Observatório da Arbitragem

Arbitragem contra a Fazenda Pública e precatórios: As recentes decisões do TJ/SP, STJ e STF

A sentença arbitral constitui título executivo judicial, passível de cumprimento de sentença no Judiciário, também sujeito a impugnação ao cumprimento de sentença, conforme prevê a Lei de Arbitragem.

9/8/2022

A sentença arbitral constitui título executivo judicial, passível de cumprimento de sentença no Judiciário1 (artigo 515, VII do Código de Processo Civil de 20152 e art. 31, da Lei da Arbitragem), também sujeito a impugnação ao cumprimento de sentença, nos termos do artigo 525 e seguintes do Código de Processo Civil de 2015, conforme prevê o artigo 33 § 3º da Lei de Arbitragem. Em poucas palavras, aplicável no cumprimento de sentença arbitral o mesmo regime jurídico da sentença judicial3.

Ocorre que quando a execução da sentença arbitral é proferida em desfavor da Fazenda Pública é aplicável o regime comum de cumprimento de sentença em face dos entes públicos (artigos 534 e seguintes do Código de Processo Civil de 2015) culminando na expedição de precatório4.

Todavia, essa regra encontrou três exceções em Acórdãos do Tribunal de Justiça de São Paulo.

i) No Agravo de Instrumento nº 3004318-77.2020.8.26.0000, de relatoria do Desembargador Souza Nery, julgado em 03 de março de 2021, interposto pela Fazenda Pública do Estado de São Paulo, visando reformar decisão que determinou o cumprimento de obrigação de fazer, consistente no pagamento direto e imediato de débito reconhecido em sentença arbitral de cunho declaratório, equivalente a mais de cento e onze milhões de reais, consistente em deduções de impostos feitas pela Fazenda Pública, a 12ª Câmara de Direito Público do citado Tribunal assentou:

Embora a decisão exequenda empregue o termo pagamento tratam estes autos de clara obrigação de fazer, consistente em dar regular e integral cumprimento a contrato a que as partes, Estado e particular, livremente acederam – Demais disso, não se trata de obrigação que tenha sido criada, ou estabelecida, pela decisão exequenda – Já constava de contrato, cujo inadimplemento parcial teve início há quase dez anos – O sinalagma converte-se em obrigação de fazer, ainda que expressa monetariamente (TJSP;  Agravo de Instrumento 3004318-77.2020.8.26.0000; Relator (a): Souza Nery; Órgão Julgador: 12ª Câmara de Direito Público; Foro Central - Fazenda Pública/Acidentes - 16ª Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 03/03/2021; Data de Registro: 13/04/2021).

Diante dessa decisão, a Fazenda Pública do Estado de São Paulo interpôs o REsp nº 1.962.305/SP e, em 08 de outubro de 2021, o Min. Og Fernandes deferiu o pedido liminar formulado para o fim de suspender a aplicação da multa cominatória e a exigência de imediato pagamento da quantia executada, estando o recurso pendente de julgamento.

ii) No Agravo de Instrumento 3003450-36.2019.8.26.0000, da relatoria da Desembargadora Maria Olívia Alves, a 6ª Câmara de Direito Público, em 03 de fevereiro de 2020, também afastou a aplicação do regime de pagamento por precatório:

AGRAVO DE INSTRUMENTO – Cumprimento de sentença arbitral – Contrato administrativo – Reconhecimento da ilegalidade das retenções de pagamento realizadas pelo Estado – Decisão por meio da qual foi rejeitada a impugnação ofertada pelo Estado, com afastamento da adoção do regime de precatórios para o cumprimento da obrigação e determinação de imediata liberação dos valores correspondentes à contraprestação dos serviços prestados, no prazo de 15 (quinze) dias, sob pena de multa – Irresignação do Estado – Título executivo judicial – Situação específica dos autos que não é caso de sujeição ao regime de precatórios, previsto no artigo 100 da Constituição FederalHipótese em que não se verifica condenação em obrigação de pagar quantia, mas de mero reconhecimento do dever de cumprir o contrato, como decorrência lógica do reconhecimento, pelo Tribunal Arbitral, da ilegalidade da conduta do ente contratante em reter as contraprestações relativas aos serviços inequivocamente prestados - Continuidade de relação contratual pré-existente que, no caso, envolve o dispêndio de valores já previstos em orçamento – Exequibilidade do título reconhecida pelo Estado – Excesso de execução não demonstrado – Recurso não provido (TJSP;  Agravo de Instrumento 3003450-36.2019.8.26.0000; Relator (a): Maria Olívia Alves; Órgão Julgador: 6ª Câmara de Direito Público; Foro Central - Fazenda Pública/Acidentes - 2ª Vara de Fazenda Pública; Data do Julgamento: 03/02/2020; Data de Registro: 04/02/2020) (grifo nosso)

Essa decisão foi impugnada no REsp nº 1.870.456 – SP, tendo a Corte Superior não conhecido do recurso sob o fundamento de que a controvérsia não se referiu à natureza jurídica da sentença arbitral, mas ao seu conteúdo, encontrando óbice na Súmula 7/STJ. Consta do Voto observação do D. Relator:

"Atente-se: não se está afirmar, neste Voto, que a arbitragem interna seja um mundo paralelo, indene à incidência das regras constitucionais, inclusive relativas à necessidade de, como regra, o pagamento de obrigações por quantia, devidas pela Fazenda Pública, observar o regime do art. 100 da CF. Isso, evidentemente, violaria o princípio da igualdade, permitindo, em detrimento dos que litigam perante o Poder Judiciário, que os subscritores da convenção de arbitragem, no recebimento dos créditos que tem com o Poder Público, obtivessem expressiva e insustentável vantagem sobre as camadas mais carentes da população, que certamente não dispõem de recursos para acesso à jurisdição privada.

O caso presente guarda as particularidades já expostas, atinentes ao conteúdo do pronunciamento arbitral à luz dos elementos fáticos da demanda (análise do contrato, ocorrência de financiamento internacional da aquisição, modo como se operou a retenção de valores, etc.), cuja apreciação não pode ocorrer nesta via ante o já apontado óbice da Súmula 7/STJ".

A questão subiu ao STF, por meio do RE nº 1.387.787/SP interposto pela Fazenda Pública do Estado de São Paulo, com fundamento no art. 102, inc. III, al. "a", da Constituição Federal, mas, em 01 de julho de 2022, foi negado seguimento ao recurso, ao fundamento de que “divergir do entendimento adotado pelo Tribunal a quo, de forma a conferir nova interpretação à sentença arbitral, demandaria a análise de cláusulas contratuais, bem como o reexame do conjunto fático-probatório dos autos, o que inviabiliza o processamento do apelo extremo, nos termos da Súmula 279 do STF”. Há agravo regimental interposto e concluso ao Relator, desde 15 de julho de 2022.

iii) No Agravo de Instrumento nº 2265933-72.2018.8.26.0000, também de relatoria da Desembargadora Maria Olívia Alves, a 6ª Câmara de Direito Público do TJSP reafirmou o entendimento de que ilegalidade reconhecida em procedimento arbitral, consistente na abstenção de efetuar retenções de pagamentos em contrato administrativo não admite mais discussão, sendo o caso de execução imediata da obrigação de não fazer. Referida decisão transitou em julgado.

Portanto, em que pese o deferimento do pedido liminar no REsp nº 1.962.305/SP, para o fim de suspender a aplicação da multa cominatória e a exigência de imediato pagamento da quantia executada, estando esse recurso pendente de julgamento, a jurisprudência do TJSP tem, excepcionalmente, afastado a aplicação do regime precatorial nos casos de cumprimento de obrigação envolvendo a imediata liberação dos valores correspondentes à contraprestação dos serviços prestados e retenções tributárias indevidas, observando-se acórdãos no STJ e no STF que têm negado seguimento a REsp e RE interpostos em face dessas decisões, diante da ausência de requisitos constitucionais.

__________

1 A via própria para execução de sentença arbitral é a do cumprimento de sentença, tendo em vista tratar-se de título executivo judicial. Procedimento previsto pelos arts. 475-I e ss do CPC/73 e arts. 513 e ss do CPC/15”, TJRJ, 12ª CC, AI 0039871-42.2017.8.19.0000, j. 17.10.2017, unânime; TJSC, 1ª CC, AI 0031864-57.2016.8.24.0000, j.17.11.2016, unânime; TJGO, 2ª CC, AI 117975-95.2015.8.09.0000, j. 17.11.2015, unânime; TJGO, 6ª CC, Apel 150770-74.2010.8.09.0051, j. 26.03.2013, unânime; TJMG, 15ª CC, AI 10024111932539001, j. 20.09.2012, unânime.

2 Este artigo repete a previsão do art. 475-N, IV, do CPC de 1973.

3 Na vigência do CPC /1973, embora o cumprimento da sentença arbitral exija a citação do devedor, o rito a ser seguido é o do 475-J do CPC/73. Nulidade da citação realizada sob o rito do art. 652 do CPC/73, TJSP, 2ª Cam Res Dir Emp, AI 2015088-59.2014.8.26.0000, j. 05.05.2014, maioria. No mesmo sentido: TJSP, Agravo de Instrumento n. 2041638-28.2013.8.26.0000, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo, Rel. Des. Teixeira Leite, j. em 5 de dezembro 2013; e TJSP, Agravo de Instrumento n. 0135158-76.2013.8.26.0000, 1ª Câmara de Direito Privado, Rel Des. Christine Santini, j. em 17 de setembro de 2013.

4 Vide sobre o tema: SICA, Heitor Vitor Mendonça, Arbitragem e Fazenda Pública, disponível em: http://genjuridico.com.br/2016/03/24/arbitragem-e-fazenda-publica/, acesso em 31/01/2019; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Opinião 47. A Arbitragem e a Administração Pública. Disponível em http://www.leonardocarneirodacunha.com.br/opiniao/opiniao-47-a-arbitragem-e-a-administracao-publica-2/, acesso em 31/01/2019. Flávio Willeman defende que que, como regra geral, a sentença arbitral não poderá autorizar o pagamento imediato de valores sem a obediência ao procedimento do precatório, mas, excepcionalmente, a obrigação pecuniária prevista na sentença arbitral poderá ser satisfeita sem a expedição de precatório judicial, "desde que exista previsão legal e contratual neste sentido, estabelecendo, inclusive, que os valores serão suportados por fundos públicos ou privados criados para esta finalidade – tal qual acontece com as PPPs – e/ou com a destinação específica de bens que serão afetados a esta finalidade (garantia real)" WILLEMAN, Flávio de Araújo. ACORDOS ADMINISTRATIVOS, DECISÕES ARBITRAIS E PAGAMENTOS DE CONDENAÇÕES PECUNIÁRIAS POR PRECATÓRIOS JUDICIAIS. Disponível aqui, acesso em 31/01/2019. Igualmente vide: MAROLLA, Eugenia Cristina Cleto, A arbitragem e os contratos da administração pública, A arbitragem e os contratos da administração pública, 2015, Tese (Doutorado), PUC-SP, p. 119-125; e SUNDFELD, Carlos Ari, Guia jurídico das parcerias público-privadas in Parcerias público-privadas, São Paulo: Malheiros, 2007, p. 15-44. Sobre a necessidade de expedição de precatório vide: TONIN, Maurício Morais, Arbitragem, mediação e outros métodos de solução de conflitos envolvendo o poder público, São Paulo: Almedina, 2019, p. 327; MAIA, Alberto Jonathas, Fazenda Pública e arbitragem: do contrato ao processo, Salvador: Editora Juspodivm, 2020, p. 390; e ARMANI, Marcos Vinicius, A fazenda pública na arbitragem, São Paulo: Singular, 2019, p. 276.

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Colunistas

Marcelo Bonizzi é professor doutor de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da USP/Largo São Francisco. Autor de livros e artigos. Pós-doutor pela Faculdade de Direito de Lisboa. Procurador do Estado de São Paulo. Atua como árbitro (FIESP/CAMES E CAMESC).

Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira é procurador do Estado de São Paulo. Doutor e Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP. Professor do Programa de doutorado e mestrado em Direito da UNAERP. Professor convidado de cursos de pós-graduação. Membro de listas de árbitros de diversas Instituições Arbitrais. Foi membro da Comissão Especial de Arbitragem do Conselho Federal da OAB. Autor de livros jurídicos. Coordenador Acadêmico do site Canal Arbitragem.