No Direito brasileiro, assim como ocorre nos países ocidentais, é assente a ideia de que a pessoa jurídica tem uma personalidade distinta dos seus membros (sócios, acionistas e administradores) e, consequentemente, tem autonomia patrimonial. É antigo o proverbial enunciado: “societas distat a singulis”. A pessoa jurídica, a partir desse princípio, de enorme proveito ao direito societário, pode ser utilizada para a prática de fraudes e abusos de direito, especialmente contra credores. Pode-se fazer uso da personalidade jurídica como uma espécie de “véu” ou “capa” para proteger e ocultar negócios ilícitos. A reação contra esses abusos surgiu com a teoria anglo-americana do disregard of legal entity (piercing the veil, lifting the corporate veil) e pela teoria italiana do superamento da pessoa jurídica, pela teoria da desistimação dos espanhóis e ainda pela teoria alemã da penetração. No Brasil se fala em desconsideração da personalidade jurídica. É muito comum entre os juristas brasileiros a referência à doutrina mais considerada de Rolf Serick, da Alemanha, de Maurice Wormser, dos Estados Unidos, e de Pierro Verrucoli da Itália.
Em brevíssimo escorço histórico podemos lembrar que no Brasil o Código Comercial de 1850 não conhecia (ou reconhecia) a personalidade jurídica, o que só ocorreu com o Código Civil de 1916. Esta primeira codificação civil brasileira foi marcada muito fortemente pelo liberalismo, o que acabou propiciando uma excessiva compreensão técnica da pessoa jurídica (teoria da realidade técnica), inibindo por muito tempo a ideia de desconsideração da personalidade jurídica, que só passou a ser considerada efetivamente pelos Tribunais brasileiros a partir da segunda metade do século passado. Atribuiu-se, e com razão, ao jurista brasileiro Rubens Requião uma grande contribuição para a aplicação prática da desconsideração da personalidade jurídica, muito influenciada pela doutrina norte-americana.
No Brasil não havia disposição legal sobre a desconsideração da personalidade jurídica, o que deu força ao entendimento de que poderia haver responsabilização direta do administrador ou controlador da sociedade decorrente dos atos ilícitos. Em favor dessa responsabilização direta se passou a aplicar, por analogia, o art. 135 do Código Tributário Nacional, que responsabiliza pessoalmente sócios e administradores por atos praticados com excesso de poder ou infração ao contrato social.
Com a lei 6.024/74, que dispõe sobre a intervenção e a liquidação extrajudicial de instituições financeiras, se passou a admitir a indisponibilidade de todos os bens pessoais de administradores de instituições financeiras até a apuração de suas responsabilidades (art. 36). E o decreto-lei 2.321/87, que instituiu o RAET - Regime de Administração Especial Temporária nas instituições financeiras, estabeleceu que “A responsabilidade solidária decorrente do vínculo de controle se circunscreve ao montante do passivo a descoberto da instituição, apurado em balanço que terá por data base o dia da decretação do regime de que trata este decreto-lei” (art. 15, § 2°).
Foi a partir do CDC (lei 8.078/90), que regula exclusivamente as relações de consumo, que surgiu a primeira disposição legal específica no Brasil para a desconsideração da personalidade jurídica, admitida não só quando ocorrer abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social, mas “sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.” Também admitiu a desconsideração da personalidade jurídica quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. E de forma ainda mais abrangente, estabeleceu a desconsideração no âmbito das relações de grupo de sociedades: “As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código” (art. 28).
Atribui-se ao CDC, em alguns casos, uma espécie objetiva de desconsideração da personalidade jurídica, que já foi identificada como teoria menor da desconsideração, para a qual basta a insolvência, objetivamente considerada. É certo que essa objetivação recebeu críticas da doutrina, porque resulta nesses casos em verdadeira negação da pessoa jurídica. Todavia, é frequentemente aplicada pelos Tribunais nas relações de consumo, ainda que essa aplicação se faça com alguma mitigação.
Seguindo uma certa tendência de objetivação da desconsideração da personalidade jurídica, inaugurada pelo CDC, veio a lei de defesa da concorrência (lei 8.884/94 – art. 18), depois revogada pela lei que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (lei 12.529/11 – art. 34), que reproduziu a mesma orientação objetiva.
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