Decisão monocrática do Ministro Marco Aurélio Bellizze, no CC nº 185.702/DF, publicada em 17/03/2022, merece uma coluna especial, já que a questão é inédita, conforme reconhecido pela própria decisão1, admitindo o processamento de Conflito de Competência entre dois Tribunais Arbitrais dentro de uma mesma Câmara de Arbitragem:
"Na específica hipótese em que o correlato Regulamento é absolutamente omisso em disciplinar a solução para o impasse criado entre os Tribunais arbitrais que proferiram, em tese, decisões inconciliáveis entre si, em procedimentos arbitrais que possuem pedidos e causa de pedir parcialmente idênticos (controvertendo-se as partes sobre a amplitude de cada qual, se haveria litispendência - parcial - entre os feitos ou mesmo relação de continência), tendo a Presidência da Câmara reconhecido, inclusive, não ter atribuição para dirimi-lo, segundo as disposições do Regulamento.
A questão posta guarda contornos absolutamente inéditos na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (sobretudo após o leading case CC 111.230/DF, julgado em 8.5.2013), cabendo ao relator do presente incidente, que atua em delegação do colegiado da Segunda Seção, a quem compete dar a palavra final sobre o conhecimento e, em sendo o caso, o julgamento do conflito de competência, permitir o processamento do feito e, por meio da adoção de medidas acautelatórias, salvaguardar tal deliberação"2.
Feito uma breve síntese do caso, resta lembrar que cabe ao Superior Tribunal de Justiça3 julgar o conflito de competência entre o Judiciário e o árbitro4, diante da interpretação extensiva do termo “Tribunais” do artigo 105, I, “d”, da Constituição Federal. Entretanto, o conflito de competência entre instituições arbitrais diversas não é competência do Superior Tribunal de Justiça, mas do juízo de primeiro grau5, situação diversa do caso em comento, já que envolve dois Tribunais diferentes dentro da mesma instituição arbitral.
Além do ineditismo do tema, a decisão em comento6 reafirma a natureza jurisdicional da arbitragem, corrente predominante na doutrina7 e jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça8 e de Tribunais Estaduais9, já que o artigo 18 da Lei em estudo prevê que o árbitro é juiz de fato e de direito, demonstrando, de forma clara, que o árbitro exerce a jurisdição. Ademais, a sentença arbitral produz os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário (artigo 31, da Lei da Arbitragem), configura título executivo judicial (artigo 515, VII do Código de Processo Civil de 2015 e artigo 31, da Lei da Arbitragem), sujeito a impugnação ao cumprimento de sentença, nos termos do artigo 525 e seguintes do Código de Processo Civil de 2015, conforme prevê o artigo 33, §3º da Lei de Arbitragem. Não se pode olvidar que o Código de Processo Civil de 2015 equiparou a carta arbitral à carta precatória expedida por (artigos 237, IV, 260 e 267), corroborando a natureza jurisdicional da arbitragem, defendida por Carnelutti10.
Importante citar que a decisão em comento afastou a apreciação da questão do conflito de competência pelo juiz de primeira instância, uma vez que inexistente atribuição legal ou constitucional a esse propósito, reafirmando a inexistência de hierarquia e/ou de vinculação entre jurisdição estatal e a arbitral. Em poucas palavras, consta da decisão que não há subordinação ou vinculação entre Tribunal arbitral e Judiciário (de primeira e segunda Instância), já que o ordenamento jurídico somente consagra a possibilidade de ação anulatória, restrita às hipóteses do artigo 32 da Lei de Arbitragem ou à execução da sentença arbitral, possibilitando a impugnação ao cumprimento de sentença arbitral, tal como a judicial.
Acrescenta o Ministro Belizze a particularidade do caso concreto de que os Tribunais arbitrais suscitados são vinculados à mesma Câmara de Arbitragem, cujo regulamento é “omisso em disciplinar a solução para o impasse criado entre os Tribunais arbitrais que teriam proferido, em tese, decisões inconciliáveis entre si, em procedimentos arbitrais que possuem pedidos e causa de pedir parcialmente idênticos, tendo a Presidência da Câmara reconhecido, justamente, não ter atribuição para dirimi-lo, segundo as disposições do Regulamento”.
Como bem ressaltado, na decisão, o regulamento de arbitragem nem sempre é capaz de antever todas as situações práticas que mereçam um regramento específico, prevenindo impasses, motivo pelo qual admitiu o conflito de competência, determinando a suspensão cautelar dos Procedimentos Arbitrais, até o julgamento final do incidente pelo Colegiado.
Outro ponto interessante abordado na decisão em tela consiste no fato de que a reunião entre feitos ensejaria a "a descabida imposição de submeter uma das partes ao julgamento de um Tribunal arbitral cuja composição não foi por ela escolhido, em clara afronta aos arts. 13 e 19 da lei 9.307/1996".
Esta circunstância haverá de ser sopesada, necessariamente, por ocasião do julgamento final do presente conflito de competência".
Não podemos deixar de elogiar a riqueza da fundamentação da citada decisão, prestigiando, mais uma vez, a arbitragem11, impondo-se concluir que é importante a reflexão da comunidade arbitral no sentido da revisão dos regulamentos das instituições arbitrais, com a previsão de competência de órgão interno (Conselho Deliberativo ou Presidência) ou comitê constituído para decisão acerca destes conflitos, proporcionando rápida solução da questão, evitando-se a propositura de conflito de competência perante o Superior Tribunal de Justiça.
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1 Esta decisão consta do site oficial do Superior Tribunal de Justiça, sem restrição para acesso, motivo pelo qual divulgamos neste curto artigo.
2 Cf. trecho da decisão em comento.
3 ROCHA, Caio Cesar Vieira. Conflito positivo de competência entre árbitro e magistrado. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo, ano 09, v. 34, p. 263-286, jul./set. 2012.
4 STJ, CC 111.230/DF, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 08/05/2013, DJe 03/04/2014; STJ, 2ª Seção, CC 146939, j. 23.11.2016, unânime; e STJ, CC 151.130, j. 09.03.2017, monocrática (decisão reconsiderada pela PET no CC 151.130).
5 STJ, 2ª Seç., CC 113260, j. 08.09.2010, maioria.
6 Consta da decisão “Em delimitação a esta atribuição constitucional do Superior Tribunal de Justiça, a jurisprudência da Segunda Seção, tomando como premissa a compreensão de que a atividade desenvolvida no âmbito da arbitragem possui natureza jurisdicional, reconhece a competência desta Corte de Justiça para dirimir conflito de competência em que figura, seja como suscitante, seja como suscitado, o Tribunal arbitral. É de suma importância registrar que, não obstante a aceitação prevalecente no cenário jurídico nacional do caráter jurisdicional da arbitragem, sobretudo após a declaração de constitucionalidade da Lei 9.307/1996 pelo Supremo Tribunal Federal por ocasião do julgamento da SE 5.206 (STF. SE 5206 AgR, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, julgado em 12/12/2001, DJ 30-04-2004 PP-00059 EMENT VOL-02149-06 PP-00958), dúvidas remanesciam, sobretudo no âmbito desta Corte de Justiça, se a equiparação do árbitro ao "juiz de fato e de direito" (Lei 9.307/96, art. 18) o colocaria na condição de órgão passível de protagonizar conflito de competência nos moldes definidos no art. 66 do CPC e 105, I, d, da CF, dispositivo este inserido no capítulo da Constituição estruturante do Poder Judiciário. A partir do julgamento do leading case, o Conflito de Competência n. 111.230/DF (Rel. Ministra Nancy Andrighi, julgado em 08/05/2013, DJe 03/04/2014), é possível afirmar que a Segunda Seção do STJ estabeleceu o caráter jurisdicional da arbitragem, reconhecendo ser possível a existência de conflito de competência entre juízo estatal e câmara arbitral, a ser dirimido por esta Corte de Justiça. Esta conclusão decorre do reconhecimento de que o Tribunal arbitral, a despeito de não compor organicamente o Poder Judiciário, deve ser compreendido na expressão "quaisquer tribunais" a que a norma constitucional em questão (art. 105, I, d, CF) se refere, sobretudo, porque, tal como o Judiciário, resolve o conflito de interesses em definitivo, com aplicação da ordem jurídica. Este julgado representou verdadeiro divisor de águas na jurisprudência desta Corte de Justiça, passando-se a admitir, doravante, o processamento, no âmbito desta instância especial, dos conflitos de competência protagonizados por Tribunal arbitral em confronto, naquele caso, com órgãos integrantes organicamente do Poder Judiciário”.
7 CARMONA, Carlos Alberto, Arbitragem e processo: um comentário à Lei n. 9.307/96, 3. ed., São Paulo: Atlas, 2009, p. 268-269; BATISTA MARTINS, Pedro. Apontamentos sobre a Lei de Arbitragem. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 218-219; THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil, 34ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 2005, V III, p. 330. CAHALI, Francisco José. Curso de Arbitragem. 6ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 133. FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Arbitragem, jurisdição e execução. 2. ed. São Paulo: RT, 1999. p. 157. ARRUDA ALVIM, José Manoel de. Sobre a natureza jurisdicional da arbitragem. In: CAHALI, Francisco José; RODOVALHO, Thiago; FREIRE, Alexandre (Coord.). Arbitragem. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 142. DINAMARCO, Cândido Rangel. Arbitragem na teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 41. SESTER, Peter Christian, Comentários à Lei de Arbitragem e à Legislação Extravagante, São Paulo, Quartier Latin, 2020.
8 Trata-se da posição adotada pelo Superior Tribunal de Justiça, STJ, 2.ª Seção, CC n.º 113.260/SP, Min. João Otávio de Noronha, j. 08.09.2010, DJ 07.04.2011. No mesmo sentido vide: “PROCESSO CIVIL. ARBITRAGEM. NATUREZA JURISDICIONAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA FRENTE A JUÍZO ESTATAL. POSSIBILIDADE. MEDIDA CAUTELAR DE ARROLAMENTO. COMPETÊNCIA. JUÍZO ARBITRAL. 1. A atividade desenvolvida no âmbito da arbitragem tem natureza jurisdicional, sendo possível a existência de conflito de competência entre juízo estatal e câmara arbitral. 2. O direito processual deve, na máxima medida possível, estar a serviço do direito material, como um instrumento para a realização daquele. Não se pode, assim, interpretar uma regra processual de modo a gerar uma situação de impasse, subtraindo da parte meios de se insurgir contra uma situação que repute injusta. 3. A medida cautelar de arrolamento possui, entre os seus requisitos, a demonstração do direito aos bens e dos fatos em que se funda o receio de extravio ou de dissipação destes, os quais não demandam cognição apenas sobre o risco de redução patrimonial do devedor, mas também um juízo de valor ligado ao mérito da controvérsia principal, circunstância que, aliada ao fortalecimento da arbitragem que vem sendo levado a efeito desde a promulgação da Lei nº 9.307/96, exige que se preserve a autoridade do árbitro como juiz de fato e de direito, evitando-se, ainda, a prolação de decisões conflitantes. 4. Conflito conhecido para declarar a competência do Tribuna Arbitral”, (STJ - CC: 111230 DF 2010/0058736-6, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 08/05/2013, S2 - SEGUNDA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 03/04/2014). Recentemente, reiterou o STJ este entendimento: “AGRAVO INTERNO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO INTERNO NO CONFLITO DE COMPETÊNCIA. INCIDENTE MANEJADO SOB A ÉGIDE DO NCPC. JUÍZO ARBITRAL E JUÍZO ESTATAL. ARBITRAGEM. NATUREZA JURISDICIONAL. MEIOS ALTERNATIVOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITO. DEVER DO ESTADO. PRINCÍPIO DA COMPETÊNCIA-COMPETÊNCIA. PRECEDÊNCIA DO JUÍZO ARBITRAL EM RELAÇÃO À JURISDIÇÃO ESTATAL. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO. 1. Segundo a regra da Kompetenz-Kompetenz, o próprio árbitro é quem decide, com prioridade ao juiz togado, a respeito de sua competência para avaliar a existência, validade ou eficácia do contrato que contém a cláusula compromissória, nos termos dos arts. 8º, parágrafo único, e 20 da Lei nº 9.307/1996. 2. O caráter jurisdicional da arbitragem, decorrente da regra Kompetenz-Kompetenz, prevista no artigo 8º da lei de regência, impede a busca da jurisdição estatal quando já iniciado o procedimento arbitral, operando-se o efeito negativo da arbitragem previsto no art. 485, VII, do NCPC. 3. Na hipótese dos autos as informações prestadas pelo Juízo Arbitral dão conta de que, além de se pronunciar sobre a sua própria competência com a efetiva verificação da cláusula compromissória existente no contrato celebrado entre as partes, foi comprovada a alteração de sua denominação social com a juntada do documento respectivo. 4. Agravo interno não provido” (STJ - AgInt nos EDcl no AgInt no CC: 170233 SP 2019/0386014-7, Relator: Ministro MOURA RIBEIRO, Data de Julgamento: 14/10/2020, S2 - SEGUNDA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 19/10/2020). O Tribunal Constitucional de Portugal adota a tese da natureza jurisdicional da arbitragem, vide Acórdãos nºs 230/86, 52/92, 506/96, 181/2007, 42/2014.
9 TJ-GO - APL: 00082351920178090006, Relator: ORLOFF NEVES ROCHA, Data de Julgamento: 02/05/2018, 1ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ de 02/05/2018; TJ-ES - APL: 00130471420168080024, Relator: ÁLVARO MANOEL ROSINDO BOURGUIGNON, Data de Julgamento: 02/10/2018, SEGUNDA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 06/12/2018; TJ-MG - AC: 10223150104873001 Divinópolis, Relator: Arnaldo Maciel, Data de Julgamento: 12/09/2017, Câmaras Cíveis / 18ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 15/09/2017.
10 Instituciones del Proceso Civil, tradução da quinta edição italiana por Santiago Sentis Melendo, Buenos Aires, Ed. Jurídicas Europa-America, 1989, v. I, p. 109-114.
11 Sobre o prestígio da jurisdição arbitral pelo Superior Tribunal de Justiça vide aqui.