O modelo privatista de tratamento da insolvência empresarial, adotado pela lei 11.101/05, como é sabido, recebeu forte influência do direito norte-americano. Essa influência também é sentida na elaboração dos planos de recuperação judicial e de reorganização de empresas em dificuldades (crise econômico-financeira), que frequentemente aproveitam as experiências norte-americanas bem-sucedidas. É o que justifica o aparecimento no Brasil, nos planos de recuperação, da figura, pouco conhecida, do Stalking Horse, uma expressão que significa, na origem, uma tática usada na caça em que um caçador se esconde atrás de uma imagem de um cavalo para se aproximar de seu alvo. Na prática dos negócios de alienação de empresas em dificuldades, o devedor usa o Stalking Horse para estimular o processo de licitação e atrair outros interessados na compra.
De acordo com expressa previsão do art. 50, da lei 11.101/05, constituem meios de recuperação judicial, a “venda parcial dos bens” (inc. XI). A venda de ativos, para o fim de satisfazer os créditos e dar cumprimento ao plano de recuperação, encontra na lei 11.101/05 uma importante inovação, que é a alienação da empresa1, com a venda de suas “unidades produtivas” isoladamente (arts. 60 e 140, inc. II).
Essa alienação “terá por objeto o conjunto de determinados bens necessários à operação rentável da unidade de produção, que poderá compreender a transferência de contratos específicos” (art. 140, § 3º).
Atenta-se, desde logo, para a natureza dessa alienação, que tem por objeto o conjunto de determinados bens, inclusive a transferência de contratos, tudo necessário à operação rentável da unidade. Não se cuida, portanto, da alienação de bens isolados, comum nas liquidações.
O objeto da alienação, neste caso, “estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor, inclusive as de natureza tributária, as derivadas da legislação do trabalho e as decorrentes de acidentes de trabalho” (art. 141, inc. II).
Se o plano de recuperação judicial aprovado envolver a alienação judicial de filiais ou de unidades produtivas isoladas do devedor, estabelece o art. 60, “o juiz ordenará a sua realização, observado o disposto no art. 142 desta lei”.
Com a redação que lhe deu a lei 14.112/20, o art. 142 da lei 11.101/05 autorizou, para a alienação de bens em geral, o uso de “qualquer modalidade, desde que aprovada nos termos desta lei” (inc. V). Acrescentou ao regime de realização de ativos o disposto no art. 144, in verbis: “Havendo motivos justificados, o juiz poderá autorizar, mediante requerimento fundamentado do administrador judicial ou do Comitê, modalidades de alienação judicial diversas das previstas no art. 142 desta lei.”
Esses dispositivos da lei brasileira, mais do que outros, conferem uma margem de liberdade para à realização de ativos nos processos de recuperação judicial e de falência. Essa liberdade, é certo, não é absoluta, porquanto sujeita à deliberação dos credores, à fiscalização do Ministério Público e ao controle do juiz, ao qual a lei concedeu o poder de autorizar outras modalidades de alienação, “havendo motivos justificados” e observados os princípios e demais disposições legais.
O conhecido Chapter 11, do Bankruptcy (capítulo 11 do Código de Insolvência Americano), que regula a reestruturação das empresas norte-americanas em dificuldades, admite, e tem sido uma tendência, a possibilidade de venda da empresa, ou de uma parte dela, para organizar o pagamento dos credores e recuperar a empresa2. A venda de ativos desta natureza (parte do negócio ou UPI, como é designada pela lei brasileira) segue a seção 363, do Bankruptcy, que prevê a possibilidade da venda de uma parte do negócio do devedor, ou até mesmo de todo o negócio, mediante procedimentos de licitação que podem estar vinculados à existência do Stalking Horse, que é uma parte que se comprometeu a comprar os ativos a um preço certo, se nenhuma outra proposta melhor for oferecida.
Este procedimento de alienação da empresa ou parte do negócio, na experiência norte-americana, geralmente envolve um acordo para a venda a um Stalking Horse. Esse licitante, sob a supervisão do Tribunal, assegura um preço mínimo para aquele ativo e se sujeita a ser vencido no procedimento de licitação, se outro oferecer mais do que ele e não lhe for possível cobrir a oferta. A sua presença no procedimento de licitação atrai outros concorrentes e incentiva uma disputa que certamente elevará o preço do ativo, beneficiando o devedor e os credores. O Stalking Horse deverá ter, claro, compensações, porque promoveu diligências, assumiu riscos e negociou com o devedor uma oferta firme e vinculante, que acaba por constituir o preço mínimo no procedimento de licitação. A compensação mais significativa para ele é a garantia de que poderá cobrir a oferta maior, se ocorrer. Não fosse essa garantia, o Stalking Horse não estaria disposto a correr riscos, com dispêndio de dinheiro e tempo, quando tudo poderia ser perdido por um lance mais alto.
É comum, também, estabelecer em favor do Stalking Horse, uma “taxa de rescisão” (break up fee), para o caso de ficar vencido na licitação. Essa taxa tem sido justificada pelo tempo e esforço que se lhe exigiu, assim como pelas despesas e riscos que assumiu, ao lado da efetiva vantagem que promove em benefício do devedor e o conjunto de credores ao induzir a licitação e elevar o preço, ou seja, essa taxa “deve fazer sentido” para todos os envolvidos, deve ser justificada e proporcional aos benefícios econômicos obtidos.
A procura de um Stalking Horse é uma tentativa do devedor de testar o mercado antes de um leilão ou leilão reverso. A intenção é maximizar o valor de seus ativos.
Há um outro lado, não menos relevante, da participação do Stalking Horse no procedimento de venda de ativos em processos de insolvência, voltado para a garantia de um preço mínimo justo. É que o leilão, em terceira chamada, de acordo com a lei brasileira, admite a alienação por qualquer preço (art. 142, § 3º, III), o que, somado ao fato de que são ativos em situação de dificuldade – distressed assets – que levam adquirentes a estimar o seu valor muito baixo (por assimetria informacional, visto que os adquirentes não sabem tanto quanto os vendedores dos defeitos, mas especialmente das virtudes dos ativos), a garantia de um preço mínimo elevado e ajustado previamente, proporciona o melhor resultado na realização desses ativos.
É necessário lembrar que o devedor, em processo de recuperação judicial, ao contrário do que ocorre na falência, continua na plena administração da empresa (debtor in possession), consoante expressa previsão legal (art. 64 da LRF). Logo, o devedor pode procurar (e certamente o terá feito) um adquirente possível para uma parte do seu negócio (UPI), quando essa alienação constitui um meio eleito para a recuperação da empresa, e negociar com ele as condições do chamado negócio de Stalking Horse.
Não há nenhum impedimento legal ao devedor, no direito brasileiro, para este ajuste privado, promovido com ampla liberdade, sem se sujeitar a condições prévias ou se vincular ao interesse de qualquer credor. Presume-se que o devedor atua, com a liberdade que lhe confere os poderes de administração, guiado pelo interesse na recuperação da empresa, visando o melhor resultado na alienação do ativo. E a última palavra, em abono e confirmação de que agiu bem em favor dos seus interesses e igualmente dos interesses dos credores, será dada pela assembleia geral de credores. Qualquer favorecimento ao terceiro – Stalking Horse – poderá ser identificado como conluio ou fraude, e reprimido pelos credores em assembleia e pela ação do Juiz da recuperação.
Não é esta excepcional situação de fraude que deve pautar o exame desse modelo de alienação, colocando-o, somente pela diferente natureza que tem e a proximidade que estabelece entre o Stalking Horse e o devedor, em permanente suspeição. É natural que se estabeleçam compensações em favor do Stalking Horse, porque não sendo assim não haveria incentivo algum à sua participação. As compensações em favor do Stalking Horse não podem ser vistas como “favorecimento”, porque representam a contrapartida dos benefícios que a sua atuação proporciona ao devedor e ao conjunto de credores, para não dizer da preservação da empresa. O que é necessário examinar, objetivamente, é a licitude das condições e a sua aprovação pelos credores, como meio de recuperação da empresa.
No Brasil, a alienação judicial de ativos com a participação do Stalking Horse foi aplicada em vários processos de recuperação judicial, com aprovação judicial e confirmação dos Tribunais. Esse modelo foi apresentado, de forma pioneira, na recuperação judicial da OAS. Embora não se tivesse feito expressa referência ao Stalking Horse, a alienação da UPI mais valiosa do Grupo OAS – a INVEPAR – foi proposta, antes da apresentação e aprovação do Plano de Recuperação, juntamente com o DIP FINANCING, oferecido pelo Grupo Brooksfield, que se apresentava como Stalking Horse, com preferência na alienação judicial da UPI pelo direito de cobrir a oferta maior e compensação (break up fee). O negócio foi admitido pelo Juiz da recuperação e depois confirmado por decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, por Acórdão que relatei quando integrava a 2ª câmara reservada de Direito Empresarial (AI. 2152879-36.2015.8.26.0000, dj. 17/2/16).
No caso do Grupo ABENGOA, cuja recuperação judicial ocorreu perante a Justiça do Rio de Janeiro, também se apresentou o Stalking Horse para a compra da UPI OPERACIONAL. A proposta firme da adquirente fora levada, junto com o Plano de Recuperação Judicial, à aprovação da Assembleia Geral de Credores e do Juiz. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro confirmou o negócio e as suas condições (AI 0005568-65.2018.8.19.0000, dj. 22/5/18).
Outros casos de participação do Stalking Horse no Brasil podem ser lembrados: RJ 1125658-81.2018.8.26.0100 (Avianca); RJ 0203711-65.2016.8.19.0001 (Grupo Oi); RJ 1001533-07.2019.8.26.0100 (Nova Vida); RJ 1103257-54.2019.8.26.0100 (Renova Energia); RJ 1077065-21.2018.8.26.0100 (Libra); RJ 5052498-75.2020.8.24.0023 (Transportes Biguaçu); RJ 1069420-76.2017.8.26.0100 (UTC Participações).
O Tribunal de Justiça de São Paulo julgou recentemente outro caso (Grupo Estre) em que se impugnava a participação e o próprio negócio de Stalking Horse. Este julgamento é, de certa forma, um marco importante na jurisprudência, tendo em vista o exame direto desse modelo de alienação de ativos na recuperação judicial e a aprovação da taxa de rescisão (break up fee), destacando-se da decisão, nesse ponto, o seguinte: “Ainda que se possa considerar o valor da “break-up fee” um pouco acima dos padrões ordinários (6,5% do valor do lance), a fixação da verba neste patamar não constitui, per se, ilegalidade, sendo, portanto, prerrogativa exclusiva da Assembleia Geral de Credores sua fixação no patamar apropriado ao fim que se destina.” (AI 2230472-34.2021.8.26.0000, rel. Des. J.B. FRANCO DE GODOI, dj. 30/3/22).
Este modelo de alienação, que também é muito utilizado em fusões e incorporações, está de acordo com a lei brasileira e pode ser utilizado com enorme vantagem como meio de recuperação da empresa. A palavra final deve sempre ser dos credores, que têm a soberana decisão sobre o plano de recuperação da empresa.
1 A “empresa” aqui é expressão utilizada com o sentido que lhe dá o art. 966, do Código Civil, como atividade econômica organizada e exercida profissionalmente para a produção ou circulação de bens ou de serviços.
2 Essa tendência é bem apontada em publicação do American Bankruptcy Institute – 39th Annual – Lawrence P. King and Charles Seligson Workshop on Bankruptcy & Businnes Reorganization (September 19-19, 2013- NYU School of Law -New York (acesso aqui). Essa tendência também pode ser confirmada no artigo de Juanita Schwartzkopf (Breaking Down the Role of a Stalking Horse Bidder) publicado pela abfjournal, uma revista independente de finanças comerciais, focada nos setores de empréstimos e na gestão de recuperação (acesso aqui).