Publicamos nesta coluna artigo que abordava O Usufruto de participações societários e o planejamento sucessório, que atraiu enorme interesse, tanto que se encontra entre os mais lidos da coluna.
Nesta oportunidade procuramos tratar de uma questão muito sensível envolvendo o usufruto, especialmente o usufruto de participações societárias no âmbito do planejamento sucessório.
Constituído o usufruto em favor de mais de uma pessoa (usufruto simultâneo), a morte de um dos usufrutuários causa a extinção da parte correspondente do usufruto, como determina o artigo 1.411 do Código Civil Brasileiro.
Essa regra não é aplicada se, por estipulação expressa, o quinhão do usufrutuário morto couber aos usufrutuários sobreviventes. É o denominado direito de acrescer previsto na ressalva do dispositivo legal indicado e que impede, dado o ajuste convencionado, a extinção do usufruto, mesmo parcial, em razão da morte de um dos usufrutuários.
O usufrutuário sobrevivente tem acrescido ao seu direito a parte daquele usufrutuário morto, que não se extingue, mas se transfere. O usufruto neste caso continua íntegro e não sofre redução. Encontrará extinção somente com a morte de todos os usufrutuários.
O direito de acrescer, como visto, só pode ser aplicado ao usufruto constituído por ato entre vivos quando houver estipulação expressa nesse sentido (art. 1.411, CC).
Ao usufruto constituído causa mortis a lei impõe, à falta do usufrutuário, uma outra solução (art. 1.946, C.C.). Nesse caso o direito de acrescer só é eficaz quando o legado é instituído de forma conjunta a duas ou mais pessoas (co-legatários). Mas não será aplicado, embora conjunto, quando só foi legado certa parte do usufruto, o que determinará a consolidação na propriedade das quotas dos que faltarem.
Em outra situação sustenta AGOSTINHO ALVIM que: "... se o usufruto é constituído em favor de marido e mulher, e a título gratuito (como no caso daquele que é constituído pelo filho a favor dos pais), o direito de acrescer se dará entre usufrutuários, ainda que não haja convenção. Para afastar aquele direito é que se fará mister cláusula expressa nesse sentido." Explica o autor que: "Não há dúvida que assim deve ser, porque, em nosso direito, toda a transmissão gratuita de bens ou vantagens considera-se doação (Código Civil, art. 1.165) e rege-se pelos dispositivos que lhe dizem respeito."1
A interpretação do respeitado civilista é feita a partir da disposição do art. 1.178, do Código Civil de 1916, assim redigido: "Salvo declaração em contrário, a doação em comum a mais de uma pessoa entende-se distribuída entre elas por igual". Essa interpretação ganha relevo hoje, aparentemente, na redação do art. 551, do Código Civil de 2002, que não só reproduziu o art. 1.178, revogado, como lhe acrescentou o parágrafo único, com a seguinte redação: "Se os donatários, em tal caso, forem marido e mulher, subsistirá na totalidade a doação para o cônjuge sobrevivo".
Não concordamos com a interpretação feita no sentido de dispensar a cláusula expressa do direito de acrescer quando o usufruto é constituído sem ônus em favor do casal, porque exige o artigo 1.411, do Código Civil, que a estipulação seja expressa, o que não ocorre na hipótese2.
Entender que o proprietário pretendia conferir ao casal usufrutuário o direito de acrescer, embora não tivesse feito estipulação expressa a respeito, é ler o que não foi escrito e atribuir a vontade a quem não a declarou. A semelhança existente entre o usufruto gratuito e a doação está somente na liberalidade, pois são negócios de natureza jurídica diversa. Não fosse por isso, a regra emprestada da doação está em conflito com aquela que exige expressa disposição em favor do direito de acrescer do usufrutuário, e não se deve dar abrangência a uma disposição restritiva, como preconiza a hermenêutica.
Situação que igualmente desperta interesse se refere ao direito de acrescer no usufruto simultâneo, deduzido da doação feita em favor de descendente.
SILVIO RODRIGUES sustenta que o direito de acrescer viola a legítima dos herdeiros necessários quando o casal faz doação aos filhos e reserva o usufruto. Na eventualidade da morte de um dos doadores e usufrutuários, a sua parte no usufruto não seria extinta, mas acrescida à parte do usufrutuário sobrevivente. Nesse caso, o herdeiro ficaria prejudicado, porque a ele seria imposta uma restrição à legítima, quando tem direito a recebê-la sem qualquer ônus, salvo aqueles do artigo 1.723 do Código Civil de 1916 (art. 1.848 do Código Civil de 2002). Para SILVIO RODRIGUES, a cláusula neste sentido é ineficaz e só valerá, segundo a lição de AGOSTINHO ALVIM, acolhida em seu texto, quando a restrição não alcançar a legítima, vale dizer, quando ela incidir apenas sobre a parte disponível dos bens, caso em que restariam outros do patrimônio do doador e usufrutuário, livres para assegurar a legítima3.
AGOSTINHO ALVIM explica que: "Suposto que os herdeiros necessários têm direito à legítima, segue-se que ela não pode ser desfalcada, e nem sequer onerada, a não ser nos casos especificados em lei, que são os do art. 1.723 do Código Civil. Ora, entre aquelas restrições permitidas não está a de instituição de usufruto em favor de quem quer que seja. Logo, não poderá ter efeito a cláusula que o determinar. Do exposto se conclui que os pais não podem doar aos filhos todos os seus bens, com reserva de usufruto, e com a cláusula de subsistência integral do mesmo, após a morte dos doadores. Tal ato ofenderia o direito dos filhos à legítima, uma vez que estes, após a morte de um dos pais, continuariam como nus-proprietários, até que o outro viesse a morrer. E o consentimento que houvessem dado seria inoperante, uma vez que a herança de pessoa viva não pode ser objeto de contrato (Código Civil, art. 1.089)."4
Preconizava ainda AGOSTINHO ALVIM que: "... se a doação não é de todos os bens, ou melhor, se não atinge a legítima, valerá o direito de acrescer a favor dos pais usufrutuários; e se a legítima foi atingida, cairá aquele direito, tanto quanto baste para livrar a legítima integralmente."5
Não obstante o entendimento de AGOSTINHO ALVIM, o Código Civil de 1916 reconhecia ao testador o direito de gravar a legítima com inalienabilidade e incomunicabilidade, bem como o direito de converter os bens que a representavam em outra espécie (art. 1.723, do Código Civil de 1916). Assim, a interpretação feita para negar a validade ao direito de acrescer em favor do usufrutuário sobrevivente não se conciliava com a possibilidade que a lei assegurava ao proprietário testador de onerar a legítima. Valia o argumento de que a legítima não era ofendida no caso, porque a propriedade dos bens já fora transmitida com a doação, e não com a sucessão, não obstante importar a doação feita ao descendente em adiantamento da legítima (art. 544 do Código Civil de 2002).
Nesse sentido o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu, na Apelação Cível nº 185.459, relatada pelo Desembargador ODYR PORTO, pela validade da cláusula que determinava o direito de acrescer em favor do usufrutuário sobrevivente, que doou o bem aos seus descendentes com reserva de usufruto, destacando-se do julgado o seguinte: "O argumento central para a tomada de posição no caso é a norma do art. 1.723 que proíbe a oneração da legítima com outras cláusulas além das ali enumeradas de forma taxativa. Mas a verdade é que a doação é ato muito diverso da disposição testamentária, prevalecendo neste unicamente a vontade do testador, enquanto naquele, a doação, o que ocorre é uma liberalidade com restrições com as quais estiveram de acordo os beneficiários. Ademais, como já se ressaltou, o Código Civil, depois de prever a extinção do usufruto simultâneo parte a parte com o falecimento dos doadores, admitiu de forma expressa a subsistência do mesmo em favor do outro doador (art. 740)."
Gravar a legítima com usufruto, na vigência do Código Civil de 1916, se encontrava nos limites do que a lei permitia ao doador estabelecer, como também estava de acordo com a natureza das demais restrições admitidas ao testador, tomadas neste caso por analogia.
Contudo, o Código Civil de 2002 ouviu em parte a doutrina que sempre criticou a possibilidade de o testador gravar a legítima e condicionou a sua clausulação à existência de "justa causa" declarada no testamento (art. 1.848, CC). Proibiu ao testador converter os bens da legítima em outros de espécie diversa (art. 1.848, § 1º, CC). Orientou-se, portanto, pela intangibilidade da legítima6, de forma que o direito de acrescer em favor do cônjuge, como um ônus constituído sobre a legítima, não deve mais ser admitido, salvo quando recair sobre a parte disponível7. Diante desta modificação significativa, promovida pelo Código Civil de 2002, em proveito da garantia quase absoluta da legítima, hoje não temos dúvida em concordar com a lição de AGOSTINHO ALVIM.
Com a extinção parcial do usufruto, quando não há direito de acrescer, haverá consolidação da propriedade. O proprietário recupera a propriedade plena sobre a parte que cabia ao usufrutuário. Nessa hipótese, observa SILVIO DE SALVO VENOSA, "nasce o estranho estado jurídico de conviver o usufrutuário em comunhão com o nu-proprietário, que exerce os direitos de propriedade plena sobre parte ideal do bem sobre a qual foi extinto o usufruto. Concluímos, porém, que praticamente as relações entre usufrutuário remanescente e nu-proprietário não se alteram, continuando a ser regidas pelos mesmos princípios"8.
Nem sempre se tem o cuidado de observar o direito à intangibilidade da legítima no caso de usufruto simultâneo de participações societárias. Só tem eficácia o direito de acrescer entre os usufrutuários quando recai sobre a parte disponível da herança.
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1 Artigo publicado na Revista dos Tribunais 194/585-586, com o título "Do Direito de Acrescer nos Atos Entre Vivos". O autor se refere no texto ao dispositivo legal do Código Civil de 1916, que foi reproduzido no art. 538 do Código Civil de 2002, sem alteração significativa para a tese defendida.
2 PONTES DE MIRANDA faz importante advertência a respeito desta regra do direito brasileiro: "Segundo a L. 34, pr., D., de usu et usu fructu et reditu et habitatione et operis per legatum vel fedeicommissum datis, 33, 2 (Cévola), a parte do premorto passava aos outros, se o contrário não se houvesse disposto. O direito brasileiro inverteu a regra jurídica: só se dá a passagem aos outros co-titulares se foi isso disposto (Código Civil, art. 740). Há de prestar-se toda atenção a esse ponto, porque os outros sistemas jurídicos não têm a mesma solução (cp. Código Civil português, art. 1.442º; espanhol, art. 52; italiano, art. 678). A concepção procede de Teixeira de Freitas (Esboço, art. 4.676): 'Constituído o usufruto em proveito de duas ou mais pessoas vivas ao tempo de sua constituição, extinguir-se-á parcialmente pelo falecimento de cada uma delas, sem que o sobrevivente ou os sobreviventes tenham direito de acrescer, a menos que no instrumento constitutivo do usufruto se estipulasse, ou dispusesse, expressamente, o contrário.' No texto do Código Civil, não se alude a estarem vivos os outorgados, elemento do suporte fático da regra que Teixeira de Freitas formulou. Para os que não estavam vivos nada foi e só se têm como co-usufrutuários os que viviam ao tempo da constituição. A solução, no sistema jurídico brasileiro, tem de ser a mesma” (Tratado de Direito Privado. t. XIX. Atualizado por Nelson Nery Junior e Luciano de Camargo Penteado. Revista dos Tribunais, 2012, p. 426). A interpretação continua atual, visto que manteve o Código Civil de 2002 a regra segundo a qual, salvo estipulação em contrário, extinguir-se-á a parte do usufrutuário morto (art. 1.411), daí porque, com maior razão, não podemos aceitar a opinião de que o usufruto se estende ao cônjuge sem que expressamente tivesse sido convencionado o direito de acrescer. Anota-se nesse sentido decisão da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo, no Processo CGJSP 4.693/2007, proferida pelo Desembargador Gilberto Passos de Freitas, que acolheu parecer do Juiz Álvaro Luiz Valery Mirra, publicado no D.O.E. de 20.12.2007, cuja ementa é a seguinte: “Registro de Imóveis - Usufruto constituído em favor de cônjuges - Morte de um dos usufrutuários - Cancelamento parcial de usufruto a requerimento dos nu-proprietários - Admissibilidade, ausente convenção expressa a respeito do direito de acrescer do cônjuge sobrevivente - Art. 740 do Código Civil de 1916 e art. 1.411 do Código Civil de 2002 - Recurso não provido."
3 Direito Civil. Vol. 5. 27ª ed. São Paulo : Saraiva, 2002, p. 310. Neste sentido também WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, que lembra a lição de Venezian: "No usufruto deducto os cônjuges não têm direito ao recíproco acrescimento." (Curso de Direito Civil. vol. 3. 37ª ed. São Paulo : Saraiva, 2003, p. 311); e SILVIO DE SALVO VENOSA (Direito Civil. Vol. V. 14ª ed. São Paulo : Atlas, 2014, p. 505).
4 Op. cit.(Revista dos Tribunais 194/583-584). O autor se refere aos artigos do Código Civil de 1916 correspondentes aos artigos 1.848 e 426, respecitivamente, do Código Civil de 2002.
5 Op. cit.
6 É certo que havendo "justa causa" o testador poderá gravar a legítima, mas a limitação legal a essa prerrogativa representa uma garantia quase absoluta da legítima, pois não justificada a clausulação em favor de interesses do herdeiro, e não do testador, a restrição deve cair.
7 EDUARDO DE OLIVEIRA LEITE escreveu a respeito do art. 1.848, do Código Civil de 2002: “A proposta de Orlando Gomes, no sentido de que ‘necessário se torna abolir a prerrogativa de clausular os bens com a inalienabilidade, ao menos os da legítima (já que) constitui uma aberração jurídica’ concretizou-se na redação do artigo 1.848 do novo Código Civil. Com efeito, como reconhece o próprio Orlando Gomes, se a legítima pertence ‘de pleno direito aos herdeiros necessários, a eles devendo passar nas condições em que se encontram no poder do autor da herança; da circunstância de que constituem reserva inalterável, os bens da legítima devem transmitir-se tal como se achavam no patrimônio do defunto’. Logo, não há que se admitir a ocorrência de cláusulas restritivas sobre direito, vocacionadamente absoluto. Ou é absoluto e não admite restrições, ou é relativo e a aceita a incidência da inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade. Por óbvio é direito absoluto que gera perplexidade pelo reconhecimento legal das restrições (em boa técnica jurídica, inadmissíveis) arroladas na lei” (Comentários ao Novo Código Civil, v. XXI, 2ª ed., p. 268-269, ed. Forense, 2003).
8 Op. cit., p. 504/505.