Em coluna anterior mencionamos que a jurisdição arbitral é prestigiada pela interpretação do Superior Tribunal de Justiça, tanto que Ministros da Corte da Cidadania destacam o crescente papel da arbitragem como mecanismo de solução de conflitos1. O julgado, ora em comento, reafirma tal premissa.
O objeto deste breve artigo é tecer algumas considerações sobre o recente julgado do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial 1.953.212/RJ, de 26/10/21, que concluiu na linha da jurisprudência anterior do mesmo Tribunal:
“As ações movidas em face de empresas em recuperação judicial que demandam quantias ilíquidas devem tramitar regularmente onde foram propostas, inclusive aquelas submetidas a juízo arbitral, até a apuração do montante devido.
5. A natureza do crédito (concursal ou extraconcursal) não é critério definidor da competência para julgamento de ações (etapa cognitiva) propostas em face de empresa em recuperação judicial, mas sim as regras ordinárias dispostas na legislação processual.
6. O que constitui competência exclusiva do juízo universal, segundo a jurisprudência deste Tribunal, é a prática ou o controle de atos de execução de créditos individuais promovidos contra empresas falidas ou em recuperação judicial.
7. Segundo a regra da kompetenz-kompetenz, incumbe aos próprios árbitros decidir a respeito de sua competência para avaliar a existência, validade ou eficácia do contrato que contém a cláusula compromissória.
8. O deferimento do pedido de recuperação judicial não tem o condão de transmudar a natureza de direito patrimonial disponível do crédito que a recorrida procura ver reconhecido e quantificado no procedimento arbitral.
9. Reconhecida a competência do tribunal arbitral para processamento e julgamento da demanda perante ele proposta - que se limita à apuração dos créditos inadimplidos no âmbito do contrato de prestação de serviços celebrado entre as partes -, não há falar em nulidade da sentença parcial por ele proferida, revelando-se escorreita a conclusão do acórdão recorrido”.
Convém lembrar que há regra disposta no artigo 6º, § 9º, da lei 11.101/05 (com redação dada pela lei 14.112/20), consagrando que o processamento da recuperação judicial ou a decretação da falência não autoriza o administrador judicial a recusar a eficácia da convenção de arbitragem, não impedindo ou suspendendo a instauração de procedimento arbitral. Em poucas palavras, não pode o administrador judicial recusar a eficácia da cláusula compromissória, uma vez que esta possui autonomia em relação ao contrato, conforme decidiu o Superior Tribunal de Justiça2.
No mesmo diapasão o enunciado 75 da II Jornada de Direito Comercial3 dispõe que na hipótese de existência de convenção de arbitragem, havendo a decretação da falência, não se suspende eventual procedimento arbitral já em curso, bem como pode ser iniciado novo procedimento arbitral.
Portanto, é possível concluir que é cabível a arbitragem no âmbito do direito falimentar, contanto que a convenção arbitral seja anterior à decretação da quebra, e tratando-se de quantia líquida, observe-se o disposto no artigo 6º, § 1º, da Lei de Falências4, impondo-se a partir da decretação da quebra a intimação do administrador judicial para representar a massa falida, sob pena de nulidade5. Nessa linha há diversos julgados do Tribunal de Justiça de São Paulo6. Registre-se, no entanto, que há precedente do mesmo Tribunal negando a possibilidade de arbitragem prevista em cláusula anterior à quebra, porém instalada posteriormente à decretação7.
No mesmo sentido, no que se refere à recuperação judicial, é possível a aplicação do procedimento arbitral8, com a aplicação do artigo 6º, caput e § 4º, da lei 11.101/05 (com redação dada pela lei 14.112/20), que suspende, pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias, todas as ações e execuções em face do devedor9. Ocorre que o Enunciado 6 da I Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios estabelece que “o processamento da recuperação judicial ou a decretação da falência não autoriza o administrador judicial a recusar a eficácia da convenção de arbitragem, não impede a instauração do procedimento arbitral, nem o suspende”10.
Ainda acerca da competência segundo o Superior Tribunal de Justiça, “cabe ao juízo em que se processa a recuperação judicial fiscalizar o destino dos bens da recuperanda, que devem seguir o que determinado no plano de recuperação aprovado pelos credores”11, já que o caso versava sobre cautelar do Poder Judiciário referendada pelo Tribunal Arbitral (artigo 22-B da Lei de Arbitragem), inclusive com reforço do bloqueio de contas da recuperanda, que fazia parte de Consórcio que era parte na arbitragem.
Portanto, o deferimento da recuperação judicial não tem o condão de afastar a arbitrabilidade do litígio, cabendo aos árbitros a decisão acerca da própria competência. Apenas constitui competência exclusiva do juízo universal a prática ou o controle de atos de execução de créditos individuais promovidos contra empresas falidas ou em recuperação judicial.
Por fim, esta é nossa última coluna do ano de 2021, entraremos em recesso até fevereiro, desejando um excelente Natal e próspero ano de 2022 para todos nossos leitores.
*Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira é procurador do Estado de São Paulo. Doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC/SP. Professor do Programa de doutorado e mestrado em Direito da UNAERP. Professor convidado de cursos de pós-graduação (PUC-COGEAE, Faculdade Baiana de Direito, IDP-SP, Escola Paulista da Magistratura, EDAMP-MS, ESPGE-SP e USP-FDRP). Membro de listas de árbitros de diversas Instituições Arbitrais. Membro da Comissão Especial de Arbitragem do Conselho Federal da OAB.
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1 Conforme notícia intitulada “A jurisdição arbitral prestigiada pela interpretação do STJ”, extraída do site do Superior Tribunal de Justiça, disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/A-jurisdicao-arbitral-prestigiada-pela-interpretacao-do-STJ.aspx , acesso em 08/06/2021.
2 “Efeitos da falência superveniente de contratante de cláusula compromissória. Manutenção de eficácia da convenção arbitral”, STJ, 3ª T., REsp 1355831, j. 19.03.2013, unânime. Igualmente vide: TJ-SP, 11ª Cam Dir Priv, Apel 0144646-17.2011.8.26.0100, j. 27.08.2015, unânime; TJ-SP, 35ª Cam Dir Priv, APL. 1766160620098260100, j. 26.03.2012, unânime; TJ-SP, 4ª Cam Dir Priv, ED 6442044401, j. 10.12.2009, unânime; TJSP, Cam Res Fal e Rec, AI 5310204300, j. 25.06.2008, unânime.
3 “Havendo convenção de arbitragem, caso uma das partes tenha a falência decretada: (i) eventual procedimento arbitral já em curso não se suspende e novo procedimento arbitral pode ser iniciado, aplicando-se, em ambos os casos, a regra do art. 6º, § 1º, da Lei n. 11.101/2005; e (ii) o administrador judicial não pode recusar a eficácia da cláusula compromissória, dada a autonomia desta em relação ao contrato. Justificativa: Nos termos do art. 6º, § 1º, da Lei n. 11.101/20058, as ações que demandam quantia ilíquida não se suspendem em razão da decretação da falência nem são atraídas para o juízo universal falimentar, continuando a tramitar normalmente no juízo competente até a eventual definição de crédito líquido, o qual será incluído no quadro geral de credores, na classe correspondente. Da mesma forma, ações que demandam quantia ilíquida podem ser ajuizadas normalmente após a decretação da quebra, aplicando-se a mesma regra. O art. 117 da Lei n. 11.101/2005 permite que o administrador judicial decida se cumpre ou não os contratos bilaterais do falido que ainda estiverem em curso, observado o princípio da maximização do ativo do devedor e ouvido o comitê de credores. Ocorre que a cláusula compromissória é autônoma em relação ao contrato no qual está prevista, sendo um ato jurídico perfeito e acabado, de modo que a regra em questão não se aplica a ela. Assim, o administrador judicial não pode recusar cumprimento a ela nem precisa de autorização do comitê (ou do juiz) para dar início a procedimento arbitral dela decorrente.” Enunciado 75 da II Jornada de Direito Comercial. Disponível aqui. Acesso em: 30 de dezembro de 2017.
4 CAHALI, Francisco José. Curso de Arbitragem. 6ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 422.
5 Nos termos do artigo 76, parágrafo único da Lei 11.101/2005.
6 Ementa “Agravo de Instrumento. Falência. Impugnação judicial objetivando habilitação de crédito fundamentado em sentença arbitral. Cláusula com promissória pactuada em contrato de construção de edifício firmado entre as partes. Inadimplemento contratual gerador de resolução do contrato e formulação de demanda perante a Câmara de Arbitragem. Posterior decretação da falência da demandada. Intervenção do Administrador Judicial da Massa Falida no procedimento arbitral, com alegação de incompetência do Juízo Arbitral, em face da falta de capacidade processual da falida e indisponibilidade dos bens da devedora, com base no artigo 25, da Lei nº 9.307/96, sustentando dever a demanda ser atraída para o Juízo Universal da Falência. Prosseguimento da demanda arbitral com condenação da devedora na indenização fixada pela Câmara de Arbitragem. Aplicabilidade do artigo 6o, § 1o, da Lei nº 11.101/2005, eis que, versando a demanda sobre quantia ilíquida, o processo não é suspenso em virtude da falência da devedora, inexistindo a”vis attractiva”do art. 76,”caput”, devendo o procedimento arbitral prosseguir com o administrador judicial que representará a massa falida, sob pena de nulidade. Inaplicabilidade do artigo 117 à convenção de arbitragem. Inexistência de previsão legal de intervenção do Ministério Público nas demandas arbitrais em que a massa falida seja parte, especialmente sob a óptica do veto ao artigo 4o, da Lei nº 11.101/2005, que não manteve norma similar ao artigo 210 do Decreto-lei nº 7.661/45. Legitimidade da inclusão do crédito reconhecido no Tribunal Arbitrai no Quadro-Geral de Credores da falida, pelo valor determinado no juízo arbitrai, limitada a atualização monetária e os juros até a data do decreto da quebra, a teor dos artigos 9o, inciso II e 124, ambos, da Lei nº 11.101/2005. Agravo parcialmente provido para ser deferida a impugnação e a habilitação do crédito da agravante, observados os limites acima estabelecidos.”(Tribunal de Justiça de São Paulo TJ-SP – Agravo de Instrumento: AG 5310204300 SP. Processo: AG 5310204300 SP. Órgão Julgador: Câmara Especial de Falências e Recup. Judiciais. Publicação: 30/09/2008. Julgamento: 25 de Junho de 2008. Relator: Desembargador Pereira Calças.)
7 “CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA. Contrato. Arbitragem. Falência da credora que optou pela via jurisdicional. Possibilidade. Inexistência de direito patrimonial indisponível ao tempo da distribuição da demanda. Extinção da ação de cobrança afastada na origem e que é confirmada. Agravo desprovido” (TJSP; AGI 0333524-03.2009.8.26.0000; Relator (a): Costabile e Solimene; Órgão Julgador: 6ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 42.VARA CIVEL; Data do Julgamento: 10/12/2009; Data de Registro: 22/12/2009).
8 Há julgado do Superior Tribunal de Justiça admitindo arbitragem visando garantir os direitos dos acionistas de empresa em recuperação judicial deliberarem em assembleia geral sobre questões de sua competência: “CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. JUÍZO ARBITRAL E JUÍZO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL. DISCUSSÃO ACERCA DA LEGALIDADE DE DISPOSIÇÕES INTEGRANTES DO PLANO DE SOERGUIMENTO. AUMENTO DE CAPITAL. ASSEMBLEIA DE ACIONISTAS. NÃO REALIZAÇÃO. CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA PREVISTA NO ESTATUTO SOCIAL. QUESTÕES SOCIETÁRIAS. COMPETÊNCIA DO JUÍZO ARBITRAL. 1. A existência de provimentos jurisdicionais conflitantes entre si autoriza o conhecimento do conflito positivo de competência.2. O juiz está autorizado a realizar controle de legalidade de disposições que integram o plano de soerguimento, muito embora não possa adentrar em questões concernentes à viabilidade econômica da recuperanda. Precedentes. 3. As jurisdições estatal e arbitral não se excluem mutuamente, sendo absolutamente possível sua convivência harmônica, exigindo-se, para tanto, que sejam respeitadas suas esferas de competência, que ostentam natureza absoluta. Precedentes. 4. Em procedimento arbitral, são os próprios árbitros que decidem, com prioridade ao juiz togado, a respeito de sua competência para examinar as questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha cláusula compromissória – princípio da kompetenz-kompetenz. Precedentes. 5. A instauração da arbitragem, no particular, foi decorrência direta de previsão estatutária que obriga a adoção dessa via para a solução de litígios societários. 6. Ainda que a jurisprudência do STJ venha entendendo, consistentemente, que a competência para decidir acerca do destino do acervo patrimonial de sociedades em recuperação judicial é do juízo do soerguimento, a presente hipótese versa sobre situação diversa. 7. A questão submetida ao juízo arbitral diz respeito à análise da higidez da formação da vontade da devedora quanto a disposições expressas no plano de soerguimento. As deliberações da assembleia de credores – apesar de sua soberania – estão sujeitas aos requisitos de validade dos atos jurídicos em geral. Precedente.8. O art. 50, caput, da Lei 11.101/05, ao elencar os meios de recuperação judicial passíveis de integrar o plano de soerguimento, dispõe expressamente que tais meios devem observar a legislação pertinente a cada caso. Seu inciso II é ainda mais enfático ao prever que, em operações societárias, devem ser “respeitados os direitos dos sócios, nos termos da legislação vigente”. E, no particular, o objetivo da instauração do procedimento arbitral é justamente garantir o direito dos acionistas de deliberar em assembleia geral sobre questões que, supostamente, competem privativamente a eles, mas que passaram a integrar o plano de recuperação judicial sem sua anuência. CONFLITO CONHECIDO. DECLARADA A COMPETÊNCIA DO JUÍZO ARBITRAL” (CC 157.099/RJ, Rel. Ministro MARCO BUZZI, Rel. p/ Acórdão Ministra NANCY ANDRIGHI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 10/10/2018, DJe 30/10/2018). Também a recuperação judicial não impede a homologação da sentença arbitral, nesse sentido: STJ, SEC 14.408-EX, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, por unanimidade, julgado em 21/6/2017, DJe 31/8/2017.
9 SCAVONE, op. Cit.
10 Enunciado 6 da I Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios. Disponível aqui. Acesso em 07 de janeiro de 2018. No mesmo sentido Donaldo Armelin, A arbitragem, a falência e a liquidação extrajudicial, Revista de Arbitragem e Mediação vol 13, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 23, que acrescenta que a atividade do Ministério Público, de natureza fiscalizadora, não afasta esta possibilidade.
11 STJ – CC: 148932 RJ 2016/0251791-4, Relator: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 13/12/2017, S2 – SEGUNDA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 01/02/2018.