Observatório da Arbitragem

Projeto de reforma da lei de arbitragem (PL 3.293/21): inconstitucionalidade

Louvamos que o Legislador se preocupe em aprimorar o sistema arbitral, mas existem pontos que merecem sua maior atenção.

25/10/2022

A Lei de Arbitragem, que tem como raiz a Lei Modelo da UNCITRAL de 1985, órgão da ONU, tem merecido aplicação e aplausos pelo meio acadêmico e pelo Judiciário, tanto que o Superior Tribunal de Justiça em 2019 veiculou matéria no seu sítio oficial com o título: “A jurisdição arbitral prestigiada pela interpretação do STJ”.

Causou surpresa aos operadores do Direito, a apresentação do projeto de lei 3.293/21, que visa alterar a Lei de Arbitragem, dentre outras questões pela ausência de debate, além de que não foram ouvidos especialistas da comunidade acadêmica e profissional. Sem prejuízo, resta apreciar a questão da compatibilidade do projeto em tela com a Constituição Federal.

Impende lembrar que a arbitragem é forma de solução jurisdicional privada de litígios sobre direitos patrimoniais disponíveis, aplicando-se a autonomia da vontade das partes. Contudo, o Projeto em debate apresenta uma ingerência estatal legislativa totalmente indevida, buscando limitar o exercício da jurisdição privada, impondo requisitos incompatíveis com a livre iniciativa e autonomia da vontade.

O Projeto em tela busca limitar a atuação do árbitro, prevendo vedações, dentre elas: i) o árbitro não poderá atuar, concomitantemente, em mais de dez arbitragens (alteração proposta do §8 do art. 13 da LA); ii) não poderá haver identidade absoluta ou parcial dos membros de dois tribunais em funcionamento (alteração proposta do §9 do art. 13 da LA); iii) os integrantes da secretaria ou diretoria executiva da câmara arbitral não poderão funcionar em nenhum procedimento administrado por aquele órgão, seja como árbitro ou ainda como patrono de qualquer das partes (alteração proposta do §3 do art. 14 da LA).

Todas essas previsões afrontam o princípio constitucional da liberdade contratual, que tem fundamento na livre iniciativa, art. 170, caput, da CF, além da proporcionalidade e da razoabilidade, já que a intervenção do Estado Legislador no âmbito da liberdade contratual é excepcional, restringindo o exercício da profissão de árbitro de forma a inviabilizar a atividade econômica daqueles que se dedicam exclusivamente a tal finalidade e prejudicar, sobremaneira, aqueles árbitros que se destacam e são indicados com maior frequência pelos profissionais do direito. Se o árbitro é nomeado para mais de dez arbitragens e há identidade dos membros significa dizer que a comunidade arbitral consagra a qualidade diferenciada do trabalho para decidir de forma célere e imparcial a demanda.

Também não se pode esquecer da afronta ao princípio da igualdade, já que limitar o número de atos de profissionais liberais é algo que inexiste na legislação das profissões em geral.  

A vedação dos integrantes da secretaria e direção da câmara à atuação como árbitros ou patronos também é totalmente desarrazoada e desproporcional, privando grandes talentos da atuação profissional como árbitros e a constante atualização, mais do que necessária desses profissionais.

O dever de revelação no citado projeto de lei foi tratado de forma equivocada, incluindo a expressão, totalmente não técnica, que o dever de revelar deverá ser exercido quando houver “dúvida mínima” quanto à imparcialidade  (alteração proposta do §1 do art. 14 da LA), tornando-o supérfluo e de difícil identificação, gerando insegurança jurídica, tanto que as diretrizes internacionais veiculam situações que não comportam revelação (vide diretrizes da IBA sobre Conflito de Interesses em Arbitragem Internacional), certo que o texto em vigor ao consagrar a expressão “dúvida justificada”, já é suficiente para identificação das situações passíveis de revelação.

Melhor sorte não têm as previsões que colidem com a possibilidade de confidencialidade (Arts. 5-A e 5-B do Projeto em comento), que impõe obrigações de publicação, pela câmara na sua página da internet, da composição do tribunal e do valor envolvido, além da previsão de que após o encerramento da jurisdição arbitral deverá ser publicada, da mesma forma, a íntegra da sentença arbitral, com exclusão de trechos indicados pelas partes, justificadamente, para assegurar a confidencialidade. Trata-se de mais uma invasão indevida da liberdade contratual, que tem fundamento na livre iniciativa, art. 170, caput, da CF, já que impõe deveres aos particulares totalmente desnecessários, acarretando restrição à autonomia privada sem justificativa de interesse público, que inexiste em arbitragens privadas.

A proposta de redação do art. 33, § 1º da Lei de Arbitragem rompe com o que consta do Código de Processo Civil (art. 189, IV) que prevê o segredo de justiça das ações que versem sobre arbitragem, além da necessidade de se manter o segredo do negócio, protegido pelos mandamentos constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência.

Merece aplausos a aprovação para designação de audiência pública, pela Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania, para debater o projeto de lei 3.293/21, viabilizando seja submetido ao debate pelos operadores do direito, docentes e membros da comunidade jurídica, evitando-se o esvaziamento da arbitragem no Brasil, com a opção de foros estrangeiros, acarretando terrível retrocesso, em prejuízo da geração de negócios e empregos.

Ademais, insistimos que de acordo com o art. 1º, IV da CF/88, a livre iniciativa constitui um dos fundamentos da República, além de representar um dos princípios gerais da atividade econômica e financeira (art. 170, caput da CF/88). Assim, qualquer intervenção estatal no domínio econômico que venha a mitigar ou suprimir a autonomia da vontade das partes não se justifica, somente se justificaria para resguardar os princípios constitucionais da ordem econômica previstos no art. 170 da Lei Maior, impondo-se o respeito à livre iniciativa e à livre concorrência, que em uma economia livre restringe a interferência estatal nas ações realizadas pelas pessoas e empresas.

Louvamos que o Legislador se preocupe em aprimorar o sistema arbitral, mas existem pontos que merecem sua maior atenção, dentre eles a previsão: a) da arbitragem tributária: recomendada a sua implantação em pesquisa feita pelo CNJ/Insper, no Diagnóstico do Contencioso Judicial Tributário Brasileiro de 2022; e b) do despejo por falta de pagamento como matéria sujeita à arbitragem, diante da posição do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que é matéria com natureza de ação executiva lato sensu (Resp 1481644), além de todas as tutelas possessórias.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

Marcelo Bonizzi é professor doutor de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da USP/Largo São Francisco. Autor de livros e artigos. Pós-doutor pela Faculdade de Direito de Lisboa. Procurador do Estado de São Paulo. Atua como árbitro (FIESP/CAMES E CAMESC).

Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira é procurador do Estado de São Paulo. Doutor e Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP. Professor do Programa de doutorado e mestrado em Direito da UNAERP. Professor convidado de cursos de pós-graduação. Membro de listas de árbitros de diversas Instituições Arbitrais. Foi membro da Comissão Especial de Arbitragem do Conselho Federal da OAB. Autor de livros jurídicos. Coordenador Acadêmico do site Canal Arbitragem.