O presente artigo tem, como objetivo trazer à tona, com a ilustração de um caso prático, uma discussão inerente ao direito: a dificuldade na execução de sentenças, causada pelas inúmeras e criativas maneiras que os devedores encontram para fugir de obrigações de pagar. No caso concreto a ser analisado, em síntese, os devedores realizaram um share purchase agreement (SPA), na tentativa de estender os efeitos da cláusula de jurisdição à terceiro – o credor – não signatário, com cláusula de eleição de foro a fim de afastar a competência da justiça húngara para dar seguimento ao cumprimento de uma sentença arbitral.
A dificuldade na execução é antiga e com a invenção do direito, nas palavras de José Roberto Castro Neves1, passou a ser do Direito a obrigação de solucioná-la. Não por outra razão, a ação pauliana é um dos instrumentos mais antigos de repressão à fraude contra credores2. A arbitragem, como meio de resolução de conflitos, não foge à regra e o caso a ser analisado demonstra mais uma tentativa dos devedores de fugar-se da execução de uma sentença arbitral, por meio da confecção de um SPA com cláusula de jurisdição.
Em 2007, as partes firmaram determinado contrato e, diante do seu descumprimento, o requerente iniciou um procedimento arbitral perante a Moscow Arbitration Court e obteve uma sentença arbitral condenatória, que obrigou o requerido ao pagamento de 49 milhões de euros acrescido de juros, que, a partir desse momento, se tornou credor.
Em 2021, o requerido, ora devedor, transferiu suas ações, por meio de um SPA, para uma terceira pessoa jurídica que, com isso, passou também a ser devedora. No referido instrumento, eles estipularam que quaisquer disputas envolvendo as partes seriam dirimidas pela Corte de Mainz na Alemanha.
Munido da sentença arbitral, o credor ajuizou demanda perante a justiça húngara, objetivando a declaração de ineficácia do SPA, com o fundamento de que o negócio jurídico havia sido firmado para ocultar ativos e evitar a execução da sentença arbitral. Para defender a competência do Poder Judiciário da Hungria, o credor utilizou, como fundamento, o artigo 7º, item 1.a.3, do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, segundo o qual as pessoas domiciliadas em um Estado-Membro podem processar o devedor de outro Estado-Membro no local onde a obrigação será executada. Nesse sentido, o credor apontou que foram identificados ativos dos devedores no país.
Como era de se esperar, os devedores arguiram a incompetência da justiça húngara para processar a execução da sentença arbitral, devido à cláusula de jurisdição do SPA. A primeira instância acolheu o pedido de incompetência formulado pelos devedores com base no artigo 254 do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 e entendeu que a justiça alemã teria jurisdição exclusiva para apreciar a questão, uma vez que a execução em discussão teria relação com o SPA.
Em sede de apelação, o credor argumentou que o artigo 25 do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 não teria sua aplicabilidade estendida a terceiros que não fizeram parte do SPA e que se limitaria às partes do contrato, de modo que não o atingiria. Afinal, o credor não só não foi parte do SPA, como também a própria ação tem por base a sentença arbitral, e não o contrato.
Assim sendo, a segunda instância reformou a decisão com base em diversos precedentes do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE)5, o qual estabelecem que uma disputa só será considerada relacionada ao contrato se faz referência a alguma obrigação voluntariamente assumida pelas partes litigantes. Com efeito, a segunda instância concluiu que, para fins de competência, o SPA era irrelevante.
Na mesma oportunidade, foi reforçado que a cláusula de jurisdição só poderá ser aplicável às partes do contrato. Contudo, para que não houvesse dúvidas, a decisão fez a ressalva de que a cláusula compromissória também irá vincular um terceiro que assuma o papel do contratante original, ou seja, eventual sucessor do contratante original ao adquirir os direitos e deveres do contratante original, também assume a escolha de jurisdição arbitral feita.
Em seguida, a segunda instância passou a analisar se a justiça húngara teria jurisdição para seguir com a execução da sentença arbitral ou não. Nessa análise, utilizou como fundamento o precedente Feniks sp z.o.o VS. Azteca Products & Services SL6, oportunidade na qual o órgão entendeu que a ação pauliana7, proposta com base na celebração de um contrato, enquadra-se como matéria contratual e, consequentemente, poderá ser movida no lugar do cumprimento da obrigação. Concluindo, por assim ser, que a justiça húngara seria competente para apreciar a ação.
A despeito de o caso analisado reforçar o princípio pacta tertii nec nocent nec prosunt (“um contrato vincula apenas as partes, não cria obrigações para terceiros”), isto é, uma cláusula de jurisdição, que é em si um contrato, só poderá ser invocada por aqueles que fazem parte dele, o próprio TJUE já julgou alguns casos nos quais a cláusula de jurisdição se estendeu para terceiros que não fizeram parte do acordo inicialmente.
Por exemplo, no caso Powell Duffryn plc Vs. Wolfgang Petereit8, julgado pelo TJUE, foi determinado que a cláusula de jurisdição inserida nos estatutos das companhias obriga não só os fundadores, como também todos os acionistas novos, inclusive os que eventualmente votaram contra a cláusula.
Nesse ponto, vale destacar que a doutrina9 e jurisprudência brasileira já reconhecem a extensão da cláusula compromissória ao sócio que restou vencido na votação que institui a cláusula arbitral, em prestígio ao affectio societatis, declaração de vontade expressa e livre do sócio concedida ao ingressar na sociedade, devendo se sujeitar as decisões da maioria. Por outro lado, poderá o sócio vencido exercer seu direito de retirada.
No caso Gerling Konzern Speziale Kreditversicherungs-AG and others VS. Amministrazione del Tesoro dello Stato10, por sua vez, que tratou de contratos de seguro, o TJUE entendeu que quando a seguradora e o titular da apólice firmarem expressamente cláusula de jurisdição e a seguradora tiver aceitado a cláusula em favor do segurado, a cláusula será estendida e válida também para o segurado.
Contudo, fato é que tais casos são excepcionais e a extensão da cláusula nessas hipóteses se dá justamente pela posição do terceiro não signatário na circunstância fática concreta. De modo que a regra, quando se está tratando de cláusula de jurisdição, é de que ela não se estende aos terceiros não signatários.
As discussões acerca da extensão da cláusula de jurisdição ao terceiro não signatário são ilimitadas, uma vez que exigem uma apreciação casuística – especialmente em se tratando de cláusulas compromissórias arbitrais, tema já extremamente debatido pela doutrina brasileira11 e estrangeira. Em vista disso, a despeito da distinção entre os sistemas jurídicos do common law e do civil law, é inegável que as experiências do direito comparado auxiliam no estudo e desenvolvimento de teses.
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1 NEVES, José Roberto de Castro. A invenção do direito: as lições de Ésquilo, Sófocles, Eurípedes e Aristófanes. 2ª ed. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2018.
2 JÚNIOR, Humberto Theodoro. A fraude de execução e o regime de sua declaração em juízo. Revista de Processo. Vol. 102, Abr. e Jun./2001, p. 68-88.
3 "Artigo 7º: As pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro:
1) a) Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão;"
4 "Artigo 25: Se as partes, independentemente do seu domicílio, tiverem convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado-Membro têm competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais terão competência, a menos que o pacto seja, nos termos da lei desse Estado-Membro, substantivamente nulo. Essa competência é exclusiva, salvo acordo das partes em contrário."
5 Jakob Handte & Co. GmbH v Traitements Mécano-chimiques des Surfaces SA., No processo C-26/91; Ceská sporitelna, a.s. v Gerald Feichter. No processo C-419/11; Holterman Ferho Exploitatie BV e.a. v Friedrich Leopold Freiherr Spies von Büllesheim. No processo C-47/14; Fonderie Officine Meccaniche Tacconi SpA v Heinrich Wagner Sinto Maschinenfabrik GmbH (HWS); No processo C-334/00. Disponíveis aqui.
6 Feniks sp z.o.o VS. Azteca Products & Services SL, No processo C-337/17. Disponível aqui.
7 Isto porque, segundo o magistério de Liebman, "o verdadeiro resultado da ação pauliana é estender a ação e a responsabilidade executória a determinados bens de terceiro, precisamente aqueles que foram objeto do ato fraudulento". (...) "A conseqüência da procedência da ação pauliana é a ineficácia com relação ao credor prejudicado, autor da ação, não beneficiando terceiros, não participantes do feito, o que é lógico, uma vez que esses terceiros precisarão, também, provar que foram prejudicados pela alienação, sendo credores quirografários em momento anterior à alienação questionada. (JÚNIOR, Humberto Theodoro. A fraude de execução e o regime de sua declaração em juízo. Revista de Processo. Vol. 102, Abr. e Jun./2001, p. 68-88.)
8 Powell Duffryn plc Vs. Wolfgang Petereit. No processo C-214/89. Disponível aqui.
9 LOURENÇO E SILVA, Miguel. Arbitragem societária: O problema do consentimento. Anuário da ADR LAB, Laboratório de Resolução Alternativa de Litígios, Universidade Nova de Lisboa. NOVA School of Law, Ano 3, 2020/2021, p. 173-199.
10 Gerling Konzern Speziale Kreditversicherungs-AG and others VS. Amministrazione del Tesoro dello Stato. No do processo 201/82. Disponível aqui.
11 TIBURCIO, Carmen. Cláusula compromissória em contrato internacional: interpretação, validade, alcance objetivo e subjetivo. Revista de Processo. Vol. 241, Mar/2015, p. 521/566.