Faz algum tempo que a remuneração arbitrada em favor do administrador judicial nos processos de recuperação de empresas regidos pela lei 11.101/2005 (LRF) vem causando alvoroço no meio jurídico. As polpudas cifras fixadas nas ações propostas por grandes grupos despertam a cobiça de uns e a indignação de outros, às vezes justificada, noutras reflexo de inconfessável inveja.
Embora a lei tenha estabelecido teto para os honorários do administrador judicial (de 5% do valor devido aos credores submetidos à recuperação judicial) e os subordinado à capacidade de pagamento do devedor, à complexidade do trabalho e aos valores praticados no mercado (LRF, art. 24, caput e § 1º), casos envolvendo passivos bilionários acabam permitindo o arbitramento de honorários multimilionários, como recentemente se viu na recuperação do grupo Americanas, onde a remuneração do AJ foi fixada em impressionantes R$100 milhões de reais, frente a um passivo declarado de cerca de R$43 bilhões.
A percepção de exagero decorre, em parte, da comparação entre a remuneração arbitrada em favor do administrador judicial e os honorários contratuais pagos aos próprios advogados do devedor (que mais fielmente expressam a praxe de mercado, por resultar da livre negociação entre os envolvidos). Não é incomum que, nas grandes recuperações judiciais, os advogados recebam menos do que o administrador judicial, mesmo desempenhando tarefas que demandam o envolvimento de mais profissionais e mais horas trabalhadas.
A raiz do problema tem a ver, de um lado, com a discricionariedade conferida ao magistrado para nomear o administrador judicial e, de outro, com o amplo espaço concedido pela lei para fixação dos honorários, sobretudo nas recuperações judiciais envolvendo passivos multibilionários.
Como não existe quadro fixo de administradores judiciais1, o juiz goza de liberdade para escolher sobre quem recairá o encargo, exigindo-se apenas que a escolha recaia sobre profissional idôneo, preferencialmente advogado, economista, administrador de empresas ou contador, ou pessoa jurídica especializada (LRF, art. 21).
Existe aqui uma das raras hipóteses de discricionariedade judicial, na acepção técnica do termo, pois ao juiz é permitido escolher entre um ou outro profissional, ou pessoa jurídica especializada, conforme a confiança neles depositada e segundo o que entender mais conveniente ao caso concreto. Daí por que, para casos complexos, a nomeação tende a recair sobre profissionais altamente qualificados e especializados.
Embora essa sistemática seja positiva em certos aspectos, por conferir ao magistrado a prerrogativa de nomear alguém da sua confiança e evitar a burocracia estatal, permitindo soluções sob medida para o caso, ela acaba permitindo especulações sobre possível favorecimento indevido, notadamente nas recuperações judiciais de grande relevância econômica, nas quais são fixadas as maiores remunerações.
Abrem-se parênteses. Para quem acredita que a existência de um quadro oficial fixo de administradores judiciais favoreceria a moralidade pública, a história prova o contrário. Já houve tal experiência por ocasião da Lei nº 859, de 1902, que determinava que o síndico provisório e os membros da comissão fiscal – em número de 40 no Distrito Federal – seriam escolhidos a partir de uma lista fixa organizada pela Junta Comercial. O resultado? O síndico passou a ser alcunhado de Ali-Babá e os conselheiros fiscais de os 40 ladrões2, sendo desnecessárias outras considerações a respeito do tema. Fecham-se parênteses.
A desconfiança causada pela discricionariedade na escolha do administrador judicial se soma a outro problema: a lei limitou a remuneração do administrador judicial a um percentual fixo (5%), independentemente do montante do passivo sujeito à recuperação judicial (sobre o qual esse percentual é calculado). Opção diferente, por exemplo, daquela adotada pelo legislador em relação aos honorários sucumbenciais impostos à Fazenda Pública, cujos percentuais máximos decrescem à medida que o valor da condenação aumenta, variando de 20% para condenações de até 200 salários-mínimos até o limite máximo de 3% para condenações superiores a 100 mil salários-mínimos (CPC, art. 2º, § 3º).
A limitação legal dos honorários ao percentual de 5% dos passivos visa estabelecer um parâmetro objetivo ao arbitramento judicial, para limitar o espaço de atuação do juiz. Porém, quando as dívidas sujeitas à recuperação alcançam a casa dos bilhões, a norma perde completamente sua função, pois aquele percentual rígido não oferece baliza minimamente razoável para determinar o valor do honorários do administrador judicial – que, vale lembrar, não é responsável pela administração da empresa em recuperação judicial (salvo excepcional e temporariamente, nos casos de afastamento do devedor), exercendo basicamente funções de fiscalização das atividades do devedor, verificação dos créditos e de coordenação do processo, na condição de coadjuvante do juiz.
Na primeira recuperação judicial do grupo OI, as dívidas sujeitas à recuperação somavam cerca de R$ 60 bilhões, de modo que os honorários do administrador judicial poderiam chegar, em tese, à cifra de R$3 bilhões de reais, valor evidentemente incompatível com o respectivo mister (a despeito de toda complexidade e responsabilidade envolvidas) e que não servia de limite objetivo à atuação do juiz na fixação dos honorários, tampouco para escrutinar a remuneração que foi efetivamente arbitrada (inicialmente de cerca de R$140 milhões, divididos entre os dois administradores judiciais nomeados).
O que acontece nesses casos é que, sem a limitação objetiva, amplia-se tremendamente o espaço de atuação do magistrado, que fica meramente subordinado a critérios carregados de subjetividade ou de difícil verificação concreta, a saber: a capacidade de pagamento do devedor, o grau de complexidade do trabalho e os valores praticados no mercado para o desempenho de atividades semelhantes3.
A inexistência de fontes idôneas de comparação e a dificuldade de mensuração desses outros critérios acabam fazendo com que o arbitramento dos honorários seja frequentemente fundamentado em justificativas genéricas, que não fornecem a transparência e previsibilidade tão caras ao processo concursal, mas raramente alcançadas na extensão esperada.
Na prática, como os valores fixados podem chegar às alturas, isso acaba produzindo especulações de todo tipo, não apenas de favorecimento deste ou daquele administrador judicial (quando agraciado com remuneração milionária), mas também de que os polpudos honorários podem ter sido fixados – à custa do devedor – para compensar o administrador judicial pelo trabalho com casos menores, sobretudo pequenas falências, pelos quais raramente recebe de forma condizente com o encargo.
Ocorre que o arbitramento dos honorários não se sujeita à discricionariedade do juiz, não obstante a ampla liberdade crítica que lhe foi conferida para determinar o conteúdo dos critérios definidos pelo legislador.
Conforme explica José Roberto dos Santos Bedaque4, o que se costuma chamar de ato discricionário do juiz é, na verdade, a interpretação e a aplicação da norma ao caso concreto, segundo critérios previamente estabelecidos pelo legislador. Ainda que, em determinados casos, a lei conceda ao juiz ampla liberdade crítica para decidir, isso não quer dizer que ele tenha poder discricionário. Ao decidir com base nas regras, o juiz não faz uma escolha baseada em conveniência ou nos seus próprios juízos de valor. Ele não tem o poder de escolher entre diferentes soluções possíveis, devendo seguir a solução prevista pela norma, desde que os pressupostos legais estejam presentes. Quanto mais imprecisos os conceitos contidos na lei, mais liberdade o juiz tem para examinar esses requisitos, mas isso não significa, repita-se, que sua decisão seja discricionária.
Daí a importância da fundamentação, especialmente quando o limite objetivo à fixação dos honorários não cumpre a função de balizar a atuação do juiz, como sói ocorrer na recuperação judicial de grandes grupos empresariais. Nesses casos, ficando o arbitramento judicial exclusivamente sujeito à investigação crítica do magistrado dos demais critérios legais, a determinação do montante dos honorários demanda especial justificação, não apenas para que o raciocínio do juiz possa ser conhecido por aqueles diretamente afetados pela sua decisão, mas também para que esta possa ser adequadamente impugnada pela via recursal.
Existem, por outro lado, outras particularidades relativas aos honorários do administrador judicial nas recuperações judiciais de grupos que merecem atenção.
Ao deferir o processamento da recuperação judicial em litisconsórcio, sob consolidação processual, o juiz deve nomear um único administrador judicial5 (LRF, art. 69-H), medida que serve para viabilizar a coordenação dos atos do processo envolvendo múltiplos devedores, bem como a possível redução de custos, em comparação àqueles que seriam incorridos com a nomeação de vários administradores judiciais, como ocorreria se os devedores pleiteassem a recuperação judicial de modo autônomo.
Nesse caso, a fixação do valor e forma da remuneração do administrador judicial deverá observar, além da praxe de mercado, a capacidade de pagamento de todos os devedores em conjunto, bem como a complexidade do trabalho, que tende a ser maior quanto mais amplas forem a composição do polo ativo e a dimensão do grupo.
Já o limite máximo dessa remuneração corresponderá a 5% do montante total dos créditos sujeitos à recuperação judicial, computados uma única vez mesmo que mais de um devedor seja simultaneamente responsável pelo adimplemento da prestação, como se dá com relação às dívidas solidárias.
Além disso, parece importante que, ao arbitrar os honorários do administrador judicial num cenário de mera consolidação processual, o juiz também determine a parcela de responsabilidade de cada devedor por essa despesa, respectivamente ao montante das suas respectivas dívidas e às capacidades particulares de pagamento. À falta de previsão específica a esse respeito na LRF, aplica-se subsidiariamente a regra contida no artigo 87, § 1º, do CPC, que determina que o juiz distribua entre os litisconsortes, expressa e proporcionalmente, a responsabilidade pelo pagamento das despesas processuais.
A reforma operada pela lei 14.112/2020 deixou absolutamente claro que, nas recuperações judiciais ajuizadas em litisconsórcio, os devedores deverão ser tratados como pessoas jurídicas independentes, com respeito à separação dos seus respectivos patrimônios (LRF, art. 69-I, caput). A exceção fica por conta da consolidação substancial, que poderá ser excepcionalmente determinada pelo juiz quando a interconexão e confusão entre ativos e passivos dos devedores tornar impossível distinguir as respectivas esferas de imputação. Nesse caso, os ativos e passivos dos diferentes devedores serão tratados como se pertencessem a um único devedor, operando-se a ineficácia transitória da separação patrimonial para determinados fins do processo de recuperação judicial (LRF, art. 69-J, caput, e 69-K, caput).
Embora isto devesse ser óbvio, vale frisar que, sem expresso deferimento da consolidação substancial, os devedores não poderão ser tratados como se fossem uma só entidade, coisa que, a par de violar texto expresso da lei falimentar, contraria toda sorte de princípios e regras de direito societário, notadamente aquelas que disciplinam os grupos.
Como tudo isso posto por escrito pelo legislador, chega a ser impressionante que, mesmo em casos de enorme visibilidade, continue ocorrendo uma “consolidação substancial de fato”, com os devedores se apresentando e sendo tratados pelo juiz, pelo administrador judicial e até pelos próprios credores como se fossem uma só pessoa de patrimônio indiviso, tudo sem pedido tampouco decisão autorizado a medida excepcional prevista no art. 69-J da LRF. Devedores sob mera consolidação processual, por exemplo, insistem em violar o art. 69-I, § 1º, LRF ao apresentar planos de recuperação que não distinguem minimamente os passivos e as prestações individualmente assumidas por cada um deles, alguns dos quais, aliás, expressamente denominados de “plano unitário”, forma exclusivamente reservada ao cenário de consolidação substancial (LRF, art. 69-L, caput).
A consolidação substancial de fato também aparece, de certo modo, no arbitramento dos honorários do administrador judicial, invariavelmente realizado sem distinguir a parcela de responsabilidade de cada devedor sobre o seu custeio, novamente como se tratasse de um processo de recuperação ajuizado por um único devedor.
Nesse caso, se a distribuição da responsabilidade pelos honorários não for feita pelo juiz, todos os devedores responderão solidariamente por elas, conforme reza o § 2º do art. 87 do CPC, o que poderá resultar numa situação injusta em relação a determinados litisconsortes, seus acionistas e respectivos credores (especialmente porque, no caso de quebra, as respectivas massas falidas responderão, também solidariamente, pelo pagamento da remuneração do administrador judicial, que prefere a todos os créditos concursais).
Assim, num cenário de mera consolidação processual, se o juiz se omitir em discriminar a responsabilidade de cada litisconsorte pelos honorários do administrador judicial e demais despesas processuais, tanto os devedores quanto os credores poderão provocá-lo a realizar a devida divisão, de modo a evitar situações injustas, contrárias à independência jurídica e patrimonial dos devedores, expressamente resguarda pela lei (LRF, art. 69-I).
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1 Em regra, a nomeação do administrador judicial recai sobre profissionais ou pessoas jurídicas habilitados perante o juízo ou Tribunal, mas qualquer um que satisfaça os requisitos formais pode requerer sua habilitação, inclusive depois da nomeação. Não se trata, pois, de um quadro fechado.
2 Embora esse fato seja narrado por inúmeros doutrinadores, a exemplo de Carvalho de Mendonça (Tratado de Direito Comercial Brasileiro. 6 ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1960, p. 85) e Waldemar Ferreira (Instituições de direito comercial. São Paulo: Max Limonade, 1955, v. 5, p. 25), recente pesquisa realizada por Gilberto Gornati, que analisou diversas fontes do período, a exemplo de jornais e debates parlamentares, não encontrou referências a essa célebre expressão, levantando dúvidas sobre se, de fato, ela era empregada (O modo de produção das leis de falências e concordatas no Brasil (1850 – 1945). Tese de Doutorado. São Paulo: USP, 2023, p. 252).
3 Especialmente nas recuperações judiciais de grupos, é muito difícil estabelecer comparações seguras, haja vista as infinitas particularidades de cada caso.
4 Discricionariedade judicial. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 354, 2001. p. 188 e 190.
5 Muito embora, na prática, tenha havido casos de nomeação de dois administradores judiciais num mesmo processo, coisa que suscita uma série de outros questionamentos que não cabem nos limites destas linhas.