É muito comum a dificuldade, não só de identificar, mas de aplicar corretamente o regime da responsabilidade civil contratual. Há geralmente a tendência de emprestar à responsabilidade contratual preceitos da responsabilidade extracontratual, nem sempre aplicáveis, e negar a autonomia das partes na antecipação e limitação de efeitos da responsabilidade, o que é próprio da responsabilidade contratual que se caracteriza pela previsão do dano. Ocorre, também, alguma dúvida sobre a implicação da conduta da vítima no campo da responsabilidade contratual. Pretendemos trazer nesta oportunidade algumas anotações sobre aspectos dessa simbiose, que ocorre nos regimes da responsabilidade civil, e salientar as suas diferenças.
A responsabilidade civil se fundou na ideia de ato ilícito e de culpa lato sensu. É a responsabilidade subjetiva que recebemos no direito brasileiro por influência do Code de Napoleão. A vítima está incumbida, neste caso, de demonstrar o ilícito e a culpa ou dolo do agente causador do dano para obter a respectiva reparação.
A partir da observação de que em certas situações a vítima enfrenta enorme dificuldade para produzir a prova da culpa, teve início uma mudança importante no entendimento da responsabilidade civil, verificada a partir do final do Século XIX1, voltando-se a atenção menos para o agente e mais para o dano. A hipótese de responsabilidade por acidente de trabalho foi precursora dessa mudança. Progressivamente se passou a admitir hipóteses de presunção de culpa e depois se avançou para hipóteses de responsabilidade pelo risco da atividade ou “responsabilidade sem culpa”, surgindo os lineamentos da responsabilidade objetiva, que pressupõe o exercício de uma atividade, o dano e o nexo de causalidade. Torna-se, nesses casos, irrelevante a culpa, porque dispensada (prescinde-se) a vítima de fazer a sua prova, e se dá atenção maior ao risco.2
Não foi eliminada ou substituída a responsabilidade subjetiva, que continua a orientar a responsabilidade civil. O risco e a culpa consistem em duas fontes de responsabilidade que, embora distintas, convivem em nosso direito. A responsabilidade subjetiva se mostra mais adequada nas relações interindividuais, reservando-se a responsabilidade objetiva às hipóteses previamente definidas na lei, motivadas, quase sempre, pela diferente posição de forças em que se encontram as partes envolvidas. Não é por outra razão que se fala na responsabilidade objetiva como responsabilidade ex lege.
A responsabilidade objetiva é adequada, e desde o início foi pensada, para as situações de desequilíbrio na relação das partes, como ocorre nas relações de consumo, ou em situações de elevado risco, e que alcançam vítimas que não podem evitar o dano, como na exploração de atividades perigosas (nuclear, petróleo, transporte aéreo etc.). Por isso ela vem definida em lei, porque a parte mais fraca na relação não tem poder para impor ou negociar condições de responsabilidade, ou porque à vítima não foi dado prever o evento ou interferir na sua ocorrência.
O Código Civil de 2002 estabeleceu uma cláusula geral de responsabilidade objetiva no art. 927, par. único, para as atividades de risco. É o risco criado ou o risco proveito, conforme a doutrina, mas não é o risco comum e naturalmente existente em toda atividade. É o risco que assume maior potencial lesivo, desde que decorrente da atividade. O Código Civil nesse ponto não considerou, ao menos expressamente, a natureza da relação entre as partes para definir a aplicação da responsabilidade objetiva, especialmente nos casos em que há assimetria de forças nesta relação. Não quer dizer que essa consideração não deve ser feita no caso concreto para a definição da responsabilidade.
A responsabilidade objetiva é excluída quando não há nexo de causalidade entre o dano e a atividade. Essa relação causal não ocorre quando se verifica o fato exclusivo da vítima, ou o fato de terceiro, ou quando se está diante do fortuito ou da força maior. Também não pode deixar de ser considerada a repartição de responsabilidades quando se verifica a hipótese de concorrência para o resultado em razão do comportamento da vítima, situação que igualmente interfere no nexo de causalidade.
Seguindo a doutrina clássica, quando o dano decorre do ilícito contratual, caracterizado pela violação ao dever convencionado, ou propriamente pelo inadimplemento da obrigação contratada, estamos diante da responsabilidade contratual. Em qualquer outro caso de ilícito, a responsabilidade é extracontratual, aplicando-se, como regra, o art. 186 do Código Civil. Na responsabilidade extracontratual o agente infringe a um dever legal, porque não existe nenhum vínculo jurídico (relação jurídica) entre a vítima e o agente antes do evento, enquanto na responsabilidade contratual o agente ofende a um dever contratual – é inadimplente em relação a uma obrigação contratada. O vínculo, ou a relação jurídica, no caso de responsabilidade contratual é preexistente. Essa distinção tem enorme interesse no campo da responsabilidade, visto que opera sobre a previsibilidade do dano e, consequentemente, sobre as antecipações dos contratantes a respeito da composição da reparação, sujeita a limitações e condições que as partes podem estabelecer.
Essa concepção clássica, no sentido de que a responsabilidade contratual decorre da violação do contrato, já não se mostra suficiente e passa a dar lugar a outra forma de ver a responsabilidade contratual. É que os deveres de conduta, eventualmente violados, como pressuposto da responsabilidade em geral, não encontram sua fonte tão claramente definida e apartada entre: a) a Lei (como norma geral de conduta) e ; b) o contrato ou negócio jurídico, fruto do exercício da autonomia privada.
Diante da crescente intervenção do Estado nas relações privadas, mesmo nos chamados contratos paritários, há deveres de conduta que não foram contratados expressamente, mas existem na relação jurídica contratual, como é o caso do dever de boa-fé objetiva e todos os seus desdobramentos.
A partir dessa observação é fácil chegar ao entendimento de que a distinção entre a responsabilidade contratual e a responsabilidade extracontratual não está situada na fonte do dever violado, mas sim na preexistente relação jurídica e no fato de que o dano tem origem nessa relação.3
Logo, “se o parâmetro distintivo entre as duas categorias de responsabilidade já não é a fonte do dever, mas a preexistente relação jurídica, é possível que a violação de deveres de conduta impostos pela boa-fé objetiva conduza ora à responsabilidade contratual, ora à extracontratual. Quando os deveres são impostos no âmbito da relação estabelecida por um contrato ou outra espécie de negócio jurídico, os danos resultantes dessa violação devem ser tutelados por meio da responsabilidade contratual; do contrário, quando os deveres decorrem apenas de um contato social qualificado entre as partes, incidem as regras da responsabilidade extracontratual, a exemplo do que se passa no rompimento injustificado das tratativas.”4
A responsabilidade extracontratual está disciplinada mais amplamente nos arts. 186/188 e 927, todos do Código Civil. A responsabilidade contratual está indicada nos arts. 389 (e segs.) e 395 (e seg.) do Código Civil. Embora clara a distinção, não se encontra no Código Civil, quando se cuida dos atos ilícitos, diferença de tratamento (ver a respeito os arts. 186 a 188, 927 e seg. e 944 e seg.), talvez porque foi influenciado de alguma forma pela doutrina unitária ou monista, que não vê efeitos diferentes decorrentes do ilícito, seja ele contratual ou seja ele extracontratual. O que é necessário para a responsabilidade, de acordo com a posição unitária ou monista, são: o dano, o ilícito e a causalidade. Não importa (é indiferente) para essa posição a relação existente ou preexistente entre as partes.
Não obstante a dubiedade assumida pelo Código Civil no tratamento da responsabilidade contratual e extracontratual, há evidente distinção de efeitos e de função no campo da respectiva responsabilidade.
Esclarece o jurista italiano CESARE SALVI, que a função da responsabilidade contratual é sempre a proteção contra um risco específico de dano, aquele criado pela relação particular que havia sido previamente estabelecida entre dois sujeitos, enquanto na responsabilidade extracontratual o surgimento da relação intersubjetiva é posterior ao julgamento da injustiça do dano. A referência à obrigação preexistente é, portanto, válida, na primeira figura, para identificar o responsável, qualificar o dano como injusto e determinar o conteúdo da obrigação de reparação; operações que, por outro lado, na responsabilidade aquiliana, devem encontrar sua base em outro fundamento. Em outras palavras, uma vez abandonada a reconstrução de ambas as figuras de responsabilidade em torno do esquema do ilícito, emerge uma diversidade de estrutura e funções, correspondente ao caráter, do Instituto Aquiliano, de ordenamento dos casos em que o contato social ocorre fora de um 'projeto' anterior entre as partes. A qualificação ex post do facto abrange assim toda a sua dimensão, abrindo ao juízo de responsabilidade espaços sempre novos, e alheios à outra figura, em que a obrigação de indenização surge sempre como especificação de uma obrigação preexistente. A tutela que se entende satisfatória em via de interesse especificamente deduzido da relação obrigatória existente entre as partes, não é adequada ao problema que o ordenamento afronta na reação ao dano injusto no campo da responsabilidade aquiliana, na qual a imprevisibilidade do dano se mostra relevante em sede de juízo de responsabilidade, segundo os diversos critérios de imputação (dolo, culpa e prova liberatória do caso fortuito).5
Há no direito italiano, inclusive, previsão expressa no Codice Civile no sentido da limitação da responsabilidade (contratual) à reparação do dano, que poderia ter sido previsto quando se constituiu a obrigação, como limite do dano ressarcível (art. 1225).6 É uma indicação segura da natureza diversa da responsabilidade contratual e do regime jurídico distinto a ser observado. Em outras palavras, admite-se naturalmente no campo da responsabilidade contratual a limitação ou repartição dos riscos e responsabilidades, exatamente porque as partes podem se antecipar (previsibilidade), o que não se verifica na responsabilidade extracontratual.
Na responsabilidade contratual deve a vítima fazer a prova (tem o ônus) de que a obrigação (o contrato) não foi cumprida. Não tem o ônus de provar a culpa, como ocorre na responsabilidade extracontratual. A culpa na responsabilidade contratual também é considerada, mas de forma diferente, pois obedece, como anota CARLOS ROBERTO GONÇALVES, a um certo escalonamento, de conformidade com os diferentes casos em que ela se configure, ao passo que na delitual, ela iria mais longe, alcançando a falta ligeiríssima.7 Acrescentamos, de nossa parte, que essa distinção aproxima a responsabilidade contratual do regime próprio da responsabilidade objetiva, quando liberada a vítima do ônus da prova da culpa. Cabe bem lembrar nesse ponto, com a doutrina de GAETANO ANNUNZIATA, que a chave de todo o problema da responsabilidade civil não é apenas dar uma definição sistemática do conceito de responsabilidade civil nas várias hipóteses, mas também delinear com precisão o regime probatório.8
A dificuldade que possa apresentar, ou a existência de uma zona cinzenta, a respeito da natureza da responsabilidade (contratual ou extracontratual), como adverte GUIDO ALPA, não autoriza a tomar partido pela solução mais drástica (e simplista), isto é, pela equiparação, ou pior, pela identificação entre os dois tipos diversos de responsabilidade.9 Acrescentamos que essa dificuldade não justifica aplicar um regime jurídico de responsabilidade pelo outro.
Portanto, a despeito das possíveis aproximações, há importantes diferenças no regime jurídico aplicável quando a responsabilidade é contratual ou quando a responsabilidade é extracontratual, tanto a respeito do próprio ilícito, como da imputação e da reparação, ressaltando-se o espaço para o exercício da autonomia privada nas chamadas “antecipações” e “limitações”, que são naturalmente lícitas às partes no campo da responsabilidade contratual.
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1 É comum na doutrina a indicação, como precursora dessa mudança, da famosa obra do francês RAYMOND SALEILLES (Les acidentes du travail et la responsabilité civile, de 1897).
2 A respeito desta evolução consultar, por todos, WILSON MELO DA SILVA (Responsabilidade sem culpa. 2ª ed. São Paulo : Saraiva, 1974).
3 Nesse sentido a doutrina de GUSTAVO TEPEDINO, ALINE DE MIRANDA VALVERDE TERRA e GISELA SAMPAIO DA CRUZ GUEDES: “A distinção entre responsabilidade contratual e extracontratual deixa, assim, de tomar por base a fonte do dever violado – autonomia privada ou lei, respectivamente –, e passa a se assentar na preexistência de relação contratual válida entre as partes, bem como no fato de o dano resultar do descumprimento de dever oriundo daquele vínculo, independentemente de este dever decorrer de fonte autônoma ou heterônoma. O traço característico da responsabilidade civil contratual reside, por conseguinte, na aproximação peculiar, prévia à ocorrência do dano, entre a vítima e o agente causador da lesão, consubstanciada na relação contratual em cujo bojo se dá a infração geradora do dever de indenizar.” (Fundamentos do direito civil: responsabilidade civil. 2. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 12)
4 Op. cit., p. 12.
5 La responsabilità civile. Trattato di Diritto Privato a cura di Giovanni Iudica e Paolo Zatti. Milano : Giuffrè. Seconda Edizione, p. 14-15.
6 Está disposto no referido dispositivo: “Art. 1225. Prevedibilità del danno. Se l'inadempimento o il ritardo non dipende da dolo del debitore, il risarcimento è limitato al danno che poteva prevedersi nel tempo in cui è sorta l'obbligazione.” (em tradução livre: Art. 1225. Previsibilidade do dano. Se o incumprimento ou o atraso não depender do dolo do devedor, o ressarcimento é limitado ao dano que poderia ter sido previsto quando surgiu a obrigação.)
7 CARLOS ROBERTO GONÇALVES. Responsabilidade Civil.(20ª edição). Editora Saraiva, 2021, p. 31.
8 Le nuove fronteire dela responsabilità civile. Milano : Giuffrè Editore, 2.016, p. 20.
9 GUIDO ALPA. La responsabilità civile : principi. Milano : UTET Giuridica, 2015, p. 32.