Conforme excelente artigo de autoria de Thiago Marinho Nunes, publicado no site Migalhas1, o Tribunal de Justiça de São Paulo, ao julgar o Agravo de Instrumento nº 2263639-76.2020.8.26.0000, recusou a aplicação do sigilo processual previsto no art. 189, IV, do CPC a uma ação anulatória de sentença arbitral. O caso foi julgado em 02/03/2021 pela 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial. No mesmo sentido, vide decisão monocrática do desembargador Azuma Nishi, na Apelação Cível nº 1048961-82.2019.8.26.0100, datada de 15 de março de 2021.
Para além dos efeitos prejudiciais ao instituto da arbitragem e às partes que optaram por se submeter a um tribunal arbitral (os quais foram muito bem abordados no artigo referido acima), há algo que muito incomoda nesse caso concreto: o órgão fracionário do Tribunal de Justiça de São Paulo afastou disposição legal expressa (mais precisamente, o art. 189, IV, do CPC) sem remeter a análise da questão ao Plenário ou ao Órgão Especial da Corte. Houve, portanto, clara violação à cláusula de reserva de plenário, prevista no art. 97 da CF/88, com a devida vênia aos Desembargadores que gozam de total admiração e respeito por parte destes autores.
Para melhor compreensão, vejamos o que estabelecem os dispositivos do CPC e da Constituição Federal que acabamos de mencionar.
O art. 189, IV, do CPC, de forma bastante clara, estabelece que, embora a regra na prática dos atos processuais seja a publicidade, os processos que envolvam arbitragem devem tramitar em segredo de justiça, caso tenha sido aplicada a confidencialidade no juízo arbitral de origem. Eis o teor do dispositivo:
"Art. 189, CPC. Os atos processuais são públicos, todavia tramitam em segredo de justiça os processos:
(...)
IV - que versem sobre arbitragem, inclusive sobre cumprimento de carta arbitral, desde que a confidencialidade estipulada na arbitragem seja comprovada perante o juízo."
Por sua vez, o art. 97 da CF/88, que estabelece a chamada cláusula de reserva de plenário (ou regra da full bench), determina que os Tribunais do Poder Judiciário apenas podem declarar a inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo do poder público por meio de seu Plenário ou Órgão Especial, devendo a decisão ser tomada pela maioria absoluta dos membros do órgão julgador. A redação desse dispositivo é a seguinte:
"Art. 97, CF/88. Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público."
Caso um Tribunal deixe de observar a cláusula de reserva de plenário (o que ocorrerá sempre que declarar uma inconstitucionalidade por meio de órgão que não seja o seu Plenário ou o seu Órgão Especial), a decisão proferida será absolutamente nula, conforme jurisprudência pacificada do Supremo Tribunal Federal2.
Além disso, há situações em que o órgão fracionário do Tribunal, embora não afirme expressamente que está declarando a inconstitucionalidade de uma norma, simplesmente a afasta em um caso no qual ela teria aplicação. Uma manobra como essa nada mais é do que o reconhecimento da invalidade (isto é, da inconstitucionalidade) da norma por via oblíqua, pois, se toda norma se presume válida e se, no caso concreto, havia subsunção, a negativa de aplicação da norma equivale ao reconhecimento de sua invalidade, o que, conforme já esclarecido, apenas pode ser feito com a observância da cláusula de reserva de plenário.
E foi exatamente isso que o TJSP fez no julgamento do caso que aqui estamos analisando: a Corte não declarou expressamente a invalidade do art. 189, IV, do CPC, mas deixou de aplicar essa disposição legal em uma situação que se subsumia perfeitamente a ela. Houve, portanto, uma declaração de inconstitucionalidade por via oblíqua realizada por um órgão fracionário do Tribunal.
Esse tipo de situação é tão comum, que o Supremo Tribunal Federal chegou a aprovar um enunciado de súmula vinculante no qual registrou expressamente que há, nessa hipótese, violação ao art. 97 da CF/88. Trata-se da Súmula Vinculante nº 10, que tem o seguinte teor:
"Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, afasta sua incidência, no todo ou em parte."
Não há dúvida alguma, portanto, de que a decisão proferida pela 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJSP no Agravo de Instrumento nº 2263639-76.2020.8.26.0000, ao negar o sigilo judicial a uma ação anulatória de sentença arbitral, violou a cláusula de reserva de plenário e, como consequência, nasceu viciada com nulidade absoluta.
A bem da verdade, o que se pode perceber é que o órgão fracionário da Corte discordou da opção política do legislador consistente em determinar a aplicação do segredo de justiça aos processos judiciais envolvendo questões atinentes a juízos arbitrais, provavelmente, por uma falta de compreensão do instituto da arbitragem e da sua importância para o desenvolvimento socioeconômico do País. E, no açodamento para evitar que o processo tivesse tramitação nos termos previstos em lei, acabou ignorando que, no desempenho de suas funções, encontra-se submetido à Constituição Federal, mais precisamente, à cláusula de reserva de plenário.
O lado bom de tudo isso é que, por ter violado enunciado de súmula vinculante, a decisão em questão pode ser atacada pela via célere da reclamação, conforme permitem os arts. 7º da lei 11.417/063 e 988, III, do CPC4, sem prejuízo, sempre, do recurso cabível, já que reclamação não é sucedâneo recursal5.
*Francisco Maia Braga é graduado em Direito com láurea universitária pela Universidade Federal de Pernambuco (Faculdade de Direito do Recife). Procurador do Estado de São Paulo. Ex-Procurador do Estado do Rio Grande do Sul. Ex-Procurador do Estado de Rondônia. Professor de cursos preparatórios para concursos públicos. Autor de livros jurídicos. Sócio fundador dos cursos RevisãoPGE e Trino Concursos.
**Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira é procurador do Estado de São Paulo. Doutor e Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP. Professor do Programa de Doutorado e Mestrado em Direito da UNAERP. Professor convidado de cursos de pós-graduação. Membro de listas de árbitros de diversas Instituições Arbitrais. Membro da Comissão Especial de Arbitragem do Conselho Federal da OAB. Autor de livros jurídicos.
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1 Disponível aqui.
2 Rcl 18165 AgR-ED, j. 21/08/2017, Segunda Turma, Rel. Min. Alexandre de Moraes.
3 "Art. 7º Da decisão judicial ou do ato administrativo que contrariar enunciado de súmula vinculante, negar-lhe vigência ou aplicá-lo indevidamente caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal, sem prejuízo dos recursos ou outros meios admissíveis de impugnação."
4 "Art. 988. Caberá reclamação da parte interessada ou do Ministério Público para: (...) III – garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de decisão do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; (...)".
5 Pleno, AgRg na Rcl 5.703/SP, AgRg na Rcl 5.926/SC, e AgRg na Rcl 5.684/PE.