O trust não é regulado por lei no Brasil. Registra-se a iniciativa legislativa do PL 4.809/98, de autoria do Deputado José Chaves, que não teve prosseguimento, e, mais recentemente, o PL 4.758/2020, de autoria do Deputado Enrico Misasi, que dispõe sobre a "fidúcia", em tramitação na Câmara dos Deputados.
Na esfera do direito internacional, a Conferência de Haia de Direito Privado (HccH), que já editou mais de 30 convenções internacionais, editou uma específica para o trust. Apesar do Brasil não ser signatário, a Convenção de Haia – “Convenção sobre a lei aplicável ao trust e ao seu reconhecimento”, assinada em 1º de julho de 1985, com entrada em vigor em 1º de janeiro de 1992, busca regular, justamente, o reconhecimento do trust por países que não são de origem da common law.
O relatório da mencionada convenção deixa claro seu objeto, que se limita a harmonizar os sistemas da common law e o direito romano-germânico, tudo, para que se possa reconhecer e dar o devido tratamento ao trust constituído no estrangeiro. Apesar da referida Convenção, a natureza jurídica do trust ainda é incerta, sendo muito comum o recurso à analogia.
Alguns sustentam que o trust poderia eventualmente se assemelhar a um contrato, opinião com a qual discordamos. O beneficiário no trust não participa da declaração de vontade, o que representaria conflito com o princípio da relatividade dos contratos. Ademais, em geral, nos contratos as partes adquirem certa vantagem na transação, enquanto no trust, normalmente o trustee nada recebe e o beneficiário é “voluntário” na relação jurídica.
Não há que se confundir o trust, também, com a figura do mandato. O trustee não é um representante do settlor ou do beneficiário. A representação nasce de comum acordo entre as partes, enquanto no trust não se exige concordância do trustee para se estabelecer a relação jurídica. O mandatário, ainda, não se torna proprietário da coisa, como ocorre no trust.
Outros defendem que o trust se aproxima do fideicomisso. Apesar da existência de pontos em comum, entendemos que também não é possível fazer essa aproximação. O Settlor e o fideicomitente transmitem a outrem determinado bem (trustee e fiduciário), com o encargo de retransmitir a propriedade desse bem a outra pessoa (beneficiário e fideicomissário). Porém, os poderes que cada uma dessas figuras detém é diferente, sendo certo que no trust eles são muito mais amplos. Existem ainda outras tantas diferenças que se notam no regime próprio de cada instituto, como renúncia da herança, eventual caducidade do direito, falecimento que encerra o direito do fiduciário, o destino destes bens, poder de alienação, e outras.
Buscar a acomodação do trust no sistema da civil law é questão que enseja peculiar reflexão. Neste sentido, MELHIM NAMEM CHALHUB: “Sob a perspectiva da civil law, é extremamente difícil, senão impossível, ajustar o instituto dentro de uma das grandes categorias dos sistemas de origem romana, não obstante a abrangência dessas categorias; de plano, deve ser afastada a comparação com a fidúcia, pois esta tem natureza contratual, enquanto a doutrina majoritária do direito anglo-americano classifica o trust como instituto do direito das coisas. De outra parte, os próprios autores do direito anglo-saxão revelam ser difícil fixar-se uma definição satisfatória para o trust e, consequentemente, sua natureza jurídica. [...] A estrutura desse instituto é extremamente complexa, circunstância que, segundo René David, torna quase impossível precisar-lhe a natureza jurídica, ou torna absolutamente dispensável a determinação de sua natureza jurídica, porque, na verdade, o que conta é o conteúdo dos estates de cada um dos figurantes da relação jurídica desse instituto, especialmente o cestui que trust”.1
Passamos nossa atenção, agora, ao exame do trust pelos tribunais. Vale destacar a dificuldade em localizar decisões sobre o tema. Há muitas empresas e sociedade empresárias que cunham a expressão “trust” na sua razão social ou nome fantasia, o que também representa uma dificuldade.
De toda forma, de acordo com os julgados selecionados percebe-se singela tendência de se interpretar o trust de acordo com as regras do ordenamento jurídico brasileiro, desde que não exista qualquer violação a preceitos de ordem pública, inexistindo, portanto, a princípio, motivos para se rejeitar o trust realizado.
Foi submetido à apreciação da 3ª Câmara de Direito Privado, do Tribunal de Justiça de São Paulo, em Agravo de Instrumento nº 2150482-38.2014.8.26.000, de relatoria do Desembargador CARLOS ALBERTO DE SALLES, a questão da sobrepartilha de saldo em conta bancária no exterior, constituída através de trust. O litígio se estabeleceu entre o ascendente e cônjuge do falecido. A mãe do de cujus requereu a sobrepartilha dos respectivos valores, que se encontravam numa conta bancária constituída em trust para beneficiar a esposa (viúva). O eminente Desembargador ponderou que não se tratava de analisar a aplicabilidade de lei estrangeira ou não, ou ainda, a existência do trust no Brasil, mas sim, de compreender o ato jurídico praticado pelo autor da herança, sob a ótica do ordenamento jurídico brasileiro. Desta forma, ao verificar os valores que existiam na conta bancária estrangeira (US$ 35.000,00), ponderou que eles não ultrapassavam a parcela disponível da legítima, e, portanto, o autor da herança poderia dispor daqueles valores.
Neste caso, portanto, foi interpretado como mera doação, em vida, que não apresentaria qualquer vício de validade, pois, teria sido respeitado os preceitos de ordem pública e as regras sucessórias do direito civil, ou seja, a reserva da legal da legítima (art. 1.846, do Código Civil).
Outro caso interessante foi relatado pelo Desembargador RUI CASCALDI, da 1ª Câmara de Direito Privado, no agravo de instrumento nº 2076494-42.2018.8.26.0000, do Tribunal de Justiça Bandeirante. Trata-se de inventário que não contemplou bens do de cujus localizados em território estrangeiro. A autora da herança detinha 100% da empresa Flowstone Investments Ltd., em trust administrado pela Morgan Stanley Private Wealth Management. O ativo, avaliado em valor superior a 2 milhões de reais, estava localizado nas Ilhas Virgens Britânicas e constava da declaração de imposto de renda do de cujus. Os herdeiros, inconformados com a decisão de primeira instância que retirou o ativo da partilha, com base em interpretação do art. 23, do Código de Processo Civil, interpuseram o recurso de agravo de instrumento. Entendiam que o art. 10, da LINDB, autorizava a sua inclusão, isto porque, prevê o mencionado dispositivo que “a sucessão por morte ou por ausência obedece à lei do país em que domiciliado o defunto ou o desaparecido, qualquer que seja a natureza e a situação dos bens”. No entanto, a interpretação a contrario sensu do art. 23, II, do Código de Processo Civil (correspondente ao antigo art. 89, II, do CPC/73), conforme destacou o desembargador relator, impede a contemplação de bens e direitos situados no exterior, vez que o texto legal dispõe que a jurisdição brasileira possui competência exclusiva para os bens aqui localizados, ainda que pertencente a pessoa domiciliada em país estrangeiro. Assim, existindo bens localizados em países estrangeiros, o respectivo inventário deverá ser proposto no país onde localizados. É o que a doutrina e a jurisprudência convencionaram denominar de princípio da pluralidade dos juízos sucessórios.
Desta forma, mesmo se o bem constar na declaração do imposto de renda, se localizado no exterior, a justiça de São Paulo entendeu pela impossibilidade do bem ser inventariado no Brasil, e vice-versa, pois caso o autor da herança falecer no estrangeiro e naquele país for aberto o inventário, e existam bens no Brasil, o respectivo inventário deste patrimônio terá que ser aberto no território nacional.
Esta interpretação representa verdadeira preocupação para aqueles que desejam constituir trust no estrangeiro, pois para o direito das sucessões, se confirmada a orientação esposada no julgado comentado, o respectivo inventário terá de ser proposto no local dos bens.
Não obstante os casos acima, relacionados diretamente ao direito das sucessões, de extrema relevância tratarmos aqui do Recurso Especial nº 1.438.142/SP, do Superior Tribunal de Justiça, de relatoria do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Cito o julgado, pois entendo ser de extrema importância para compreender a tendência que os tribunais darão a matéria do trust.
O autor da ação, uma concessionária de rodovia estadual, celebrou contrato de financiamento com o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), que seria pago através das receitas oriundas das praças de pedágio. Para conferir maior garantia ao negócio, foi pactuado que as receitas do pedágio seriam depositadas num banco interveniente, que administraria essas receitas e faria os devidos repasses para amortizar o referido financiamento realizado. Para concretizar esta sistemática, foi realizado um “contrato” de trust. Portanto, os valores da concessionária de rodovias adquiridos com o pedágio eram depositados no banco interveniente, para que administrasse os valores e fizesse os devidos pagamentos ao BNDES.
Importante registrar que não foi realizado propriamente um “contrato de trust”. É que, no contrato celebrado entre as partes, constou em uma de suas cláusulas, que o banco interveniente faria o papel de “trustee”.
Durante a execução deste contrato, no entanto, sobreveio a falência do banco interveniente, tendo sido arrecadado todos os depósitos provenientes do pedágio em favor da massa falida. Diante deste fato, a concessionária buscou a restituição dos valores, o que foi negado, ensejando diversos recursos até chegar à apreciação do STJ.
A defesa jurídica da concessionária, além de perquirir pela própria natureza do instituto do trust, traz outros argumentos interessantes. O art. 119, inciso IX, da lei 11.101/2005, prevê, em linhas gerais, que na hipótese de existir patrimônio de afetação, este deverá permanecer separado da massa falida, e em complemento, também se alegou a aplicação da Súmula 417/STF: “Pode ser objeto de restituição, na falência, dinheiro em poder do falido, recebido em nome de outrem, ou do qual, por lei ou contrato, não tivesse ele a disponibilidade”.
Especificamente em relação ao patrimônio de afetação, entendeu o STJ pela aplicação do art. 789, do Código de Processo Civil (antigo art. 591, do CPC/73), que trata de previsão em que o devedor responderá com todo o seu patrimônio pelo cumprimento de suas obrigações, salvo “as restrições estabelecidas em lei”.
Vale mencionar alguns exemplos de patrimônios de afetação atualmente previstos na legislação brasileira: sistema de consórcio (Lei n. 11.795/08); sistema brasileiro de pagamento (lei 10.214/01) e o depósito centralizado de ativos financeiros e valores mobiliários (lei 12.810/13).
No caso concreto, o patrimônio de afetação resultaria de trust, que não possui qualquer previsão legislativa. Ainda que exista a já mencionada Convenção de Haia, lembramos novamente que o Brasil não é seu signatário. Assim, não há amparo legal para se reconhecer o patrimônio de afetação constituído em trust.
Com esta premissa, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que a receita das praças de pedágio, por estarem na titularidade do banco interveniente por força do contrato celebrado, passou a integrar o seu patrimônio, logo, com a sua falência, e sem qualquer previsão legal do trust na legislação pátria, não há que se falar na sua afetação, o que justifica, assim, a sua arrecadação em favor da massa falida.
Os julgados citados não escondem certa timidez e hesitação no exame do trust. Enquanto não existir previsão legal, os esforços em favor do seu reconhecimento e aplicação serão sempre limitados, privando a sociedade brasileira de um excelente instrumento de proteção patrimonial, afetação de bens e planejamento sucessório.
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1 CHALHUB, Melhim Namen. Trust : breves considerações sobre sua adaptação aos sistemas jurídicos de tradição romana. Revista dos Tribunais, vol. 790/2001, Ago/2001, p. 88.