Novos Horizontes do Direito Privado

A venda de ativos na falência e na recuperação judicial: principais questões

A primeira observação a respeito do tema diz respeito às diferenças do regime de alienação dos ativos na falência e na recuperação judicial.

15/2/2023

A primeira observação a respeito do tema diz respeito às diferenças do regime de alienação dos ativos na falência e na recuperação judicial. Essa diferença decorre essencialmente de dois aspectos. Na recuperação judicial, o devedor continua na administração da sociedade (debtor in possession), que prossegue normalmente no desenvolvimento da sua atividade, enquanto na falência ocorre o afastamento do devedor das atividades da sociedade.  

O outro aspecto importante diz com a finalidade da alienação de ativos. Na recuperação judicial, a alienação de ativos é uma medida compreendida, entre outras, como meio de recuperação da sociedade em crise econômico-financeira, e que pode ocorrer por formas diferentes: (i) trespasse ou arrendamento de estabelecimento, inclusive à sociedade constituída pelos próprios empregados; (ii) dação em pagamento ou novação de dívidas do passivo, com ou sem constituição de garantia própria ou de terceiro; (iii) venda parcial dos bens; (iv) usufruto da empresa; (v) constituição de sociedade de propósito específico para adjudicar, em pagamento dos créditos, os ativos do devedor;  (vi) venda integral da devedora, desde que garantidas aos credores não submetidos ou não aderentes condições, no mínimo, equivalentes àquelas que teriam na falência, hipótese em que será, para todos os fins, considerada unidade produtiva isolada (art. 50 da lei 11.101/1005).

Na recuperação judicial a alienação de ativos visa preservar a empresa (e não o empresário, administrador, controlador, sócio e acionista), como atividade econômica, de modo que essa alienação não pode inviabilizar o desenvolvimento da empresa. Logo, não deve ser permitida a simples liquidação dos ativos (esvaziamento) para o pagamento de credores da recuperação, sabido que há outros credores do devedor e que não participam do processo de recuperação (extraconcursais). Essa “liquidação” só poderá ser admitida se preservados os interesses de todos os credores. Exatamente nesse sentido o art. 73, da LRF, estabeleceu que "o juiz decretará a falência durante o processo de recuperação judicial, quando identificado o esvaziamento patrimonial da devedora que implique liquidação substancial da empresa, em prejuízo de credores não sujeitos à recuperação judicial, inclusive as Fazendas Públicas" (inc. VI).

Na falência, a alienação de ativos é promovida com o propósito de pagar os credores. A lei acrescenta que a falência "é mecanismo de preservação de benefícios econômicos e sociais decorrentes da atividade empresarial, por meio da liquidação imediata do devedor e da rápida realocação útil de ativos na economia" (art. 75, LRF), mas prepondera, sem dúvida, o interesse na satisfação dos credores.

Para esse fim, a celeridade é uma imposição em favor do melhor resultado. Bem por isso determina o art. 139 da LRF que "logo após a arrecadação dos bens será iniciada a realização do ativo", independentemente de qualquer outra providência, inclusive a formação do quadro geral de credores. É que os ativos estão sujeitos à deterioração e depreciação, e além disso oneram a Massa com despesas de conservação.

Pode-se dizer que se aplica na realização de ativos os princípios da maximização dos ativos (obter o melhor resultado), da celeridade e da eficiência, sempre com a participação dos credores e a igualdade de tratamento (par conditio creditorum).

Ao apresentar o Plano de Recuperação Judicial, o devedor deve apontar os meios para superação da crise econômico-financeira (art. 53, LRF) e entre eles, como visto, está a alienação de ativos, que deve ser especificada para o fim de conhecimento dos credores, do Ministério Público e do Juiz. Não deve ser admitida a proposição genérica e abstrata, sem forma ou prazo definido.

Cabe anotar que, embora continue o devedor na administração da empresa, depois do pedido de recuperação judicial não é permitida a venda de ativos, salvo com autorização judicial (art. 66, LRF) ou previsão do plano de recuperação aprovado.

A venda de ativos encontra na LRF uma importante inovação, que é a alienação da própriaempresa1 (só permitida na falência e não na recuperação), ou parte dela (parte do negócio), com a venda de "unidades produtivas" isoladamente – UPI (arts. 60 e 140, inc. II). É uma tendência nos planos de recuperação.

Essa alienação "terá por objeto o conjunto de determinados bens necessários à operação rentável da unidade de produção, que poderá compreender a transferência de contratos específicos" (art. 140, § 3º).

Deve-se atentar, desde logo, para a natureza dessa alienação, que tem por objeto o conjunto de determinados bens, inclusive a transferência de contratos, tudo necessário à operação rentável da unidade. Não se cuida, portanto, da alienação de bens isolados, comum nos processos de simples liquidação, e que produz resultado sempre aquém do valor que pode ser alcançado quando os ativos, organizados, são alienados em conjunto. Todavia, o art. 60-A  da LRF estabeleceu que a UPI poderá abranger "direitos ou ativos de qualquer natureza", ainda que não tenham capacidade produtiva autônoma.

A crítica que já se fazia ao uso dessa designação (Unidade Produtiva Isolada – UPI) ganhou força com a nova disposição da Lei, que considera UPI ativos isolados que não têm capacidade produtiva autônoma. Até participações societárias podem ser alienadas (UPI).

Com a venda das unidades isoladas procura-se obter o melhor resultado para esses ativos, especialmente aqueles que são capazes de gerar resultados (aviamento, fundo de comércio, marca, parte das operações – valores intangíveis).

O objeto da alienação "estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor de qualquer natureza, incluídas, mas não exclusivamente, as de natureza ambiental, regulatória, administrativa, penal, anticorrupção, tributária e trabalhista" (art. 60, parágrafo único, LRF).

Essa questão relativa à sucessão do adquirente nas obrigações do devedor diz respeito ao que estabelece o Código Civil para o trespasse (art. 1.146, CC), e encontra disposições semelhantes nos arts. 10, 448, 448-A e  449, todos da CLT, e no art. 133 do CTN. Se fazia necessário, e assim ocorreu, que a LRF fosse muito clara ao assegurar ao adquirente de ativos nesses processos que não haverá sucessão nas obrigações do devedor.

Essa garantia de não sucessão nas obrigações sofre exceções quando o arrematante for I – sócio da sociedade falida, ou sociedade controlada pelo falido; II – parente, em linha reta ou colateral até o 4º (quarto) grau, consangüíneo ou afim, do falido ou de sócio da sociedade falida; ou III – identificado como agente do falido com o objetivo de fraudar a sucessão (art. 141, § 1°, LRF). São hipóteses de sucessão nas obrigações, e não de desfazimento das alienações, sendo certo que a venda de ativos na falência está protegida contra a ação de ineficácia ou a ação revocatória (art. 131, LRF).

Outra inovação importante introduzida pela lei 14.112/2020, que modifica o art. 142, inc. V, da LRF,  estabeleceu que a alienação de bens em geral poderá adotar "qualquer outra modalidade, desde que aprovada nos termos desta lei".

Acrescentou-se ao regime de realização de ativos o disposto no art. 144, que autoriza o juiz, havendo motivos justificados, mediante requerimento fundamentado do administrador judicial ou do Comitê, a adotar modalidades de alienação judicial diversas das previstas no art. 142 desta lei.

Esses dispositivos da Lei brasileira, mais do que outros, conferem uma margem de liberdade para a realização de ativos nos processos de recuperação judicial e de falência. Essa liberdade, é certo, não é absoluta, porquanto sujeita à deliberação dos credores, à fiscalização do Ministério Público e ao controle do juiz, ao qual a Lei concedeu o poder para autorizar outras modalidades de alienação, "havendo motivos justificados" e observados os princípios e demais disposições legais.2

Apesar da permissão legal para outras modalidades de alienação, normalmente ela ocorre por leilão. Não há mais na LRF diferença entre leilão e praça. Em terceira chamada a alienação poderá ocorrer por qualquer preço, porque não está sujeita à aplicação do conceito de preço vil (art. 142, § 2º, V, § 3º-A, inc. III, LRF).

Este conjunto de disposições procurou dar aplicação efetiva e celeridade à alienação de ativos, ponto que sempre foi crítico nos processos concursais.

Admitiu a LRF a impugnação de alienação de ativos por qualquer credor, pelo devedor e pelo Ministério Público (art. 143, "caput"), mas se acrescentou o cabimento da impugnação "baseada no valor da venda do bem", que deverá ser acompanhada de oferta firme do impugnante (art. 143, § 1°). Essa impugnação baseada no valor pode levar ao equivocado entendimento de que se abre uma nova oportunidade para fazer uma oferta superior àquela que se consagrou vencedora no processo de alienação, seja na modalidade do leilão ou outra. Para evitar esse oportunismo é necessário que a impugnação, ainda que se faça baseada no valor, com oferta maior, tenha fundamento em algum vício no processo de alienação. É certo que esse vício pode estar contido no próprio valor alcançado na alienação, quando se verifica importante diferença para o valor da oferta agora apresentada, o que revela alguma irregularidade na avaliação do ativo ou no processo de alienação.

Assegura-se na LRF a possibilidade de adjudicação de ativos pelos credores (art. 145) e, frustrada a tentativa de venda e não havendo proposta concreta dos credores para assumi-los, os bens poderão ser considerados sem valor de mercado e destinados à doação (art. 144-A).

Estas anotações bem evidenciam o esforço legislativo da última reforma da lei 11.101/2005, promovida pela lei 14.112/2020, para enfrentar o problema da alienação de ativos nos processos de recuperação judicial e de falência. São louváveis. Augura-se que esses novos dispositivos possam ser bem aplicados na prática desses processos.

___________

1 A "empresa" aqui é expressão utilizada com o sentido que lhe dá o art. 966, do Código Civil, como atividade econômica organizada e exercida profissionalmente para a produção ou circulação de bens ou de serviços.

2 É o caso de lembrar a venda com a participação do Stalking Horse, modalidade não prevista na LRF, mas que pode ser adotada, a respeito da qual já tivemos oportunidade de escrever nesta coluna (O Stalking Horse e os meios de recuperação judicial no Brasil).

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Coordenação

Carlos Alberto Garbi Pós-Doutor em Ciências Jurídico Empresariais pela UC - Universidade de Coimbra. Mestre e Doutor em Direito Civil pela PUC - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Professor de Direito Privado das FMU - Faculdades Metropolitanas Unidas. Vice-Presidente do Conselho do INBRADIM. Membro Acadêmico-Associado da ABDC - Academia Brasileira de Direito Civil. Diretor Nacional de Publicações da ADFAS - Associação de Direito de Famiília e das Sucessões. Advogado. Consultor. Parecerista.