Entre as muitas interações entre o Poder Judiciário e o juízo arbitral1, está a ação de complementação de sentença arbitral, prevista no art. 33, § 4º, da lei 9.307/96 (“A parte interessada poderá ingressar em juízo para requerer a prolação de sentença arbitral complementar, se o árbitro não decidir todos os pedidos submetidos à arbitragem”).
Tal dispositivo foi incluído pela lei 13.129/15, que alterou a Lei de Arbitragem e – entre outras coisas –: a) corrigiu o § 1° do art. 23 para admitir expressamente a sentença parcial; b) revogou o inciso V do art. 32, que autorizava a propositura de ação anulatória quando a sentença arbitral não decidisse “todo o litígio submetido à arbitragem”; e c) aperfeiçoou a redação do § 1° do art. 33 para admitir, expressamente, o cabimento de ação anulatória em face de sentença arbitral parcial.
Diferentemente da ação anulatória (art. 33, caput, da Lei de Arbitragem), cujas causas de invalidação da sentença arbitral estão no rol taxativo do art. 322, a ação de complementação da sentença arbitral se justifica pelo fato de o árbitro não ter apreciado um dos pedidos formulados. Ou seja, a hipótese é de uma sentença arbitral citra petita.
Na visão de José Rogério Cruz e Tucci, entre os vícios que maculam a sentença arbitral, encontra-se aquele referente à falta de harmonia entre o “que foi pedido e o que foi efetivamente decidido. A sentença arbitral é passível de anulação e/ou complementação quando for considerada respectivamente ultra, extra ou citra petita, porque infiel ao objeto do processo”.3
Nesse contexto, “caso o árbitro deixe de se manifestar sobre alguma questão abrangida pela convenção de arbitragem, deverá o juiz devolver o processo ao árbitro para que este se manifeste sobre a questão pendente”.4
Importante ter em mente que o juiz não analisará o mérito da sentença arbitral, mas apenas examinará se a decisão deixou de examinar um dos pedidos formulados, sem qualquer incursão na discussão de fundo.5
Na prática, cabe ao Poder Judiciário fazer uma confrontação objetiva entre o conjunto de pedidos formulados pelas partes e a decisão arbitral, de modo que, “constatada a ausência de subsunção dos pedidos vis a vis e o que fora decidido pela sentença arbitral, consubstanciada estará a procedência do pedido autoral”6.
Em outras palavras, se restar configurada a incongruência entre os pedidos deduzidos e a sentença arbitral, deverá o Judiciário determinar que o árbitro ou o tribunal arbitral prolate nova decisão, examinando o item não apreciado.
Registre-se que a falta de análise de um dos pedidos (hipótese do art. 33, § 4º) também pode materializar a violação ao art. 26, III, da Lei de Arbitragem (no dispositivo, os árbitros devem resolver as “questões que lhes forem submetidas”), o que autorizaria, em tese, a ação anulatória com base no art. 32, III (em virtude da ausência dos requisitos do art. 26, já que, embora a sentença tenha dispositivo, este está incompleto). Nessa hipótese específica, deve ser observado o prazo de 90 dias para a propositura da ação anulatória.
Por outro lado, em relação ao prazo para a propositura da ação de complementação da sentença arbitral7, entendemos que deve ser observado o prazo prescricional inerente à respectiva pretensão. Isso porque, resgatando a clássica lição de José Carlos Barbosa Moreira, “se o todo é inexistente quando nenhum dos itens que compunha o thema decidendum foi objeto de pronunciamento na conclusão, por igualdade de razão será inexistente a parte ou capítulo relativo a algum item específico, sobre o qual haja deixado o juiz de pronunciar-se no dispositivo”.8 Ou seja, se um pedido não foi apreciado, nada foi decidido em relação a ele, podendo a parte propor uma nova ação para discutir o tema.9
Alguma controvérsia pode existir acerca da possibilidade de propositura da ação de complementação da sentença arbitral, quando a parte interessada não tiver apresentado anteriormente eventual pedido de esclarecimento (art. 30 da Lei de Arbitragem10).
Respeitados os posicionamentos em sentido contrário11 e salvo algum ajuste específico na convenção de arbitragem, entendemos que os “embargos arbitrais” não são um requisito de admissibilidade da ação de complementação da sentença arbitral. Assim como a ausência de embargos de declaração não impede, por exemplo, a propositura da ação para buscar a fixação dos honorários sucumbenciais não estipulados na decisão judicial transitada em julgado (art. 85, § 18, do CPC), não se pode fazer uma interpretação restritiva, suprimindo da parte o direito de propor a ação de complementação da sentença arbitral, mesmo que não tenha apresentado anteriormente o pedido de esclarecimento para corrigir a omissão.
Até porque, o vício, na origem, não foi da parte, e sim do árbitro ou do tribunal arbitral, que deixou de apreciar algo que lhe foi requerido. Essa é a interpretação mais consentânea com os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório e, ao mesmo tempo, evita que a parte prejudicada sofra novos prejuízos em decorrência de uma “preclusão-surpresa”.
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1 Para uma visão panorâmica da simbiose existente entre as jurisdições estatal e arbitral, ver PINHO, Humberto Dalla Bernardina de; MAZZOLA, Marcelo. A cooperação como elemento estruturante da interface entre o Poder Judiciário e o Juízo Arbitral. Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP. Rio de Janeiro. Ano 11. Volume 18. Número 3. Setembro a Dezembro de 2017, p. 198-218.
2 PINHO, Humberto Dalla Bernardina de; MAZZOLA, Marcelo; Manual de Mediação e Arbitragem. São Paulo: SaraivaJur, 2019, p. 350. No mesmo sentido FERREIRA, Olavo A. V. Alves et al. Lei de Arbitragem Comentada. 2. ed. São Paulo: Juspodivm, 2021, p. 328.
3 CRUZ E TUCCI, José Rogério. Ainda sobre a liberdade do tribunal arbitral e o princípio da adstrição. Disponível em ConJur - Ainda a liberdade do tribunal arbitral e o princípio da adstrição. Acesso em: 10.01.2023.
4 FARIA, Marcela Kohlbach de. Ação anulatória da sentença arbitral: aspectos e limites. Brasília: Gazeta Jurídica, 2014, p. 75. No mesmo sentido: “(...) com a ação para complementação da sentença arbitral, busca-se, perante o Poder Judiciário, que o processo arbitral seja restabelecido, com o aproveitamento dos atos praticados, para que seja corrigida a decisão final da arbitragem, com a prolação de uma sentença arbitral complementar”. GONÇALVES, Mauro Pedro. Os meios de Correção e Invalidação da sentença arbitral, de acordo com a jurisprudência do STJ. Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 59, out-dez/2018, p. 167-179.
5 “Não cabe ao Poder Judiciário, que não é instância recursal do tribunal arbitral (também cf. art. 18, da Lei de Arbitragem), dizer se houve erro ou acerto na decisão de mérito proferida. O que se deve examinar, nesta análise preambular, é se a sentença arbitral parcial é, como se alega, extra e/ou infra petita, enquadrando-se em alguma das hipóteses do art. 32, e naquela do art. 33, § 4°, da Lei n. 9.307/96. Respeitado entendimento diverso, o exame dos autos demonstra que não resta evidenciado nem um, nem outro, e que, portanto, as hipóteses legais de nulidade da sentença arbitral e de prolação de sentença arbitral complementar não estão presentes no caso.” TJ/SP, Agravo de Instrumento 2170826-30.2020.8.26.0000, Rel. Des. Grava Brazil, Segunda Câmara Reservada de Direito Empresarial, julgamento em 17.09.2020.
6 FIORAVANTI, Marcos Serra Neto. Sentença arbitral parcial e as consequências práticas das alterações trazidas pela Lei nº 13.129/2015. Disponível em
Sentença arbitral parcial e as consequências práticas das alterações trazidas pela Lei nº 13.129/2015 | Portal Jurídico (investidura.com.br). Acesso em: 10.01.2023.
7 Entendemos que a escolha de uma via excluiria a outra. Ou seja, ajuizando-se a ação anulatória com base no art. 32, III, da Lei de Arbitragem, não faria sentido a ação de complementação da sentença arbitral. Da mesma forma, optando-se pela ação de complementação da sentença arbitral, faltaria interesse de agir para a ação anulatória com base no mesmo fundamento. Por outro lado, num cenário em que há uma primeira sentença parcial nula e uma segunda válida, porém incompleta, é possível, em tese, utilizar ambas as ferramentas. De toda forma, diante dos diversos cenários possíveis e da multiplicidade de soluções, optamos por não problematizar o ponto nesse breve ensaio. Oportunamente, retornaremos ao tema.
8 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Item do pedido sobre o qual não houve decisão. Temas de Direito Processual: segunda série. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 247.
9 No CPC/15, a lógica foi prestigiada e isso fica claro à luz do art. 85, § 18 (“Caso a decisão transitada em julgado seja omissa quanto ao direito aos honorários ou ao seu valor, é cabível ação autônoma para sua definição e cobrança”).
10 Art. 30. No prazo de 5 (cinco) dias, a contar do recebimento da notificação ou da ciência pessoal da sentença arbitral, salvo se outro prazo for acordado entre as partes, a parte interessada, mediante comunicação à outra parte, poderá solicitar ao árbitro ou ao tribunal arbitral que: I - corrija qualquer erro material da sentença arbitral; II - esclareça alguma obscuridade, dúvida ou contradição da sentença arbitral, ou se pronuncie sobre ponto omitido a respeito do qual devia manifestar-se a decisão. Parágrafo único. O árbitro ou o tribunal arbitral decidirá no prazo de 10 (dez) dias ou em prazo acordado com as partes, aditará a sentença arbitral e notificará as partes na forma do art. 29
11 “Outro ponto que não foi tratado no § 4º do artigo 33, mas que faz todo sentido, como condição de procedibilidade, isto é, como condição da ação de complementação, seria o fato de a parte autora ter apresentado pedido de esclarecimentos tendente a complementar a sentença arbitral ainda na arbitragem, pois se não o fez não me parece adequado que invoque o §4º para ajuizar demanda de complementação no Poder Judiciário (dormientibus non sucurrit jus)”. FIORAVANTI, Marcos Serra Neto. Sentença arbitral parcial e as consequências práticas das alterações trazidas pela Lei nº 13.129/2015. Disponível em
Sentença arbitral parcial e as consequências práticas das alterações trazidas pela Lei nº 13.129/2015 | Portal Jurídico (investidura.com.br). Acesso em: 10.01.2023.