atuar diversas.
Afirmo, ainda, que a solução do “Árbitro da Prova”, para além da bem-vinda redução de custos para as partes, que não estariam obrigadas com a constituição do Tribunal Arbitral, quem sabe desnecessário, viabiliza por parte das Instituições Arbitrais a criação de uma solução integrada com a produção antecipada da prova e, se for o caso, a possibilidade do início de uma mediação a partir do que descortinado na prova produzida.
Nesse sentido, mecanismos facilitadores do acesso à justiça e que permitem uma resolução rápida do litígio mostram-se absolutamente necessários. Há indícios de que a arbitragem contempla melhores mecanismos para induzir as partes à um acordo. Destacam-se, a aproximação das partes fruto de uma convenção de arbitragem, o permanente diálogo e a possibilidade de uma participação mais ativa do árbitro para buscar o escopo conciliatório14.
Aqui, voltamos com a ideia de uma solução completa e integrada, inteiramente edificada no âmbito da Arbitragem.
O “Árbitro da Prova” não está a demandar qualquer alteração legislativa, exige apenas das Instituições Arbitrais uma ação imediata para implementar a modificação de seus regulamentos para a criação dessa figura, bem como para regulamentar o procedimento da produção da prova de modo antecipado.
A criação da figura do “Árbitro da Prova”, como meio de viabilização da produção antecipada da prova na seara da Arbitragem, reforça a sua legitimidade como meio completo e adequado de solução de conflitos, ao garantir que a prova antecipada seja produzida por um Árbitro designado para esse fim, sem a necessidade da formação imediata de um Tribunal Arbitral ou, pior, produzida por um Juiz estatal não acostumado com as variabilidades do processo arbitral.
A Arbitragem deve solucionar em casa seus problemas.
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1 MARIANI, Rômulo Greff. Precedentes na arbitragem, Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 84.
2 CARMONA. Carlos Alberto. Arbitragem e Processo: um comentário à Lei 9307/96. São Paulo: Atlas, 2009, p. 79.
3 Confira a respeito do tema cooperação/intervenção, meu artigo publicado na Coluna Migalhas Marítimas (Violação do dever de revelação como causa da anulação da decisão arbitral - Migalhas).
4 STJ. Recurso Especial 1.331.100/BA, 4ª Turma, Relatora Ministra Isabel Gallotti, 2016.
5 A título de exemplo, os Artigos 22-A e 22-B, da Lei de Arbitragem. (Art. 22-A. Antes de instituída a arbitragem, as partes poderão recorrer ao Poder Judiciário para a concessão de medida cautelar ou de urgência. Parágrafo único. Cessa a eficácia da medida cautelar ou de urgência se a parte interessada não requerer a instituição da arbitragem no prazo de 30 (trinta) dias, contado da data de efetivação da respectiva decisão. Art. 22-B. Instituída a arbitragem, caberá aos árbitros manter, modificar ou revogar a medida cautelar ou de urgência concedida pelo Poder Judiciário).
6 Art. 8º ... Parágrafo único. Caberá ao árbitro decidir de ofício, ou por provocação das partes, as questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória. Art. 20. A parte que pretender arguir questões relativas à competência, suspeição ou impedimento do árbitro ou dos árbitros, bem como nulidade, invalidade ou ineficácia da convenção de arbitragem, deverá fazê-lo na primeira oportunidade que tiver de se manifestar, após a instituição da arbitragem.
7 A produção antecipada da prova será admitida nos casos em que: I - haja fundado receio de que venha a tornar-se impossível ou muito difícil a verificação de certos fatos na pendência da ação; II - a prova a ser produzida seja suscetível de viabilizar a autocomposição ou outro meio adequado de solução de conflito; III - o prévio conhecimento dos fatos possa justificar ou evitar o ajuizamento de ação.
8 STJ. Recurso Especial 2.023.615/SP, 3ª Turma, Relatora Ministro Marco Aurélio Bellizze, 2023.
9 Art. 1º As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.
10 Art. 382. §4º Neste procedimento, não se admitirá defesa ou recurso, salvo contra decisão que indeferir totalmente a produção da prova pleiteada pelo requerente originário.
11 Art. 382. § 2º O juiz não se pronunciará sobre a ocorrência ou a inocorrência do fato, nem sobre as respectivas consequências jurídicas.
12 STJ. Recurso Especial 2.037.088/SP. 3ª Turma, Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze. Março de 2023.
13 CF. Art. 5º XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
14 GABRIEL, Anderson de Paiva. MOOG, Maria Eduarda. A Arbitragem como Mecanismo Indutor à Resolução Consensual de Litígios: uma breve análise sob a ótica racional e emocional do processo. Arbitragem. Atualidades e Tendências. Coordenadores Olavo Augusto Viana Alves Ferreira e Paulo Henrique dos Santos Lucon. Ribeirão Preto: Editora Migalhas, 2019, pag. 37;40.