Observatório da Arbitragem

Notas ao julgamento do STJ no recurso especial nº 2.023.615 - SP de março de 2023

Em recente julgado proferido pelo Superior Tribunal de Justiça dia 14 de março de 2023, há relevante questão decidida sobre arbitragem.

28/3/2023

Em recente julgado proferido pelo Superior Tribunal de Justiça dia 14 de março de 2023, há relevante questão decidida sobre arbitragem.  A controvérsia tratada no Recurso Especial 2.023.615 – SP1 foi se, a partir da vigência do Código de Processo Civil de 2015, diante da existência de cláusula compromissória arbitral estabelecida entre as partes, a pretensão de produção antecipada de provas, desvinculada da urgência (ou seja, com fundamento nos incisos II e III do art. 381 do CPC/2015), deve ser promovida diretamente perante o Tribunal arbitral ou se subsistiria, também nesse caso, a competência (provisória e precária) do Poder Judiciário estabelecida no art. 22-A da Lei de Arbitragem.

Antes de tecer algumas breves considerações sobre o julgamento, sem qualquer pretensão, salvo trazer a notícia sobre a respeitável e muito bem fundamentada decisão, importante revisitarmos o tema.

O árbitro tem poder para conceder a tutela de urgência, bem como a tutela de conhecimento, não podendo, entretanto, efetivar a tutela de execução2, reservada ao Poder Judiciário estatal. Entretanto, pode surgir a seguinte problemática: no caso de existir uma cláusula compromissória ou um compromisso arbitral em determinado contrato e surgir uma necessidade de uma tutela de urgência antes da constituição do Tribunal arbitral, o que deve ser feito?

Conforme a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça3 e a lei 13129/15, a parte pode requerer tutela de urgência ao Poder Judiciário, e, no momento em que for constituído o tribunal arbitral o árbitro analisará a decisão do Juiz, podendo confirmar ou modificar o entendimento. Neste sentido, há a curiosa possibilidade de um particular, investido de jurisdição por força da vontade das partes que agiram autorizadas pela Lei, modificar a decisão do Magistrado integrante do Poder Judiciário estatal4, conforme decidiu o Superior Tribunal de Justiça5.

As partes podem optar por, ao invés de se utilizarem do Poder Judiciário, nomear um árbitro especificamente para decidir sobre a tutela de urgência, o que é recomendável, diante das vantagens da arbitragem6. Nessa hipótese, basta constar na cláusula a opção por Câmara que prevê em seu regulamento, o árbitro de emergência ou inserir a opção pela decisão sobre a tutela de urgência pelo árbitro de emergência.

Antes deste julgado já defendíamos que caso inexista urgência, não poderá a parte acionar o Judiciário, salvo aditamento da cláusula por ambas as partes, para pleitear tutela provisória, sob pena de extinção do feito, aplicando-se o artigo 485, VII do Código de Processo Civil. Nesse sentido já decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo7.

Importante salientar trecho elucidativo do Acórdão em comento (Recurso Especial 2.023.615 – SP):

"O Código de Processo Civil de 2015 conferiu à ação de produção antecipada de prova nova qualificação jurídica, concebendo-a como um direito autônomo da parte à prova, desvinculando, especificamente nas hipóteses estabelecidas nos incisos II e III do art. 381, de sua natureza cautelar ou de seu caráter de urgência (concebida como o risco de perecimento da prova), o que dá margem à discussão, sobretudo no âmbito doutrinário, a respeito da aplicação do art. 22-A da Lei n. 9.307/1996, que preceitua o estabelecimento da jurisdição estatal para conhecer de medidas cautelares e de urgência antes da instauração da arbitragem". 

O julgado do Superior Tribunal de Justiça, em estudo, aponta a existência de quatro correntes, sobre a competência para julgar a ação de produção antecipada de prova, diante da existência de cláusula arbitral:

i) em regra cabe ao Judiciário, salvo se a cláusula expressamente prevê que cabe ao árbitro julgar a produção antecipada de prova:  Arthur Ferrari Arsuffi, em sua dissertação de mestrado, defende esta tese:

"[...] É possível concluir, portanto, que, sendo a jurisdição arbitral uma exceção à regra geral, o compromisso arbitral deve ser interpretado de forma restritiva. [...] Nessa ordem de ideias, a produção antecipada da prova sem o requisito da urgência só estará sujeita à jurisdição arbitral no caso de haver expressa previsão no compromisso arbitral entabulado entre as partes. [...] Ou seja, a produção antecipada de prova sem o requisito da urgência tem como objeto uma relação jurídica diversa daquela que envolve a declaração do direito material em determinado caso concreto. Trata-se de uma relação jurídica. Trata-se de uma segunda relação jurídica, cujo protagonismo é a obtenção autônoma da prova. [...] Nesse sentido, em se tratando de uma relação jurídica diversa, sua sujeição ao juízo arbitral só ocorrerá se as partes, de forma expressa, incluírem tal previsão no compromisso arbitral. Caso contrário, a competência para conhecer da ação de produção antecipada de provas sem o requisito de urgência será do Poder Judiciário" (ARSUFFI, Arthur Ferrari. Produção Antecipada da Prova: Eficiência e Organização do Processo. Dissertação de Mestrado. Orientadora: Thereza Celina Diniz de Arruda Alvim. São Paulo. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 2018. p. 163-167)

Marcelo Mazzola e Rodrigo Torres ensinam8:

"A questão se torna mais delicada quando não existe nenhum ajuste específico na convenção de arbitragem e não se trata de uma produção antecipada de prova de natureza cautelar, mas sim daquelas hipóteses previstas nos incisos II e III do art. 381 do CPC/15.

Em tais casos, pode haver alguma controvérsia quanto ao cabimento da produção antecipada de prova, diante da eleição do Juízo Arbitral (art. 42 do CPC/15) e da competência do árbitro para deferir as provas necessárias (art. 22 da lei 9.307/96).

Entendemos, porém, que o ajuizamento da produção antecipada de prova é perfeitamente possível e não viola a jurisdição arbitral.

Primeiro, porque, no procedimento em questão, o juiz não se pronunciará "sobre a ocorrência ou a inocorrência do fato, nem sobre as respectivas consequências jurídicas" (art. 382, § 2º). Ou seja, não há vencido e vencedores, e tampouco a formação de coisa julgada. Trata-se, na verdade, de uma atividade que faz lembrar o disclosure do direito norte-americano. Ademais, não se admitirá defesa ou recurso, salvo contra decisão que indeferir totalmente a produção da prova pleiteada pelo requerente originário (art. 382, § 4º), o que confirma a intenção do legislador de não burocratizar o procedimento.

Segundo, em razão do caráter dúplice da produção antecipada de prova, capaz de beneficiar tanto o requerente como o requerido. Com efeito, quando o juiz defere a medida, não é possível saber, de antemão, quem irá se beneficiar da respectiva prova. Significa dizer que, ao menos neste momento processual, não existe prejuízo para qualquer das partes e não há que se falar em desequilíbrio, desigualdade ou ausência de paridade de armas.

Terceiro, porque a prova a ser produzida de forma antecipada pode ter um escopo maior do que aquele objeto da convenção arbitral e envolver outras pessoas interessadas (art. 382, § 1º), corroborando a utilidade da medida.

Quarto, e último, porque, sob o prisma da análise econômica do direito e da eficiência processual – norma estruturante do processo civil (art. 8º do CPC/15) –, a medida é fundamental para reduzir custos. Imagine-se, por exemplo, uma convenção arbitral em que o objeto do conflito seja a exploração de jazidas de minério de ferro em determinada região do país. Suponhamos que não haja discussão quanto à exploração em si, mas as partes divirjam quanto ao território objeto da atividade, com acusação de invasão de área alheia".

ii) a definição da competência para julgar a produção antecipada de provas depende da redação da cláusula: Arruda Alvim e Clarissa Diniz Guedes rechaçam a primeira corrente, asseverando que "o fato de o procedimento probatório constituir uma ação que versa o direito à prova não é suficiente para se alcançar qualquer conclusão sobre a atribuição do juízo arbitral ou do judiciário para a condução da produção antecipada da prova". Em seu entendimento, tampouco "a mera existência de cláusula compromissória arbitral também não é suficiente para indicar a jurisdição arbitral como adequada a conduzir a produção antecipada de provas". Sustentam, inclusive, não proceder o argumento favorável à generalização da jurisdição estatal, a pretexto do argumento de que, na ação de produção antecipada de provas, não haveria pronunciamento sobre os fatos ou solução da controvérsia existente entre as partes. Propugnam os insignes juristas, para o deslinde da questão, o adequado exame a respeito da extensão do compromisso arbitral, adotando-se o seguinte vetor interpretativo:

"Nesse particular, assume especial destaque o texto da cláusula arbitral. Não havendo ressalvas quanto à produção antecipada de provas, afigura-se primordial analisar a redação desta cláusula que pode tanto aludir à via arbitral como ambiente para solucionar eventuais "conflitos" decorrentes da relação jurídica existente entre as partes, como fazer referência à atribuição do árbitro para resolver quaisquer questões atinentes à relação jurídica existente entre as partes. No último caso, parece-nos aceitável defender que a produção antecipada de provas está incluída na cláusula, desde que o fato probando integre a relação jurídica existente entre as partes, ou ao menos se inclua no contexto desta relação. Em tais circunstâncias, a amplitude da cláusula que se refere a quaisquer questões atinentes a determinada relação jurídica muito possivelmente incluirá o direito à prova dos fatos que circundam essa relação. E isso se pode afirmar independentemente de se considerar a produção antecipada de prova como uma ação de conteúdo processual: se o objeto desta ação forem fatos pertinentes à relação jurídica mencionada na cláusula arbitral, é certo que os fatos a ela concernentes estão incluídos na ideia ampla que quaisquer questões que digam respeito a tal relação jurídica.

Já no caso de a cláusula arbitral ser mais restrita, como no exemplo, muito usual, da cláusula que estabelece a via arbitral como sede para 'dirimir eventuais conflitos entre as partes', afigura-se-nos que a produção antecipada de provas não está, em princípio, incluída na renúncia à jurisdição estatal, que não pode ser interpretada de forma excessivamente ampliativa.

[...]

Devemos ponderar, ainda, que a Lei de arbitragem estabelece uma modalidade de renúncia à jurisdição que deve ser inequívoca; desse modo, havendo dúvidas sobre a abrangência da cláusula arbitral, poderá o interessado exercer o direito de ação de conteúdo processual (produção antecipada de provas) perante o Judiciário, não podendo lhe ser imposta a via arbitral’ (ALVIM, Arruda; GUEDES, Clarissa Diniz. Produção Antecipada de Prova e Juízo Arbitral. Revista dos Tribunais. Vol. 1008. ano 108. p. 23- 40, São Paulo: Ed. RT, outubro 2019)"9.

iii) todas as ações probatórias autônomas estão abrangidas pela convenção: Eduardo Talamini assinala que, "em princípio, as ações probatórias autônomas relativas a determinado litígio estão abrangidas pela convenção arbitral para ele estipulada"; logo, "não havendo urgência que impedisse aguardar-se o início da arbitragem, a produção antecipada da prova para fins não cautelares normalmente deveria ser feita em processo arbitral específico para tal fim". O autor, no entanto, aponta situações nas quais a ação, mesmo sem urgência, poderá ser promovida perante o Poder Judiciário, quando: i) "apenas a própria produção antecipada da prova permitirá ao requerente definir os exatos contornos de sua pretensão, inclusive para saber se ela está efetivamente abrangida pela convenção arbitral"; ii) ciência antecipada por parte do interessado de que a parte adversa irá resistir à produção probatória, a exigir, do mesmo modo, a atuação do juiz estatal para a adoção de medidas coercitivas; iii) no caso de singeleza da prova diante dos elevados custos da arbitragem” (Produção Antecipada de prova no Código de Processo Civil de 2015. Revista de Processo. Vol. 260. São Paulo: Ed. RT, outubro de 2016, p. 75-101).

iv) somente cabe à jurisdição estatal a produção de prova, caso exista algum óbice à apreciação urgente pelo árbitro, visando preservar o direito à prova da parte postulante que se encontra em situação de risco: "Ausente esta situação de urgência, única capaz de autorizar a atuação provisória da Justiça estatal em cooperação, nos termos do art. 22-A da Lei de Arbitragem, toda e qualquer pretensão – até mesmo a relacionada ao direito autônomo à prova, instrumentalizada pela ação de produção antecipada de provas, fundada nos incisos II e II do art. 381 do CPC/2015 – deve ser submetida ao Tribunal arbitral, segundo a vontade externada pelas partes contratantes. Veja-se, portanto, que, em sendo a pretensão afeta ao direito à prova indiscutivelmente relacionada à relação jurídica contratual estabelecida entre as partes, cujos litígios e controvérsias dela advindos foram, sem exceção, voluntariamente atribuídos à arbitragem para solvê-los, dúvidas não remanescem a respeito da competência exclusiva dos árbitros para julgar a correlata ação probatória desvinculada de urgência"10.

“Por fim – porque guarda em si argumentos que se me afiguram irrefutáveis –, merece destaque a compreensão adotada por Flávio Luiz Yarshell, Viviane Siqueira Rodrigues, Eduardo de Carvalho Becerra e Fábio de Souza. R. Marques, segundo a qual, sendo indiscutível o caráter jurisdicional da atividade desenvolvida pela arbitragem ao julgar ações probatórias autônomas, as quais guardam, em si, efetivos conflitos de interesses em torno da própria prova, cujo direito à produção é que constitui a própria causa de pedir deduzida (resistida pela parte adversa), a estipulação de compromisso arbitral atrai inarredavelmente a competência do Tribunal arbitral para conhecer a ação de produção antecipada de provas, asseverando, pois, ser a urgência, ‘que dita a impossibilidade prática de a pretensão aguardar a constituição da arbitragem’, a única exceção legal à competência dos árbitros. Pela relevância dos argumentos, de toda oportuna a sua transcrição:

"Assentada a premissa do caráter jurisdicional das atividades engendradas para a antecipação da prova, dúvida nenhuma pode haver acerca da possibilidade de tal procedimento ser conduzido por árbitros que, afinal, são juízes de fato e de direito (LArb, art. 18), e, pois, também exercem atividade jurisdicional. [...] Assim, inexistindo distinção entre a tutela alcançada em um e outro âmbito, não faz sentido retirar o procedimento de produção antecipada da prova do rol de atribuições do árbitro, a menos que se entenda que estaria ele a exercer apenas uma jurisdição parcial. Sucede que essa construção, preservada convicção diversa, não faria sentido sequer do ponto de vista lógico, na medida em que o objetivo fundamental da convenção arbitral é justamente o de excluir a jurisdição estatal. As ressalvas são hipóteses expressamente previstas na LArb e que, como a doutrina bem adverte, devem ser entendidas em favor da arbitragem, dado que seu condão é justamente o de preservar a instituição, o funcionamento e a atividade do procedimento. De todo modo, sendo a jurisdição atividade vocacionada à solução imperativa de conflitos, cumpre [...] destacar especificamente onde está o conflito no procedimento da produção antecipada da prova. Sobre o tema, recorde-se que a natureza autônoma do direito à prova, naturalmente, não o torna absoluto. Ao contrário: se a produção de determinadas provas pode acarretar relevante restrição a valores tutelados pelo ordenamento jurídico como o sigilo, a privacidade e outros, é natural que o exercício de tal direito deva ser compreendido dentro de certos limites. E esses limites deverão ser determinados a partir da ligação que a prova cuja produção se requereu possui com a situação de direito material subjacente. As discussões, pois, que gravitam em torno do direito (ou não) à produção de tal ou qual prova, conduzem à conclusão de que as ações probatórias autônomas tratam de efetivos conflitos estabelecidos em torno da própria prova, cujo direito à produção é o que constitui a própria causa de pedir deduzida; e que, portanto, materializam real ou potencial oneração ou restrição à esfera jurídica do demandado (tal como acima se exemplificou com o sigilo e a privacidade). Dado que o exercício do direito à prova, autônomo que é, onera as partes e gera efeitos substanciais (e que atuam, inclusive, sobre mora, interrupção da prescrição etc.), forçoso é concluir pela fragilidade do argumento que ora rebatemos; ressalvado, naturalmente, respeito à convicção diversa. [...] Mas, vai-se além: ainda que não se pudesse vislumbrar a existência de um conflito no plano do Direito material, mesmo assim controvérsia dessa ordem não poderia ser tida como condição absoluta para o exercício da jurisdição arbitral. Afinal, se as partes podem escolher qual jurisdição - se arbitral ou estatal - será a responsável por dirimir um conflito, por que não poderiam fazê-lo - ressalvados os argumentos de cunho mercadológico que não são objeto do presente estudo - para uma atividade que, excluído o elemento jurisdicional conflituoso do procedimento, seria então, meramente homologatória? Aqui, se prevalecesse o raciocínio, quem poderia o mais não poderia o menos; o que, mormente à luz do até então enunciado, não encontraria explicação plausível. E mais: se a jurisdição arbitral pode ser instada a apreciar tutelas de urgência mesmo antes da nomeação do árbitro ou da constituição do painel e, por conseguinte, poderia apreciar a produção antecipada de provas fundada em urgência, qual seria a razão para se excluir dos árbitros a apreciação desse mesmo pleito quando não fundado em urgência? Só se explicaria se o fator "urgência" fosse responsável por criar um conflito que, de outra forma, não existiria; construção que, escusado dizer, não teria sentido. [...] A tudo o que já se argumentou acima ainda se soma a conveniência de relegar a presidência da colheita da prova àquele que, no futuro, se e quando houver litígio sobre a matéria de fundo, será incumbido de valorá-la. [...] primeiro e talvez mais relevante aspecto a ser tratado é o seguinte: a produção antecipada da prova resulta, ao fim e ao cabo, em documentação daquilo que se provou; seja qual for o meio de prova. [...] Privar o árbitro da colheita da prova, portanto, afora ser incoerente sob a perspectiva prática, também poderá impor a própria repetição da prova no procedimento arbitral; o que, salvo melhor juízo, importará dupla incongruência, na medida em que, de um lado, vai de encontro tanto aos postulados que permeiam a escolha das partes pela arbitragem, quanto, de outro, com a lógica que norteia a própria produção antecipada da prova. Segundo, conquanto eventual decisão do juízo estatal - definindo que a prova produzida é válida ou inválida ou que a parte tem ou não tem o direito a produzi-la - não tenha o condão de formar coisa julgada; não se afigura possível submeter às partes à repetição injustificada da prova produzida antecipadamente; o que, preservada convicção diversa, poderia gerar fenômeno análogo à eficácia preclusiva da coisa julgada e inviabilizar a produção da prova na arbitragem. [...] Terceiro, também relativamente à flexibilidade admitida na arbitragem: diante da disponibilidade que permeia o procedimento arbitral, é possível que a prova seja produzida preliminarmente no âmbito da própria arbitragem, em fase inicial de postulação. [...] O quarto fundamento favorável à antecipação da prova ser presidida pelo juízo arbitral diz com o prestígio à vontade das partes e ao princípio do favor arbitral: havendo dúvida sobre a competência para examinar a matéria, deve ser privilegiada a opção das partes pela submissão ao juízo arbitral. Se é certo que a jurisdição arbitral repele a estatal que, portanto, assume feição meramente residual, é igualmente certo que, se o litígio for submetido à arbitragem, desde logo e por coerência, também deverá ser eventual medida antecipatória de prova; donde, portanto, a conclusão de que é possível haver arbitragem probatória. Note-se: a única exceção legal à competência dos árbitros, e, ainda assim, facultativa da ida ao Judiciário, não impositiva - é a urgência que dita a impossibilidade prática de a pretensão aguardar a constituição do Tribunal Arbitral” (Produção Antecipada de Prova Desvinculada da Urgência na Arbitragem: Réquiem? YARSHELL, Flávio Luiz; PEREIRA, Guilherme Setoguti (Coordenadores). in Processo Societário IV. São Paulo: Quartier Latin, 2021, p. 455-472)"11.

No Recurso Especial nº 2.023.15 – SP ora em análise, o Superior Tribunal de Justiça assentou que: “Ausente esta situação de urgência, única capaz de autorizar a atuação provisória da Justiça estatal em cooperação, nos termos do art. 22-A da Lei de Arbitragem, toda e qualquer pretensão – até mesmo a relacionada ao direito autônomo à prova, instrumentalizada pela ação de produção antecipada de provas, fundada nos incisos II e II do art. 381 do CPC/2015 – deve ser submetida ao Tribunal arbitral, segundo a vontade externada pelas partes contratantes”.

Concluindo que “[...] em sendo a pretensão afeta ao direito à prova indiscutivelmente relacionada à relação jurídica contratual estabelecida entre as partes, cujos litígios e controvérsias dela advindos foram, sem exceção, voluntariamente atribuídos à arbitragem para solvê-los, dúvidas não remanescem a respeito da competência exclusiva dos árbitros para julgar a correlata ação probatória desvinculada de urgência.

Desse modo, não configurada situação de urgência (assim entendida como risco de perecimento da prova e/ou impossibilidade material de sua produção em momento oportuno), toda e qualquer pretensão relativa ao direito autônomo à prova deve ser submetida ao juízo arbitral em cumprimento à vontade externada pelas partes em compromisso dessa natureza. Impõe-se, portanto, respeitar a liberdade das partes contratantes bem como a exata extensão da cláusula compromissória arbitral. Esta última, redigida sem nenhuma ressalva, como se vê na hipótese dos autos, submete ao juízo da arbitragem todo e qualquer conflito, inclusive, como mais uma vez bem destacou o Relator, "aquele atinente ao direito material à prova - advindo da relação jurídica contratual em cujo instrumento foi inserida" (voto - pág. 19). Desse modo, é de se reconhecer que, ao subtrair do juízo arbitral a competência (que lhe é exclusiva) para processar e julgar a ação de produção de provas ora em comento, fundada exclusivamente nos incisos II e III do art. 381 do CPC/2015, a Corte de origem acabou por malferir, como bem demonstrado pela ora recorrente, a inteligência do art. 22-A da lei 9.307/1996 (com a redação dada pela lei 13.129/2015".

Em conclusão, a corrente doutrinária que sustenta que somente cabe à jurisdição estatal a produção de prova, caso exista algum óbice à apreciação urgente pelo árbitro, visando preservar o direito à prova da parte postulante que se encontra em situação de risco, adotada no Recurso Especial nº 2.023.15 – SP, apresenta-se, em nossa compreensão, como a mais consentânea com a articulação – e mesmo com a divisão de competências legais – existente entre as jurisdições arbitral e estatal, reservando-se a esta última, em cooperação àquela, enquanto não instaurada a arbitragem, preservar o direito à prova da parte postulante que se encontra em situação de risco, com o escopo único de assegurar o resultado útil de futura arbitragem.

__________

1 STJ, REsp n. 2.023.615/SP, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 14/3/2023, DJe de 20/3/2023.

2 Nesse sentido no STJ: "o árbitro não tem poder coercitivo direto, não podendo impor, contra a vontade do devedor, restrições a seu patrimônio, como a penhora, e nem excussão forçada de seus bens" (REsp 944.917/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/09/2008, DJe 03/10/2008).

3 "DIREITO PROCESSUAL CIVIL. ARBITRAGEM. MEDIDA CAUTELAR. COMPETÊNCIA. JUÍZO ARBITRAL NÃO CONSTITUÍDO. 1. O Tribunal Arbitral é competente para processar e julgar pedido cautelar formulado pelas partes, limitando-se, porém, ao deferimento da tutela, estando impedido de dar cumprimento às medidas de natureza coercitiva, as quais, havendo resistência da parte em acolher a determinação do(s) árbitro(s), deverão ser executadas pelo Poder Judiciário, a quem se reserva o poder de imperium. 2. Na pendência da constituição do Tribunal Arbitral, admite-se que a parte se socorra do Poder Judiciário, por intermédio de medida de natureza cautelar, para assegurar o resultado útil da arbitragem. 3. Superadas as circunstâncias temporárias que justificavam a intervenção contingencial do Poder Judiciário e considerando que a celebração do compromisso arbitral implica, como regra, a derrogação da jurisdição estatal, os autos devem ser prontamente encaminhados ao juízo arbitral, para que este assuma o processamento da ação e, se for o caso, reaprecie a tutela conferida, mantendo, alterando ou revogando a respectiva decisão. 4. Em situações nas quais o juízo arbitral esteja momentaneamente impedido de se manifestar, desatende-se provisoriamente as regras de competência, submetendo-se o pedido de tutela cautelar ao juízo estatal; mas essa competência é precária e não se prorroga, subsistindo apenas para a análise do pedido liminar. 5. Recurso especial provido" (REsp 1297974/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 12/06/2012, DJe 19/06/2012).

4 CAHALI, Francisco José. Curso de Arbitragem. Mediação. Conciliação. Resolução CNJ 125/2010. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 306.

5 "PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CAUTELAR. PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVAS. EXISTÊNCIA DE CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA ARBITRAL. AJUIZAMENTO PRÉVIO PERANTE A JUSTIÇA ESTATAL. INSTITUIÇÃO DO JUÍZO ARBITRAL. COMPETÊNCIA. 1. O prévio ajuizamento de ação cautelar perante o Poder Judiciário deriva do poder geral de cautela insculpido na legislação processual e hoje previsto expressamente nos artigos 22-A e 22-B da Lei n. 9.307/1996, incluídos pela Lei n. 13.129/2015. A atribuição de processá-la, todavia, após a instauração da arbitragem, é do juízo arbitral, ocasião em que poderá reanalisar a medida eventualmente concedida. 2. Recurso especial conhecido e provido" (REsp 1586383/MG, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 05/12/2017, DJe 14/12/2017).

6 Sobre o tema vide: FERREIRA, Olavo Augusto Vianna Alves; ROCHA, Matheus Lins; FERREIRA, Débora Cristina Fernandes Ananias Alves. Lei de Arbitragem comentada: artigo por artigo. São Paulo: Juspodivm, 2019.

7 "APELAÇÃO. AÇÃO DE PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVAS. DIREITO AUTÔNOMO À PROVA. CLÁUSULA ARBITRAL. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS PARA A INTERVENÇÃO DO JUÍZO ESTATAL. ART. 22-A DA LEI DE ARBITRAGEM. URGÊNCIA INEXISTENTE. REQUISITOS DO ART. 300 DO NCPC. COMPETÊNCIA DO JUÍZO ARBITRAL. EXTINÇÃO MANTIDA. APELAÇÃO NÃO PROVIDA”, Apelação Cível nº 1125900-40.2018.8.26.0100, 1ª Cam. Res. Dir. Emp., Rel. Des. Alexandre Lazzarini, j. 21.08.2019. “ Indeferimento de medida cautelar anterior à arbitragem visando à produção antecipada de provas. Pedido de caráter satisfativo que não se enquadra no disposto no art. 22A da Lei de Arbitragem, visto que não restou evidenciada a urgência. Regulamento da Câmara com previsão da figura de um árbitro de emergência. Competência do juízo arbitral para dirimir a tutela de urgência" (TJSP, 1ª Cam Res Dir Emp, TP 2005238-05.2019.8.26.0000, j. 22.01.2019, monocrática).

8 Disponível aqui.

9 STJ, REsp n. 2.023.615/SP, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 14/3/2023, DJe de 20/3/2023.

10 STJ, REsp n. 2.023.615/SP, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 14/3/2023, DJe de 20/3/2023.

11 STJ, REsp n. 2.023.615/SP, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 14/3/2023, DJe de 20/3/2023.

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Colunistas

Marcelo Bonizzi é professor doutor de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da USP/Largo São Francisco. Autor de livros e artigos. Pós-doutor pela Faculdade de Direito de Lisboa. Procurador do Estado de São Paulo. Atua como árbitro (FIESP/CAMES E CAMESC).

Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira é procurador do Estado de São Paulo. Doutor e Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP. Professor do Programa de doutorado e mestrado em Direito da UNAERP. Professor convidado de cursos de pós-graduação. Membro de listas de árbitros de diversas Instituições Arbitrais. Foi membro da Comissão Especial de Arbitragem do Conselho Federal da OAB. Autor de livros jurídicos. Coordenador Acadêmico do site Canal Arbitragem.