A Emenda Constitucional n. 113, promulgada no fim de 2021, estabeleceu um o novo regime de pagamentos de precatórios. Esse regime1, aliás, presente desde a Constituição de 1934, foi objeto de valioso comentário do professor Pontes de Miranda, segundo o qual essa forma pagamentos de créditos devidos pela Fazenda Pública constitui "medida constitucional moralizadora, contra a advocacia administrativa, diante da necessidade de fazê-los na ordem de apresentação dos precatórios"2.
De acordo com Ministro Celso de Mello a exigência constitucional relativa à expedição de precatório tem como escopo i) assegurar a igualdade entre os credores e proclamar a inafastabilidade do dever estatal de solver os débitos judicialmente reconhecidos em decisão transitada em julgado, ii) evitar favorecimentos pessoais indevidos e iii) frustrar tratamentos discriminatórios, evitando injustas perseguições ou preterições motivadas por razões destituídas de legitimidade jurídica (ADI 2.356 e ADI 2.362).
Pois bem, uma questão que vem sendo abordada pela doutrina é a inclusão ou não dos créditos decorrentes de sentenças arbitrais ao regime constitucional dos precatórios. Ora, a norma constitucional estabelece que os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, estaduais, distrital e municipais deverão seguir tal regime de pagamento (art. 100). O termo 'sentença judiciária' adotado pelo constituinte não diz respeito apenas a numerários contidos em sentenças judiciais, mas também aqueles decorrente de títulos executivos judiciais3 e, como não poderia deixar de ser, das sentenças arbitrais condenatórias4.
O modelo de pagamento via precatório é prerrogativa das Fazendas Públicas e se funda na Constituição. O ambiente processual em que as prerrogativas da Fazenda Pública geralmente não tem aplicabilidade imediata é na arbitragem. Encerrada a fase arbitral, todos os atos executivos para reconhecimento do crédito e o seu respectivo pagamento deverão ocorrer no Poder Judiciário e sob o regime do estabelecido na Constituição (art. 100) e no Direito Processual Civil (art. 534, 535 e 910).
De todo modo, deve-se considerar que a existência dos precatórios se fundamenta na real necessidade de um mecanismo jurídico-constitucional que torne possível a previsão orçamentária de despesas públicas decorrentes de provimentos que estabelecem a obrigação de pagar quantia certa, seja de que natureza for. Essa questão, sem dúvida, gera desconforto por parte do vencedor-credor porque há certeza quanto ao valor, mas incerteza quanto ao momento do seu pagamento e mais ainda depois da EC 113/2021.
Concordamos que o Estado brasileiro precisa aperfeiçoar o seu sistema financeiro e, especificamente, o manejo do orçamento público. A verdade é que não há nenhum impedimento para previsão em lei orçamentária de reserva de recursos para pagamento de custas, despesa e possíveis condenações nas arbitragens. Tudo dependente de vontade político-governamental. De todo modo, e apesar de tudo, existem algumas alternativas para aqueles que pretendem evitar o desconforto e a morosidade decorrente da ordem cronológica estabelecida pelo caput do art. 100 da CF.
A primeira alternativa é a execução da sentença arbitral no exterior, utilizando-se da Convenção de Nova Iorque de 1958, ratificada pelo Brasil, pelo decreto 4.311/02, a qual estabelece que a sentença arbitral proferida no território brasileiro poderá ser executada em qualquer outro país que tenha aderido a tal convenção internacional. A pactuação da convenção arbitral impede a posterior invocação de imunidade de jurisdição, o Estado brasileiro não poderá fazer uso de tal expediente perante judiciário estrangeiro em que se pretenda executar a decisão arbitral. Com efeito, fazendo uso das regras internacionais e processuais relativas à arbitragem, é possível que se evite regime de precatório sem, contudo, violar qualquer tipo de regra constitucional, no caso de execução contra à Fazenda.
A segunda alternativa encontra-se na própria constituição: a negociação de créditos decorrente de precatórios conforme previsão do §13º do art. 100. Segundo o texto, o credor poderá ceder, total ou parcialmente, seus créditos em precatórios a terceiros, independentemente da concordância do devedor.
A cessão de crédito permite que o cedente adquira boa parte do valor de forma imediata, sem ter que aguardar a ordem cronológica estabelecida no art. 100. O cessionário adquire o crédito originário e só o receberá ao fim do processo. Trata-se de um verdadeiro investimento, já que, até a data do pagamento, incidem correções e juros sob valor do crédito adquirido. Acerca da questão Napoleão Casado explica que "o investidor permaneceria na propriedade dos créditos, mas com condição resolutiva”, com a conclusão dos trâmites, “a propriedade sobre os créditos pactuados se resolveria e recairia sobre o investidor, na qualidade de credor"5.
Existem diversas e respeitáveis empresas e fundos de investimento especializados na captação, gestão e disponibilização de recursos para aquisição de direitos creditórios que são ou serão objeto de litígio em processo arbitral e até aqueles que já estão definidos em sentença arbitral. É possível, então, a antecipação e monetização de recebíveis decorrente de sentença arbitral que condena a Fazenda Pública ao pagamento de quantia em dinheiro. As vantagens constadas nesse tipo de negócio são o recebimento do valor no ato cessão, a segurança jurídica e financeira do procedimento, o deságio compatível e a aquisição de capital para fluxo de caixa, investimento e quitação de despesas6.
Há aqui uma oportunidade interessante para construção de parcerias com financiadores, com os quais seriam compartilhados alguns riscos do litígio. Cria-se, conforme apontou Arnoldo Wald, "uma oportunidade para fazerem uma parceria com financiadores, aos quais são repassados determinados riscos do valor e do momento dos eventuais recebimentos, e dividindo-se o resultado que vier a ser obtido entre a parte e quem o financiou, na forma convencionada"7.
O legislador constitucional atento a esse movimento e, sobretudo à conjuntura econômico-financeira da Fazenda Pública, estabeleceu que o credor poderá ceder, total ou parcialmente, seus créditos em precatórios a terceiros, independentemente da concordância do devedor. Essa cessão de precatórios, contudo, apenas produzirá efeitos após comunicação, por meio de petição protocolizada, ao tribunal de origem e à entidade devedora (CF, art. 100, §14).
Como se nota, apesar do regime constituir um desconforto para aqueles que possuem valores a receber da Fazenda Pública existem soluções jurídica e economicamente viáveis. O que não se mostra adequado é uma interpretação literal ou restritiva do art. 100, caput da CF, a justificar o desvio de uma regra constitucionalmente estabelecida.
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1 Recomenda-se excelente obra sobre o assunto: MOREIRA, Egon Bockmann et al. Precatórios: o seu novo regime jurídico: a visão do direito financeiro, integrada ao direito tributário e ao direito econômico. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, Thomson Reuters Brasil, 2021.
2 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n. 1 de 1969. São Paulo: Ed. RT, 1970. v. 3. p. 646-647.
3 Vide súmula 279 do Superior Tribunal de Justiça
4 CUNHA, Leonardo Carneiro da. A fazenda pública em juízo. 19. ed Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 698.
5 CASADO, Napoleão. Arbitragem e acesso à justiça: o novo paradigma do thirty party founding. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 220.
6 BADARÓ, Gilberto. 5 motivos para você vender precatórios. Migalhas. Disponível aqui, acesso em 25 de maio de 2022.
7 WALD, Arnoldo. Alguns aspectos positivos e negativos do financiamento da arbitragem. Revista de Mediação e Arbitragem. n. 49, São Paulo: Revista dos Tribunais. 2016, p. 34 e ss.