Para falar do Anteprojeto de Reforma do Código Civil de 2002, fruto do trabalho da Comissão de Jurista, instituída pelo Ato nº 11/2023 do Presidente do Senado Federal, é necessário lembrar as proposições defendidas pela Comissão de Juristas presidida por Miguel Reale, constituída em 1969, encarregada da elaboração do Anteprojeto que resultou no Código Civil de 2002. Conhecer a estrutura e a orientação que foi adotada para a formulação do Livro do Direito de Empresa que está em vigor, é imprescindível para analisar as propostas que agora são apresentadas para a reforma do Código Civil em relação ao Direito de Empresa.
O revogado Código Civil de 1916 foi objeto de várias propostas de alteração. Coube à Comissão de Juristas, integrada por Miguel Reale, José Carlos Moreira Alves, Agostinho Alvim, Clóvis do Couto e Silva, Herbert Chamoun, Torquato Castro e Sylvio Marcondes a apresentação do Anteprojeto que finalmente foi aprovado. A Comissão Reale foi influenciada pelas ideias de Teixeira de Freitas para a concepção de um modelo brasileiro de unificação do direito privado, que não se confunde com a unificação de outras codificações (a referência naquele tempo era aos Códigos Italiano e Suiço), especialmente pelo fato de se incluir uma parte geral no Código e não incluir o Direito do Trabalho. A proposta, que foi aprovada1, unificando as obrigações civis e mercantis, seguiu uma tendência da época, muito difundida na doutrina francesa, que falava de uma espécie de “comercialização do direito civil” ou “civilismo do direito comercial”. A ideia era de uniformizar o procedimento jurídico da prática econômica em um só corpo de lei, à serviço de todos, sem discriminação.
O Anteprojeto da Comissão Reale, com a participação de Sylvio Marcondes na elaboração da parte relativa à Atividade Negocial, que depois se tornou o Livro do Direito de Empresa, separou as pessoas jurídicas de direito privado entre as entidades que não têm fins econômicos (associações e fundações) e aquelas que têm fins econômicos, que são divididas, por sua vez, em sociedades simples e sociedades empresárias. O empresário e a sociedade empresária são os titulares da empresa, com a qual não se confundem. Também se adotou claramente a distinção entre a empresa (como organização coordenada pelo empresário dos fatores da produção de bens e serviços para o mercado) e o estabelecimento empresarial.2 Abandonou o conceito de ato de comércio, de longa tradição comercialista, para adotar modernamente o conceito de empresa e de atividade empresarial. A ideia de fundo de comércio deu lugar ao estabelecimento empresarial, como um corpo vivo, organizado para a atividade empresarial. Se procurou conjugar a organização das sociedades limitadas com as sociedades por ações, para complementar a ordenação da empresa e da respectiva atividade econômica.
A Comissão Reale adotou, portanto, a ideia de atividade empresária como sendo a prática de atos negociais, reiterada continuamente, de modo organizado e estável, por um mesmo sujeito e com uma finalidade unitária e permanente, criando uma série de relações interdependentes, mas coordenadas. É a atividade que se manifesta economicamente na empresa, sob a titularidade do empresário3. Esse perfil subjetivo da empresa (a empresa como empresário), do qual falava Asquini4, é fixado no Anteprojeto da Comissão Reale para submeter o empresário não mais a um estatuto de classe, mas a um sistema obrigacional capaz de reger direitos e deveres do titular, como empresário, por normas especiais e adequadas ao exercício da atividade negocial empresária.
O Anteprojeto da Comissão Reale separou as sociedades personificadas das sociedades não personificadas. Para estas últimas, que são a sociedade em comum e a sociedade em conta de participação, deu a regência do direito societário, com preceitos próprios supridos pelas normas aplicáveis à sociedade simples. Seguiu a ideia de que a Lei deve traçar um programa mínimo de regência da sociedade. Afastou-se do Código Civil de 1916, que regulava em geral, tanto a sociedade civil como a associação, sem distinguir normas gerais e especiais. Coordenou as normas gerais das sociedades do Código Comercial e das sociedades do Código Civil. Criou e estruturou o modelo comum da sociedade simples como um regime mínimo de regulação das sociedades em geral.
O Anteprojeto da Comissão Reale cuidou das sociedades anônimas e das sociedades “ligadas”, ou, propriamente, como hoje melhor se definem, das sociedades “coligadas”. Tinha disposições muito avançadas, como aquela que limitava a participação recíproca ao valor das próprias reservas, excluída a reserva legal.
O Anteprojeto da Comissão Reale, como já destacado, não promoveu a unificação do direito privado, preservando a separação entre o Direito Civil e o Direito Mercantil ou Empresarial. Unificou somente o Direitos das Obrigações. A parte relativa ao Direito de Empresa se coloca como um desdobramento do direito obrigacional unificado. Sylvio Marcondes, que cuidou da parte que se denominou no Anteprojeto de Atividade Negocial, já havia participado do Anteprojeto do Código das Obrigações de 19655, elaborando a sua terceira parte, dedicada aos empresários e às sociedades, trabalho que foi aproveitado pela Comissão Reale.
No Anteprojeto da Comissão Reale havia um dispositivo inaugural da parte relativa à Atividade Negocial que admitia que essa atividade poderia ser desenvolvida tanto por empresários e sociedades empresárias como por profissionais que se organizassem para o exercício habitual de negócios. A empresa, portanto, poderia ser uma das formas possíveis dessa organização. Havia, portanto, um conceito mais abrangente de atividade negocial, que acabou reduzido pela redação que se deu ao Código Civil de 2002.
Estas curtas observações bem revelam que o Código Civil de 2002 nasceu do trabalho pensado e exaustivamente discutido pela Comissão Reale, apoiado que foi em proposições anteriores e na doutrina.
Passados vinte anos de vigência do Código Civil de 2002, foi formada uma nova Comissão de juristas para uma ampla reforma. Na parte relativa ao direito de empresa, foram propostas muitas alterações, para além de uma reforma, sem mudar substancialmente aqueles pontos que poderiam receber a atenção do trabalho reformista. Algumas proposições, com o devido respeito, se mostram absolutamente dispensáveis, como é o caso da inclusão do art. 966-A, que declara princípios voltados para a interpretação e aplicação do Código. Sempre me pareceu que não cabe ao legislador declarar princípios, porque eles são identificados e extraídos da lei pelo trabalho da doutrina. Ademais, arrolar princípios na lei é assumir o risco de faltar com outros e de dizer o que é óbvio, assim como implica em incorporar posições controversas. Antes de facilitar o trabalho do intérprete e dar segurança na aplicação da lei, a declaração de princípios constituiu um novo e desconhecido objeto de interpretação. Por isso é reconhecido pela doutrina que o método de legislar por princípio é um método que produz insegurança e favorece o arbítrio judicial e decisões conflitantes.
Acrescentamos, para não ir mais longe, que na proposição (art. 966-A do anteprojeto) há indicação de princípios que não são verdadeiramente princípios, como é o caso “da limitação da responsabilidade dos sócios, conforme o seu tipo societário” e “da deliberação majoritária do capital social”. É evidente que haverá limitação da responsabilidade de acordo com o tipo societário, como também não se coloca em dúvida a força do capital majoritário, mas não como um princípio, porque poderá deixar de ser observado, conforme o contrato da sociedade, acordo de sócios ou, ainda, nos casos de voto plural (embora admitido hoje somente para as sociedades anônimas). Há outros fenômenos que igualmente afastam a força majoritária do capital, tudo a infirmar a declaração do princípio majoritário. O próprio Anteprojeto admitiu várias exceções à força majoritária do capital, como é o caso das quotas da sociedade limitada sem voto, prevista no Anteprojeto, ou a deliberação do art. 1.004, parágrafo único, do Código Civil, não modificado, que estabelece a deliberação “pela maioria dos demais sócios” e não pelo capital.
Em relação aos contratos empresariais, o Anteprojeto avançou em reconhecer que pode haver disparidade econômica entre as partes nos contratos, deixando-se de aplicar a presunção de paridade e os princípios de vinculação que estão no art. 421-C do anteprojeto (§ 2º Nos contratos empresariais, quando houver flagrante disparidade econômica entre as partes, não se aplicará o disposto neste artigo.). Na verdade, sempre me pareceu duvidosa a ideia de classificar o contrato em contrato paritário ou, o que é mais grave, a ideia de presunção de paridade em contratos interempresariais, ou em contratos entre pessoas jurídicas. Contudo, apesar do avanço, o Anteprojeto se refere a “atipicidade natural” dos contratos empresariais, quando me parece que nem sempre são atípicos, desconhecendo o que poderia ser atipicidade natural. De outra parte, inova ao fazer referência à “boa-fé empresarial”, um novo conceito que pode trazer dificuldades de interpretação, que indica a ideia de que poderia haver uma boa-fé diferente no ambiente empresarial.
O anteprojeto propõe uma grande e importante mudança quando deixa de definir “empresário” para definir a “empresa” (art. 966), e parece que deu aos profissionais liberais a mesma prerrogativa do produtor rural (art. 971), ou seja, a de se definir como empresário mediante o registro de empresa (art. 966, § 2º).
Sem dúvida é um avanço definir a empresa e abandonar, de vez, a subjetividade que acompanha o direito empresarial desde sempre. Todavia, a definição deixou se incluir a “produção” de riquezas, como foi bem apontado pelo IASP6, como não se ateve a todas as consequências dessa modificação. O direito de empresa no Código Civil de 2002 foi assentado na teoria da empresa e na conhecida doutrina de Asquini, o que representa dizer que a proposta pode trazer um rompimento com o ideal do Código. Uma questão importante decorrente dessa modificação é a possível interpretação no sentido de que a recuperação judicial e a falência não são privativas do empresário, mas de todo aquele que desenvolve a atividade econômica. Outra consequência, que me parece mais grave, é colocar em dúvida o reconhecimento de que a qualidade de empresário ou da sociedade empresária não é dependente do registro, como hoje está muito claro no Código Civil, porque o art. 966, parágrafo único, passa a ver o registro como facultativo e atributivo da qualidade empresária. Logo, parece que é o registro que define se a sociedade é empresária e não a sua atividade. É uma mudança indesejada.
Também se propõe modificar os arts. 982 e 983 para considerar empresária a sociedade que tem por objeto o exercício da atividade empresarial e as demais, consideradas civis. Ao reintroduzir a sociedade civil no direito brasileiro, sem um regime próprio, que não foi definido no Anteprojeto, ao lado da sociedade simples, que não foi revogada, cria uma enorme incerteza no direito societário. Parece que a sociedade civil seria aquela que é constituída por um dos tipos empresários, mas não tem atividade empresária, como hoje é a sociedade simples. Ficaria a sociedade simples exclusivamente como um modelo de sociedade, porque esvaziada, salvo naqueles casos raros de sociedade simples pura.
Na proposição de alteração da redação do art. 985 do CC, para estabelecer que a sociedade somente adquire personalidade com o registro público de empresa, se elimina o registro da sociedade simples no registro civil de pessoa jurídica, como se pretendesse unificar o direito societário. Há, nesse ponto, conflito com a redação do art. 1.150, que continua a estabelecer o registro da sociedade simples no registro civil, e do art. 45, que determina a inscrição do ato constitutivo no respectivo o registro.
O Anteprojeto propõe alterar o art. 977 do CC e retomar o entendimento que o STF já havia firmado há muito tempo, no sentido de que os cônjuges, assim como os companheiros, podem constituir sociedade entre si ou com terceiros, independentemente do regime de bens adotado. Essa modificação afasta uma restrição que sempre foi criticada no Código Civil de 2002. É um ponto positivo do Anteprojeto, mas bastava a revogação do dispositivo.
A empresa estrangeira, para atuar no Brasil, deverá estabelecer sede em território nacional (art. 1.134, § 7º). Hoje não há essa exigência. Essa restrição pode inibir investimentos no Brasil.
Em nosso entendimento, o Anteprojeto, na parte do direito de empresa, não revelou uma orientação determinada quando se propõe a modificar vários dispositivos, às vezes de forma conflitante. Em alguns momentos, o Anteprojeto se deixou influenciar pela orientação da jurisprudência, renunciando à atividade própria do legislador. Em outros introduz mudanças não experimentadas. O Anteprojeto poderia melhorar a redação do Código em vigor e eliminar suas distorções e equívocos de interpretação, mas foi além.
Como exemplo, tomo o art. 1.077 do Código Civil, que admite o exercício da retirada do sócio (recesso) da sociedade limitada quando discordante com a modificação substancial do contrato, especialmente em relação à fusão e incorporação. Por equívoco, criticado pela doutrina, a jurisprudência se firmou no sentido de que o sócio pode se retirar da sociedade por tempo indeterminado quando quiser, sem motivo, aplicando à sociedade empresária a regra da sociedade simples prevista no art. 1.029, ignorando a diferença substancial entre a sociedade simples e a sociedade empresária.
O Anteprojeto não só deixou de corrigir essa interpretação equivocada, como a agravou, quando expressamente estabelece a aplicação do art. 1.029 à sociedade limitada. Deixa de fazer sentido, por isso, o prazo de 2 anos, de decadência, para a anulação da respectiva deliberação, quando se reconhece que o sócio pode se retirar quando quiser, mas foi mantido o art. 1078.
A sociedade em nome coletivo e a sociedade em comandita simples desaparecem. Não haverá mais sociedades ou sócios de responsabilidade ilimitada. Não é conveniente eliminar uma alternativa na organização da empresa. A comandita por ações também acaba com a redação que se propões para o art. 1.090, que a remete à Lei das sociedades anônimas.
Embora se verifique uma tentativa de uniformização de tratamento das deliberações de exclusão de sócios, com prevalência do capital, não se modificou a redação do art. 1.004 no mesmo sentido, que continua a prever deliberação por cabeça e não pelo capital. Perdeu a oportunidade de afastar a exclusão judicial de sócio, que continua prevista no art. 1.030. A deliberação de exclusão deveria ter efeito imediato, cabendo ao prejudicado recorrer ao Judiciário em caso de ilegalidade ou abuso. No entanto, hoje ainda é exigido validar a deliberação na Justiça para lhe dar efeito. É uma distorção, a meu ver, na autonomia que deve ser preservada no direito societário, com grave consequência para a vida da sociedade.
O Anteprojeto fez pouco em favor da responsabilidade de controladores, administradores e sócios, para não dizer que nada foi feito em relação aos grupos de fato.
Não está albergada da crítica a disposição que estabelece que a sociedade unipessoal não poderá ter o capital dividido em quotas (art. 1.055), dificultando o direito sucessório e a conversão das sociedades pluripessoais, que têm o capital em quotas. Também é passível de crítica a restrição à pessoa natural como titular da sociedade unipessoal (art. 1.052-A).
Parece um erro também admitir quotas preferenciais na sociedade limitada, como se fossem ações. As ações são títulos, que podem circular, e por isso podem ser emitidas em classes diferentes. As quotas não. O que não dizer da possibilidade de supressão do voto, porque o anteprojeto prevê sócios sem voto (art. 1.055, § 3º). Parece que o Anteprojeto procura admitir nas sociedades limitadas sócios investidores, mas não avançou nesse sentido.
Um ponto positivo é a proposição do art. 1.076, que substitui o regime atual de deliberação social, complexo e duvidoso, pela deliberação por maioria do capital social.
Também avança ao admitir a administração da sociedade limitada por pessoa jurídica (art. 1.060).
Bastante duvidoso se apresenta o direito assegurado ao sócio excluído ou retirante de continuar a perceber lucros da sociedade até o recebimento de seus haveres (art. 1.085-A, III), salvo disposição diversa do contrato.
Em relação à exclusão de sócio, o anteprojeto avançou em favor de um critério de apuração de haveres, mas se equivocou ao estabelecer o trânsito em julgado como momento da apuração. É a deliberação de exclusão ou o ato de retirada que separa o sócio da sociedade, e não o trânsito em julgado da sentença.
São observações preliminares resultantes do primeiro contato com o Anteprojeto. Não são feitas em tom de crítica ao trabalho da Comissão de juristas. O propósito é somente oferecer uma modesta contribuição.
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1 A Comissão apresentou em 1972 o Anteprojeto, convertido em 1975 em Projeto de Lei (634-B), que se converteu, depois de longa tramitação no Congresso Nacional, na Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
2 Também é oportuno reproduzir nesse ponto a exposição de motivos do Anteprojeto: “Em linhas gerais, pode dizer-se que a empresa é. consoante acepção dominante na doutrina, «a unidade económica de produção», ou a atividade económica unitariamente estruturada para a produção ou a circulação de bens ou serviços. A empresa, desse modo conceituada, implica, para a consecução de seus fins, um ou mais «estabelecimentos». que são complexos de bens ou «bens coletivos» que se caracterizam por sua unidade de destinação, podendo, de per si, ser objeto unitário de direitos e de negócios jurídicos.”
3 Definição de Sylvio Marcondes na exposição de motivos complementar.
4 Perfis da Empresa. Alberto Asquini. Tradução de Fábio Konder Comparato. RDM 104/109.
5 Esse anteprojeto foi elaborado a partir do anteprojeto de Caio Mário da Silva Pereira. A Comissão de juristas para o anteprojeto do Código de Obrigações foi formada por Caio Mário da Silva Pereira, Theóphilo Azeredo Santos e Sylvio Marcondes.
6 Revista do IASP n. 38.1 (2024), cujo tema é a análise preliminar do anteprojeto de reforma do Código Civil, sob a coordenação de Diogo Leonardo Machado de Melo, Frederico Prado Lopes e Roberta Cristina Paganini Toledo.