Muito já se falou da importância do Dispute Board como meio adequado de solução de controvérsias sobretudo em contratos de obras, de trato sucessivo e de longa adequação. A matéria ganha ainda mais relevo quando o assunto envolve a Administração Pública, com sua obras vultosas e porque não dizer vultuosas, ainda mais quando os conflitos decorrem de problemas técnicos e que poderiam ser resolvidos rapidamente, quando apresenta-se um instrumento de solução do conflito mais adequado.
Neste cenário o dispute board, caracterizado pela formação de um painel por peritos (geralmente de engenharia no caso de execução de obras), que durante o curso do contrato são acionados de maneira a solucionar conflitos que surgem na execução. Via de regra, a formação do painel ou comitê é prevista em cláusula contratual específica, que prevê a forma de indicação (em geral cada parte indica um especialista e ambos indicam um terceiro), e que tem a função de supervisionar, prevenir, e resolver conflitos durante a execução do contrato, evitando assim o início de uma arbitragem ou disputa judicial. A grande questão do dispute board é que, embora de uso comum, não tem o caráter jurisdicional da arbitragem, ou seja, não são institutos equivalentes, o que pode levar as partes a questionar judicialmente ou na via arbitral a decisão do comitê.
A necessidade da aprovação de uma legislação específica sobre o tema, trará garantias ao instituto, e se mostra a cada dia mais necessária sua aprovação. Especificamente sobre o tema o PLS 206/18 de origem no Senado e já aprovado nesta casa iniciadora (tramitando sob o número 2.421/21 na Câmara), e o PL 9.883/18 cuja a origem é da Câmara, tratam da dispute board e alguns pontos merecem ser abordados. Embora apresentando pequenas diferenças, no mérito em muito se aproximam.
Em síntese o PLS 206/18 do Senado, tendo por base a legislação do Município de São Paulo tem como preocupação a previsão da cláusula de dispute board inserida no instrumento convocatório da licitação e no contrato administrativo, para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis em contratos da administração direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, A cláusula pode ainda ser inserida mediante acordo entre as partes por aditamento.
Por sua vez o Comitê de Prevenção e Solução de Disputas pode ter natureza revisora, adjudicativa ou híbrida, a depender dos poderes que lhe forem outorgados pelo contrato celebrado, devendo sempre apresentar os fundamentos das suas recomendações e decisões, sob pena de nulidade: I – ao Comitê por Revisão é conferido o poder de emitir recomendações não vinculantes às partes em litígio; II – ao Comitê por Adjudicação é conferido o poder de emitir decisões vinculantes às partes em litígio; e III – o Comitê Híbrido poderá tanto recomendar quanto decidir sobre os conflitos, cabendo à parte requerente estabelecer a sua competência revisora ou adjudicativa. Deverão ainda ser respeitados os princípios da legalidade e da publicidade por parte do Comitê.1
Quanto a formação do Comitê, na proposta do Senado temos a previsão de 3 (três) membros, sendo 2 (dois) com reconhecido saber na área objeto do contrato e 1 (um) advogado com reconhecida atuação jurídica na área objeto do contrato: I – 1 (um) escolhido pelo Poder Público; II – 1 (um) escolhido pela contratada; III – 1 (um) escolhido em conjunto pelos outros 2 (dois) membros, o qual será o Presidente do Comitê.2
Pois bem, a grande novidade das duas propostas legislativas do instituto da Dispute Board envolvendo o Poder Público diz respeito ao aumento das garantias quanto a validade e eficácia da decisão proferida pelo comitê .
Nesse sentido o PL 206 do Senado prevê que recomendações do Comitê poderão ser objeto de compromisso, nos termos do art. 26 do decreto-lei 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro). Assim, lembrando que o art 26 da LINDB traz a chamada cláusula geral de acordo administrativo, para fins de resolução de controvérsia, temos que a decisão proferida pelo comitê passa a ser objeto de acordo administrativo, podendo o poder público celebrar compromisso com os interessados e dessa maneira liminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público. Se necessário fara a oitiva de órgãos interessados ou mesmo se valer de consultas públicas.
E no parágrafo segundo do art. 2temos a garantia que as recomendações e as decisões proferidas pelos Comitês de Prevenção e Solução de Disputas poderão ser reformadas pelo Poder Judiciário ou, quando houver convenção neste sentido, por arbitragem.3
Por tudo isso, embora não exista um verdadeiro opt out em relação ao jurisdição estatal, ambas propostas legislativas visam dar uma maior garantia quanto a qualidade da decisão proferida pelo Comitê, seja pela forma de escolha de seus membros, seja, pela previsão do escalonamento do conflito, onde uma vez delimitado e não satisfazendo umas das partes possa ser discutido tanto pela arbitragem, tanto pelo judiciário que já tem se mostrado favorável a manter as decisões eminentemente técnicas proferidas por comitês de resolução de conflitos.4
1 PL 9883/2018 da Câmara prevê: Art. 8º Os Comitês poderão ter natureza revisora, adjudicatória ou híbrida, a depender dos poderes que lhes forem outorgados no contrato administrativo: I – os Comitês de Revisão (Dispute Review Boards) emitem recomendações, não vinculantes às partes em litígio; II – os Comitês de Adjudicação (Dispute Adjudication Boards) emitem decisões, de adoção obrigatória e imediata pelas partes em litígio; 3 III – os Comitês Híbridos (Combined Dispute Boards) emitem recomendações e decisões, a depender da forma como o litígio lhe for submetido pelas partes contratantes
2 Por sua vez no projeto da Câmara PL 9883/2018 temos diferenças de composição : Art. 3º Os Comitês serão compostos por três membros, sendo dois com conhecimento técnico sobre o objeto do contrato, para exercer a função de Membro Técnico, e um com formação jurídica, para atuar na função de Presidente do Comitê. § 1º Os membros do Comitê deverão ser pessoas de confiança das partes, escolhidas consensualmente e na forma prevista no contrato, e deverão agir, no desempenho de suas funções, com independência, imparcialidade, competência e diligência. § 2º Excepcionalmente, quando a complexidade do contrato assim o exigir, os Comitês poderão ter em sua composição um número maior de membros técnicos
3 O PL 9883/2018 da Câmara prevê: Art. 9º As partes contratantes têm o prazo de 30 (trinta) dias para manifestar discordância da recomendação emitida pelo Comitê, hipótese em que a questão pode ser levada à arbitragem ou ao Poder Judiciário, tornando-se obrigatório o cumprimento da recomendação apenas depois de confirmada por sentença arbitral ou judicial. Parágrafo único. Decorrido o prazo do caput sem qualquer manifestação das partes contratantes, a recomendação passa a vinculá-las de imediato. Art. 10. As decisões emitidas pelos Comitês poderão ser submetidas à arbitragem ou ao Poder Judiciário em caso de inconformismo de qualquer das partes contratantes, respeitados os prazos prescricionais e decadenciais previstos em lei. § 1º As partes só ficam desobrigadas do cumprimento das decisões emitidas pelos Comitês a partir de sentença arbitral ou judicial que assim o determine.
4 Nesse sentido, comentam Flávia Câmara e Castro e Leonardo Guimarães, demonstrando um pouco da experiência do Metrô de São Paulo: “Apesar de já estar disseminada em países como os Estados Unidos, a aplicação desse método é bastante recente no Brasil. Não há lei federal que o regule, apesar de já existir um PL em trâmite no Senado. Em âmbito de legislação municipal, apenas a Prefeitura de São Paulo já fomentou e regularizou a utilização dos ‘Comitês de Prevenção e Resolução de Disputas’. Além disso, há algumas regulações acerca do método previstas em câmaras privadas de arbitragem e mediação. Os dispute boards foram inseridos no âmbito brasileiro, em grande parte, como consequência de imposições do Banco Interamericano de Desenvolvimento e do Banco Mundial, que exigem essa prerrogativa para financiamentos de obras de infraestrutura. Recentemente, o metrô de São Paulo foi condenado pelo TJ/SP a pagar quantia extra, equivalente a R$10 milhões, ao consórcio formado pelas construtoras Tiisa e Comsa, que realizou as obras da Linha Amarela. Tal dívida deve como pano de fundo uma divergência entre as partes acerca dos custos de retirada de material contaminado da construção. Na ocasião, um dispute board, previsto no contrato de construção e formado por três técnicos – dois engenheiros e um advogado –, foi acionado. Quando acionada, essa equipe, contratada pelas partes para solucionar os conflitos surgidos durante a execução do contrato, havia decidido pelo pagamento do valor acima mencionado. Quando o Tribunal de Justiça foi demandado, optou por manter a decisão do dispute board. Dessa forma, o TJ/SP reforçou a autonomia e o poder decisório desse método extrajudicial, contribuindo para sua eficácia. O entendimento do Tribunal revela uma tendência nacional de valorização dos métodos alternativos ou, como também chamados, adequados de solução de conflitos, deixando a resolução judicial como a última alternativa.” (CÂMARA, Flávia; GUIMARÃES, Leonardo. Dispute board: o método de solução de conflitos que vem ganhando espaço no Brasil. Migalhas, de 24 ago. 2018. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI286212,21048-Dispute+board+o+metodo+de+solucao+de+conflitos+que+vem+ganhando. Acesso em: 30 nov. 2019).