Observatório da Arbitragem

Notas sobre o projeto de lei que disciplina a atuação do árbitro

Tramita na Câmara dos Deputados o PL 3.293/21, que visa alterar a Lei de Arbitragem, para “disciplinar a atuação do árbitro, aprimorar o dever de revelação, estabelecer a divulgação das informações após o encerramento do processo arbitral e a publicidade das ações anulatórias".

23/8/2022

Tramita na Câmara dos Deputados, sob regime de urgência, o PL 3.293 de 2021, de autoria da Deputada Federal Margarete Coelho –PP-PI, que visa alterar a Lei de Arbitragem, para "disciplinar a atuação do árbitro,  aprimorar o dever de revelação, estabelecer a divulgação das informações após o encerramento do processo arbitral e a publicidade das ações anulatórias".

Dado o ineditismo dessa iniciativa parlamentar isolada, não precedida de debates na comunidade jurídica, e que suscitou, de pronto, reação desfavorável no meio arbitral, mormente porque "colocam em risco o ambiente negocial do país"1, dispomo-nos a analisar brevemente o seu conteúdo.

A arbitragem no Brasil vem se consolidando, não sem alguns entraves, há apenas duas décadas, a contar da decisão do STF que afastou a suscitada inconstitucionalidade desse instituto, encontrando-se atualmente em franca expansão e elevado patamar de aceitação e eficácia perante os jurisdicionados.

Nossa Lei de Arbitragem (Lei federal nº 9.307, de 1996 - LA), baseada na Lei Modelo da UNCITRAL (United Nations Commission on International Trade Law), é bastante enxuta, porém abrangente, regulando a arbitragem doméstica e internacional, assim como as disputas que se desenvolvem entre particulares. inclusive com a Administração Pública, por força de reforma legislativa de 2015, contemporânea à edição do vigente CPC, que, no art. 3º, § 1º, a permite expressamente a arbitragem, nos termos da lei.

Dentre as peculiares vantagens da arbitragem, bem apontadas pela doutrina, estão: "a possibilidade, em certa medida de escolha do julgador, por razões de confiança ou de conhecimento técnico sobre a matéria; a duração do processo limitada em regra a seis meses, com expressiva celeridade em relação aos feitos judiciais, e sem a possibilidade de recursos; além da flexibilidade procedimental, com maior informalidade, da confidencialidade e da equação custo-benefício - que pode ser medida em função de todos os demais benefícios".2

Por conta dessas características, mormente da flexibilidade procedimental e adaptabilidade à solução de conflitos nos diversos ramos da atividade econômica e financeira, a autorregulamentação da arbitragem, por meio dos regulamentos das câmaras arbitrais e diretrizes internacionais de soft law, tem se afigurado suficiente para atender aos seus objetivos, dispensando a interferência suplementar do legislador.

Ressalvadas as raras conexões com o processo civil (tutelas de urgência, carta arbitral e cumprimento de sentença), procura-se evitar a judicialização da causa, situação que, no entanto, vem se tornando recorrente dada a litigiosidade que envolve determinadas disputas. Não obstante, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por suas Varas Empresariais e de Conflitos relacionados à Arbitragem, assim como o Superior Tribunal de Justiça, tem se revelado um ambiente favorável à arbitragem, prestigiando os poderes e decisões dos árbitros e a competência do juízo arbitral.

Pode-se afirmar, assim, que a arbitragem brasileira caminha com segurança e desenvoltura, não se vislumbrando óbices ao exercício dessa atividade que demandem o pretendido aperfeiçoamento legislativo, que, todavia, merece ser apreciado do ponto de vista estritamente jurídico.

Em primeiro lugar, no que se refere à figura do árbitro, pretende a propositura acrescentar um § 8º ao art. 13 da LA, impedindo o árbitro de “atuar, concomitantemente, em mais de dez arbitragens, seja como árbitro único, coárbitro ou como presidente do tribunal arbitral.”

A preocupação do legislador, de per si, não é infundada, pois visa evitar a ocorrência de conflitos de interesse, que comprometem a independência do julgador. Segundo a LA, o árbitro pode ser qualquer pessoa capaz, que tenha a disponibilidade e a confiança das partes (art. 13), ficando, todavia, impedidos de atuar aqueles que possuam com as partes ou com o litígio alguma das situações caracterizadoras de impedimento ou suspeição, nos termos do CPC.

Nesse sentido, já apontava a doutrina estrangeira, como exemplo de comprometimento da independência e imparcialidade, o caso em que o mesmo mandatário, num período de três anos, nomeia o mesmo árbitro 50 vezes, não tendo este revelado as nomeações passadas3.

Se deve existir um critério quantitativo para as nomeações, a limitação legal que se pretende introduzir não se baseia num determinado espaço de tempo, preocupando-se, tão somente, com a atuação concomitante do árbitro em até dez arbitragens, o que, convenhamos, não é mesmo uma prática saudável para o correto e imparcial desempenho de seu mister, como também não se afigura tão  frequente a ponto de justificar a iniciativa parlamentar sob o ponto de vista do conflito de interesses.

Para tanto, a regulamentação vigente, que pode ser adotada na cláusula compromissória ou nos regulamentos das Câmaras Arbitrais, é representada pelas IBA Guidelines on Conflict of Interest in International Commercial Arbitration, conquanto sem força vinculante, que também mencionam, a título de exemplo, o caso de mais de duas nomeações sucessivas no período de três anos4.

Além de limitar o número de nomeações concomitantes, impõe a propositura no seguinte parágrafo 9º uma vedação genérica para a atuação do árbitro nestes termos:

"§9º Não poderá haver identidade absoluta ou parcial dos membros de dois tribunais arbitrais em funcionamento, independentemente da função por eles desempenhada."

Para se compreender a mens legis, forçoso recorrer à justificação, que se preocupa, propriamente, com aspectos administrativos da Câmara Arbitral, sobre a composição e  direção desses dois tribunais arbitrais em funcionamento:

"Considerando, ainda, a majoritária prevalência de arbitragens institucionalizadas e a cada vez mais destacada atuação das câmaras arbitrais, inclusive para decidir questões administrativas previamente à formação do tribunal arbitral, é preciso estabelecer uma disciplina legal para evitar as situações de conflitos de interesses que podem surgir em relação aos órgãos diretivos dessas câmaras, eis que são quase sempre compostos por profissionais que também atuam como árbitro perante arbitragens administradas pela própria câmara e, por vezes, até advogam perante a câmara".

Demais disso, a redação do dispositivo encerra uma impropriedade terminológica, por englobar no termo "tribunais arbitrais", o "tribunal", propriamente dito (o painel arbitral, ou conjunto de julgadores) com "câmara arbitral" (a instituição), o que pode levar a infindáveis questionamentos e impugnações, sem qualquer benefício em prol de evitar um possível conflito de interesses, a serem evitados pelo próprio árbitro ao exercer o seu dever de revelação.

O dispositivo, na verdade, parece ter destinatários certos, refugindo aos princípios que regem a elaboração legislativa, da impessoalidade e da generalidade.

No tocante ao dever de revelação, encontra-se expressamente disciplinado na LA, em seu artigo 14, § 1º, nos entido de que "As pessoas indicadas para funcionar como árbitro têm o dever de revelar, antes da aceitação da função, qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência."

Diz o artigo 14. Do PL, em seu parágrafo 1º:

§1º A pessoa indicada para funcionar como árbitro tem o dever de revelar, antes da aceitação da função e durante todo o processo a quantidade de arbitragens em que atua, seja como árbitro único, coárbitro ou presidente do tribunal, e qualquer fato que denote dúvida mínima quanto à sua imparcialidade e independência.

§3º Os integrantes da secretaria ou diretoria executiva da câmara arbitral não poderão funcionar em nenhum procedimento administrado por aquele órgão, seja como árbitro único, coárbitro ou presidente do tribunal, ou ainda como patrono de qualquer das partes.

Desnecessário, a nosso ver, a menção à quantidade de arbitragens em que atue – ou em que tenha atuado, seria melhor acrescentar - mas tão somente no que diz respeito a possível conflito de interesses com as partes da causa.

Já, no que se refere à vedação para atuar de pessoas ocupantes de cargos administrativos na instituição arbitral, afigura-se indevida restrição ao livre exercício de uma atividade profissional, cujas regras de atuação do árbitro já se encontram definidas em lei geral – o CPC – nos casos de impedimento e suspeição.

Nesse ponto, o dispositivo, senão a propositura como um todo, ao que já analisamos, pode ser  inquinada de inconstitucionalidade material, por afrontar o direito fundamental ao livre exercício do trabalho e das profissões, consoante estabelecido no art. 5º, inciso XIII,  da CF:

XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;

No que toca à ação anulatória, e não menos errática e gravosa é a intervenção legislativa, do seguinte teor:

Art. 33. ........................................................................................

 §1º A demanda para a declaração de nulidade da sentença arbitral, parcial ou final, seguirá as regras do procedimento comum, previstas na Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil), respeitará o princípio da publicidade e deverá ser proposta no prazo de até 90 (noventa) dias após o recebimento da notificação da respectiva sentença, parcial ou final, ou da decisão do pedido de esclarecimentos

Desde logo, descabida a menção ao procedimento comum do CPC de 1973, revogado em março de 2015 (o PL é de 2021), pelo advento da lei 13.105.

Quanto às alterações procedimentais, em nada inovam a disciplina sobre a ação anulatória vigente, em repetição desnecessária (além de equivocada) das suas disposições.

No que se refere à questão da publicidade da ação anulatória, a matéria também se encontra regulada pela LA e pelo CPC. Uma das grandes vantagens da arbitragem, nesse sentido, é justamente a confidencialidade, eis que a publicidade pode causar prejuízos irreparáveis às empresas ou pessoas participantes da arbitragem, notadamente no que se refere aos segredos comerciais e industriais, ou ao sigilo de dados.

Porque a arbitragem possui base contratual, onde são definidos, obrigatoriamente, na convenção arbitral (cláusula compromissória ou compromisso arbitral) todos os fatores que regularão eventual instituição da arbitragem e seu procedimento (art. 10 da LA), ali caberá a opção pela confidencialidade (se já não for imposta pelo Regulamento da Câmara Arbitral), representando, pois, a imposição genérica da publicidade, que a lei só reserva às arbitragens com a Administração Pública, séria violação ao princípio pacta sunt servanda, base da livre iniciativa econômica e da liberdade contratual.

Por fim, com relação aos acréscimos à LA, louvando-se na justificação de evitar-se a "repetição de painéis arbitrais", a propositura exige a publicação da composição do painel e o valor envolvido na controvérsia (art. 5-A). Quanto à repetição, a matéria se submete ao dever de revelação dos árbitros, que deverão declinar de arbitragens que ensejam possíveis conflitos de interesse. Já, quanto ao valor envolvido, somente se justificaria em se tratando das arbitragens com a Administração Pública, pois a questão do valor encontra-se compreendida na proteção à confidencialidade e do sigilo de dados.

O quanto foi dito se aplica com relação à publicação “na íntegra” da sentença arbitral (art. 5-B L).

__________

1 Cf. Nota Pública da CAMARB

2 CAHALI, Francisco José. Curso de arbitragem, cit., p. 119 e ss.

3 Conforme esclarecem JUDICE, José Miguel; CALADO, Diogo. Independência e imparcialidade do arbitro? Alguns aspectos polêmicos em uma visão luso-brasileira, cit., p. 44, .considerando-se suspeita a circunstância do (sic) mesmo árbitro ter sido nomeado pela parte mais de duas vezes (ponto 3.1.4 da Orange List). Essa aplicação exemplificativa foi enunciada nas conhecidas três listas: verde, laranja e vermelha.

4 Parties should be aware of some of the key examples falling within the Orange List. The arbitrator has within the past three years been appointed as arbitrator on two or more occasions by one of the parties or an affiliate of one of the parties (except where there is a practice or custom from drawing from a small pool, specialised pool of arbitrators as in the case of maritime or commodities arbitration) (List 3.1.3).

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Colunistas

Marcelo Bonizzi é professor doutor de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da USP/Largo São Francisco. Autor de livros e artigos. Pós-doutor pela Faculdade de Direito de Lisboa. Procurador do Estado de São Paulo. Atua como árbitro (FIESP/CAMES E CAMESC).

Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira é procurador do Estado de São Paulo. Doutor e Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP. Professor do Programa de doutorado e mestrado em Direito da UNAERP. Professor convidado de cursos de pós-graduação. Membro de listas de árbitros de diversas Instituições Arbitrais. Foi membro da Comissão Especial de Arbitragem do Conselho Federal da OAB. Autor de livros jurídicos. Coordenador Acadêmico do site Canal Arbitragem.