Não há dúvidas de que a arbitragem atingiu um patamar de estabilidade como método de solução de conflitos no ambiente de negócios brasileiro. Do ponto de vista científico, também não se nega que a arbitragem seja matéria de estudo e venha obtendo sua autonomia em face do direito processual, embora, tenha com ele relação umbilical de cooperação.
Um destes pontos de contato é exatamente a definição de quem julga primeiro o caso, quem tem prioridade em um caso com cláusula compromissória. Via de regra, estão em jogo o princípio do favor arbitralis, prioridade da arbitragem na interpretação de cláusulas, autonomia da convenção de arbitragem em face do contrato que a contenha, e o princípio da competência-competência, o árbitro tem prioridade para dizer sobre a sua própria competência.1
Tradicionalmente o direito e o Judiciário brasileiro sempre foram bastante rígidos em não analisar a convenção de arbitragem do ponto de vista interpretativo, adotando a escola francesa do princípio da competência-competência. Houve julgados em que tentou-se aplicar a análise prima facie da convenção de arbitragem.2
Todos estes questionamentos passaram a ser feitos perante o STJ por conta do desenvolvimento da técnica do conflito de competência para este fim. Tratou-se de uma ideia prática, do foro, que acabou acolhida pelo STJ e vem sendo aplicada com fervor.3
Recentemente um novo capítulo desta relação arbitragem e Judiciário com a utilização do instrumento do conflito de competência foi inaugurado com o caso JBS na medida em que discute conflitos de competência entre painéis arbitrais instaurados sob as regras da Câmara de arbitragem do mercado – B3.4
Existem em curso procedimentos arbitrais separados envolvendo a responsabilização da própria companhia, algo que foi requerido por acionistas minoritários (inovação técnica já vista em outras demandas de minoritários com a companhia5) e outro procedimento, mais tradicional do ponto de vista doutrinário, que foi requerido pela própria companhia. Este paralelismo levou a própria Companhia a requerer o conflito de competência que deu origem à decisão do ministro Marco Aurélio Belizze.
Embora seja uma decisão monocrática, que ainda se sujeitará a reanalise da turma julgadora no STJ, não deixa de representar uma interessante inovação sobre a forma com a qual o STJ vem lidando com a questão desde o Caso Petrobrás.6
Parece-nos, assim, que há uma amenização do efeito negativo da convenção de arbitragem, isto é, o Judiciário poderia sim avançar sobre a análise e a interpretação da convenção de arbitragem, mas, além disso, o próprio princípio do favor arbitralis seria amenizado com a possibilidade do Judiciário e não da câmara de arbitragem, via seu regulamento, solucionar questões envolvendo painéis sob as suas regras.
É uma tendência que se observa também nos Estados Unidos da América conforme o professor George Bermann indica:
“Worse yet, in order to be clear and unmistakable, a delegation should appear on the face of an arbitration agreement , not be relegated to a set of procedural rules merely referenced in that agreement and almost certainly not read when the agreement is made”.7
Como se vê, novos vieses de contato entre arbitragem e o Judiciário ainda estão sendo explorados, bem como o ajuste de princípios fundamentais, como o da competência-competência, tornam-se fundamentais para dosar a extensão destes pontos de contato entre a arbitragem e o Judiciário.
É preciso levar em consideração, no entanto, que esta decisão elenca alguns problemas muito relevantes, que não existiram na – já tradicional - hipótese de conflito entre a jurisdição estatal e a arbitral, mas que poderão surgir no contexto de um conflito de competência entre duas câmaras arbitrais, conforme segue:
a) o primeiro deles diz respeito à flexibilização do efeito negativo da convenção de arbitragem, ou seja, permitir que o Poder Judiciário resolva questões que, em princípio, seriam de competência apenas dos árbitros;
b) o acolhimento do chamado “conflito positivo de competência” proposto pela própria JBS provocaria o deslocamento de um dos procedimentos arbitrais para a competência de um painel arbitral constituído por outros árbitros, sob outras regras. Nesse ponto, a autonomia de vontade das partes restaria invadida de forma muito intensa, talvez até mesmo a ponto de comprometer o interesse dessas pessoas em prosseguir com a arbitragem;
c) a composição do painel arbitral de um dos procedimentos, ou de ambos, teria de ser revista, porque não seria admissível a simples unificação dos painéis, seja porque constituiriam um número par de julgadores, seja por que as partes que escolheram um dos painéis podem não querer nenhuma alteração no painel original de árbitros;
d) os custos da arbitragem precisariam ser redimensionados, sob todos os aspectos.
Esses problemas, dentre outros, terão de ser decididos no julgamento definitivo desse interessantíssimo leading case, ou seja, o STJ tem um grande desafio pela frente.
_____
1 Os dois últimos princípios, autonomia da cláusula compromissória e da competência-competência decorrem expressamente do art. 8º da Lei de Arbitragem. O favor arbitralis é uma decorrência destes dois outros princípios.
2 Guerrero, Luis Fernando, Princípio da Arbitragem não são Entendidos por Completo aqui.
3 Guerrero, L. F. Árbitros, juízes e conflitos de competência in Motta Pinto, A. L. B. da e Skitnevsky, K. H. (coords.), Arbitragem Nacional e Internacional – Os Novos Debates e a visão dos jovens arbitralistas, Rio de Janeiro, Elsevier, 2012.
4 STJ, CC 185.702-SP, Decisão Monocrática Rel. Min. Marco Aurélio Belizze, j. em 17/3/22.
5 Disponívelm aqui e aqui, 6 STJ, CC 151.130-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. em 27/11/19.
7 Bermann, George A. After First Options: Delegation Run Amok, 32 Am. Rev. Int'l Arb. 15 (2021). Disponível aqui.