Novos Horizontes do Direito Privado

As opções de venda e de compra nos contratos de compra e venda de cotas de fundos de investimento – Direito potestativo? Uma observação do ponto de vista dos modelos jurídicos

Os modelos jurídicos negociais, como o contrato de compra e venda, adaptam-se às necessidades atuais, como no caso das opções de compra e venda em investimentos, mostrando a flexibilidade do Direito Privado.

15/5/2024

Há um fenômeno que sempre desperta grande interesse. Os modelos clássicos do Direito Privado, tal qual como concebidos, são muito facilmente ajustados às necessidades atuais e aos negócios. São os modelos jurídicos negociais, dos quais já há muito falava Miguel Reale.Esses modelos podem servir a finalidades diferentes e se transformam, porque fruto da experiência humana e do contato permanente com a vida social. O contrato de compra e venda, um dos modelos mais antigos do Direito Privado, é um desses modelos que se apresenta com enorme capacidade de adaptação ao mundo dos negócios. Novas cláusulas, ajustes e condições modificam a sua fisionomia e renovam o seu uso nos negócios.

Pretendo aqui lançar algumas notas sobre a compra e venda de cotas de fundos de investimentos e o exercício das respectivas "opção de venda" e "opção de compra", muito utilizadas nesses negócios para atrair os investidores. Não obstante limitada a nossa observação, deve-se dizer que o que se segue bem cabe às opções de compra e venda em geral. O que mais interessa nessas notas é verdadeiramente o exercício da opção de compra e de venda nos contratos de compra e venda. É o que chama a atenção para a observação do uso moderno dos modelos do direito privado, como ocorre no caso com o contrato de compra e venda, clausulado com opções, que ganha uma nova utilização como instrumento válido para viabilizar o investimento, e não com a finalidade que lhe é natural, de simples negócio de transmissão de propriedade. É essa extraordinária capacidade de mutação dos modelos jurídicos que interessa perceber no Direito Privado.2

Hipoteticamente podemos pensar na compra e venda de cotas de um fundo imobiliário ou de um fundo de ações, cujo contrato assegura, sob certas condições, ao vendedor, exercer a "opção de compra" das quotas vendidas, e ao comprador, exercer a "opção de venda" dessas quotas em favor do vendedor. Esse ajuste assegura ao comprador vender as quotas se a valorização ou rendimento não lhes são interessantes (uma espécie de garantia do investimento), como assegura ao vendedor, nas condições ajustadas, ter as cotas novamente diante da expectativa de ganho. A "opção", quando não é bem compreendida, pode oferecer dúvidas quanto à sua natureza e ao modo de exercê-la.

Desde logo não se pode confundir a "opção" com a "retrovenda". A "opção" confere ao vendedor originário o direito de obrigar a outra parte a lhe vender as cotas, assim como confere ao comprador o direito de obrigar o vendedor a lhe adquirir as cotas. Uma vez exercida (a opção), cria-se um novo negócio, um outro negócio – o negócio de compra e venda. O direito de exercer essa opção não é dependente de nova manifestação de vontade da outra parte – aceitação (que já a declarou), porque tem natureza potestativa e difere fundamentalmente do direito de reaquisição resultante da retrovenda.

Há alguma controvérsia na doutrina sobre a natureza jurídica da"opção" de venda, mas não há divergência quanto à sua natureza contratual ou como negócio jurídico.3 A opção de venda, segundo a precisa lição de Orlando Gomes, "é um negócio jurídico bilateral, mediante o qual estipulam as partes que uma delas permanece vinculada à própria declaração de vontade, enquanto a outra se reserva a faculdade de aceitá-la, ou não." 4

Com outras palavras, Inocêncio Galvão Telles diz que a opção de venda "consiste no acordo por força do qual uma das partes emite desde logo a declaração correspondente a um futuro contrato, ficando a ela vinculado, e a outra com a faculdade de vir ou não a aceitá-la. A declaração vale como proposta irrevogável, não podendo o seu autor retirá-la." 5

Cabe destacar destas definições doutrinárias que a opção de compra, assim como a opção de venda, são, antes de tudo, negócio jurídico distinto daquele do qual se originou, e que consiste em uma proposta, irrevogável, resultante do exercício da autonomia privada.6 Esclareça-se: Não é neste caso somente uma mera proposta, como negócio jurídico unilateral formativo do contrato. A opção é verdadeiramente um contrato, já formado bilateralmente a partir da aceitação das partes, no qual se lança uma proposta para a formação de um outro negócio (a compra e venda). Essa proposta se distingue pela sua natureza irrevogável ao proponente, sujeito ao poder potestativo do oblato, que tem a faculdade de aceitá-la ou não, observadas as condições do contrato.Como diz Pontes de Miranda, "o direito de opção, em se tratando de contratar, é direito formativo gerador: o seu exercício gera o contrato". 8

O direito potestativo se caracteriza, segundo a boa doutrina de Massimo Bianca, pelo poder do sujeito de modificar, no próprio interesse, uma determinada situação jurídica mediante uma declaração unilateral de vontade. Ao poder do sujeito é correlativa uma sujeição, e não um dever. O destinatário do efeito jurídico não está obrigado a uma prestação de fazer ou de não fazer em favor do titular, mas é simplesmente exposto àquele efeito.9 Em outras palavras, aproveitando as lições de Cabral de Moncada, o direito potestativo confere ao seu titular o poder exclusivo de, por um ato de sua vontade, produzir um certo efeito jurídico novo, que vai influir na esfera jurídica de outra pessoa. O exercício dessa faculdade contém o gérmen de um novo direito – é o direito de produzir outros direitos.10

O traço que mais identifica o direito potestativo, portanto, é a sujeição da parte, no caso, aos efeitos do exercício da opção, desde que atendidas as condições objetivas do contrato (prazo, cotação em bolsa, aumento da taxa de juros, variação cambial etc.). Resulta daí que a recusa de qualquer uma das partes aos efeitos decorrentes do exercício da opção representa o rompimento do contrato, com as suas consequências, porque não aceitar a opção é retirar a vontade, revogá-la, quando é certo que a opção, como contrato (ou como proposta) é irretratável e irrevogável.

Essa utilização que se deu ao negócio de compra e venda, com o uso das opções, para atender a um outro interesse das partes, bem revela a capacidade que têm os modelos do Direito Privado de assumir novas feições a partir do contato permanente com as relações sociais.

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1 Fontes e Modelos do Direito – para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo : Editora Saraiva, 1994. Também se deve anotar sobre o tema a obra de coordenação de JUDITH MARTINS-COSTA, Modelos de Direito Privado, publicada pela Editora Marcial Pons (São Paulo: 2014).

2 Podemos lembrar nesse sentido o uso que se dá ao usufruto, como instrumento de planejamento patrimonial e sucessório, ou ao mandato, como garantia, ou à locação em built to suit , que combina a locação com outro negócio, entre outros modelos que foram aproveitados e se transformaram para atender a outras finalidades.

3 Ver, por todos, o estudo de TATIANA BONATTI PERES. Antes, vale ressaltar que “opção de venda” é o mesmo contrato de “opção de compra”, com a diferença em que, no primeiro, o interessado vende suas cotas e exige do outro a compra, de forma que no segundo (opção de compra), exige-se do outro que venda suas cotas, para que o interessado possa comprá-las. Assim, destaca a referida autora: “A opção de compra, considerada um contrato, deve ser entendida em seu duplo aspecto, como um acordo que: (a) gera, desde a sua assinatura, os deveres contratuais de conduta, dentre eles, a obrigação do outorgante de não vender o bem opcionado a terceiros ou praticar quaisquer atos que possam frustrar o direito do beneficiário, pelo prazo ajustado; e a obrigação do beneficiário a pagar o prêmio, se o direito de opção for concedido a título oneroso; e (b) torna a oferta do contrato projetado irrevogável, isto é, origina o direito potestativo definitivo do beneficiário de fazer nascer o contrato projetado, mediante a sua declaração unilateral, seja o contrato definitivo de compra e venda ou o compromisso (ou contrato preliminar) de compra e venda. Em razão do direito potestativo gerado pela opção de compra em favor do beneficiário, ela também cria o correspondente estado de sujeição do outorgante, que não pode opor-se ao nascimento do contrato projetado.” (O CONTRATO DE OPÇÃO DE COMPRA. Revista de Direito Privado | vol. 46/2011 | p. 323 - 344 | Abr - Jun / 2011). Ainda, como o negócio jurídico, é a opinião de FRANCISCO SATIRO SOUZA JUNIOR (Regime jurídico das opções negociadas em bolsas de valores. Tese de doutoramento USP: 2002) e de FELIPE CAMPANA PADIN IGLESIAS (Opção de compra ou venda de ações no direito brasileiro: natureza jurídica e tutela executiva judicial. Dissertação de mestrado. USP: 2011).

4 ORLANDO GOMES. Contratos. 28ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p 273.

5 INOCÊNCIO GALVÃO TELLES (Manual dos contratos em geral. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 240).

6 O Código Civil italiano é expresso ao reconhecer na “opção” uma “proposta”. Assim está no seu art. 1.331, in verbis: Art. 1331. Opzione. Quando le parti convengono che una di esse rimanga vincolata alla própria dichiarazione e l'altra abbia facoltà di accettarla o meno, la dichiarazione della prima si considera quale proposta irrevocabile per gli effetti previsti dall'articolo 1329.” (o destaque é nosso).

7 A propósito do tema é oportuna a observação de ANDRÉ ESTEVEZ: “A natureza da opção não é pacífica. Parte da doutrina, fundada no Código Civil italiano, considera a opção como proposta irrevogável de contratar. Mas considerar esta ótica significa também que a relação jurídica não se estabelece enquanto não houver aceitação da proposta, fato este a gerar diversidade de tratamento na responsabilidade civil. Apesar das possíveis distinções, as discussões existentes entre as duas modalidades não importam em diferença relevante, na medida em que os efeitos do contrato de opção são “homólogos” aos da proposta irrevogável entre o proponente e “destinatário da proposta”.” (Contrato de opção de compra e de venda de participação societária: função, autonomia privada e controle de validade na Sociedade Anônima fechada. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2021, p. 31).

8 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte especial. São Paulo: Ed. RT, 2012. t. XXXIX – Direito das obrigações: compra e venda. Troca. Contrato estimatório. p. 297/298).

9 As referências que fizemos em favor da doutrina de C. MASSIMO BIANCA podem ser encontradas in Diritto Civile. III (Il contratto) e VI (La propprietà). Milano : Giuffrè, 2000 e 1999, respectivamente, p. 221/224 e p. 35/40.

10 LUÍS CABRAL DE MONCADA, apoiado na ciência alemã e italiana define o direito potestativo “como sendo a faculdade ou o poder atribuído a certo indivíduo, mediante o qual é alterada de qualquer modo a esfera jurídica de outro” (Lições de direito civil – parte geral. 4ª ed. Coimbra : Almedina, 1995, p. 65-69). O autor, a par das definições do direito potestativo encontradas na doutrina, não deixa de registrar, que vê com ceticismo o rigor científico e até a utilidade prática dessa doutrina, porque entende que todos os direitos envolvem mais ou menos poderes de intervir na esfera jurídica alheia e que esses novos direitos outra coisa não são senão desdobramentos do conteúdo de outros direitos subjetivos.

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Coordenação

Carlos Alberto Garbi Pós-Doutor em Ciências Jurídico Empresariais pela UC - Universidade de Coimbra. Mestre e Doutor em Direito Civil pela PUC - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Professor de Direito Privado das FMU - Faculdades Metropolitanas Unidas. Vice-Presidente do Conselho do INBRADIM. Membro Acadêmico-Associado da ABDC - Academia Brasileira de Direito Civil. Diretor Nacional de Publicações da ADFAS - Associação de Direito de Famiília e das Sucessões. Advogado. Consultor. Parecerista.