No último dia 30 de setembro ocorreu o lançamento1 do mais recente livro do celebrado historiador do direito e referência fundamental para História do Direito Paolo Grossi, O mundo das terras coletivas: itinerários jurídicos entre o ontem e o amanhã2. Tive a honra e alegria de participar como comentadora do livro a convite do Professor Diego Nunes e da Editora Contracorrente neste momento ímpar para as ciências jurídicas no Brasil.
De modo muito particular ler esse brilhante livro foi além de muito prazeroso, um grande estímulo para fomentar as pesquisas que desenvolvo há alguns anos acerca dos direitos dos povos e comunidades tradicionais (povos originários/indígenas e quilombolas) em relação com a história da cultura jurídica brasileira3. Direitos estes que são fundamentalmente marcados pela questão do território, que são as terras coletivas, entendidas como realidades vivas, conforme definido pelos próprios sujeitos históricos e de direitos das comunidades, e também abordado na obra do professor Grossi.
Assim como ocorreu na Itália, houve na experiência jurídica brasileira a negação do vínculo dos sujeitos com a terra e que permanece no tempo presente por meio da negação ou da "indiferença" ao sentido do território. Essa negação fez parte da estratégia de firmar a concepção de que o sujeito deve dispor livremente da coisa, muito bem delimitada no livro. Reconhecer a existência de vínculo afetivo entre sujeito e coisa seria um empecilho à essa livre circulação patrimonial.
Parafraseando o professor Paolo Grossi na conclusão do livro, expresso aqui a minha esperança, que sinceramente gostaria que fosse uma certeza, de que tenhamos a efetiva consciência de que as estruturas fundiárias coletivas, nas suas várias formas, contribuem muito para a compreensão da complexidade da paisagem socioeconômico e jurídica. A formação dessa consciência na seara do direito implica, entre outras ações, que o ensino nos cursos jurídicos não seja reducionista, assumindo unicamente a dimensão absolutista da propriedade privada individual, como historicamente tem sido no Brasil. Para a ampla maioria das faculdades de direito no Brasil o "planeta" ainda é visto como um "um grande mundo dominado pelo sólido individualismo da propriedade".
Também aqui no Brasil “a doutrina civilista” é de tal modo prisioneira do dogma da propriedade individual que percebemos também tantas ocasiões perdidas, obstáculos, surdez e incompreensões por parte do legislador nacional brasileiro. Acredito que a tradução brasileira desse importante livro terá como efeito “atiçar o fogo que se aninhava sob as cinzas”, parafraseando mais uma vez o professor Grossi.
Destaco de forma sucinta alguns pontos do livro que considero basilares, diante da impossibilidade de aprofundar em todos os seus aspectos, tendo em vista a riqueza das abordagens e dada a limitação do nosso espaço.
A obra ressalta a ação positiva das estruturas coletivas no plano da tutela ambiental, onde é possível estabelecer uma reflexão e uma correlação com o caso brasileiro. Tanto para os povos originários/indígenas quanto para os quilombolas, a propriedade coletiva da terra vai além da tutela ambiental, o que o livro também destaca, uma vez que para esses povos a natureza integra a categoria ser humano. Há uma integração entre homem e o ambiente natural, na qual não se separa material e espiritual.
Nessa perspectiva, não há a dissociação dicotômica fundante da cultura ocidental moderna, homem/natureza, sujeito/objeto, material/espiritual, visão que solidificou o extrativismo e espoliação dos recursos. O que garante a tutela do ambiente natural são os conhecimentos tradicionais desses povos, que não se restringem à proteção, e sim são amplos, pois foram desenvolvidos ao longo do tempo técnicas de manejo que foram responsáveis pela propagação da vida nas florestas e nas águas.
Destaco a força do pluralismo jurídico na obra e que é um marco teórico fundamental, com o qual é possível estabelecer um profícuo diálogo com as pesquisas sobre as estruturas coletivas no Brasil, embora a abordagem seja do contexto italiano e europeu. Me refiro a um diálogo enquanto intersubjetivação, ou seja, sujeitos em ação, sem hierarquizações e importação de experiências descontextualizadas e anacrônicas4.
Segundo o professor Grossi, "a verdadeira propriedade coletiva é um ordenamento jurídico primário". E acrescenta que é um ordenamento jurídico primário porque se trata de uma comunidade que vive valores conservados intergeracionalmente, possuem capacidade de autonormatização, é dotado de capacidade de gestão do patrimônio natural, econômico e cultural ligado à base territorial da propriedade coletiva, que devem ser respeitados e compreendidos.
Discorro de forma sucinta sobre as discussões que imagino que o livro do professor Grossi irá fomentar no cenário nacional e que são de primeira ordem no campo das ciências jurídicas no Brasil. Espero eu que cause incêndios.
A história da propriedade privada no Brasil é marcada pela exclusão e pelo racismo que demarcou desde Lei de Terras de 1850 o "não lugar" o qual estava reservado às populações negras, indígenas e pobres. Me aterei sobretudo à experiência da população negra descendente de africanos escravizados, livres e libertos. O cenário da Lei de Terras que instituiu a propriedade privada no ordenamento jurídico brasileiro oitocentista permaneceu no período pós-Abolição com novas roupagens, o que se demonstra pelas políticas de formação do espaço urbano e da grilagem e esbulho das terras do espaço rural que fundaram as desigualdades fortemente presentes na realidade social.
O que hoje conhecemos como "direito à cidade" vai além do acesso a oportunidades, infraestrutura e serviços de saúde, cultura, educação, esporte e áreas verdes, pois contempla uma vida integrada entre o sujeito e vínculo com a terra/território e todo o ambiente natural. O direito ao território foi e é sistematicamente negado à população negra, mesmo que as normas vigentes estipulem a igualdade formal dos direitos. Isso é consequência da visão de uma suposta neutralidade, sobretudo a racial que impera nas ciências jurídicas, destoando completamente da compreensão da formação história e social no contexto brasileiro.
A autora Anna Lyvia Roberto em seu livro Racismo estrutural e a aquisição da propriedade5 reflete sobre essas questões, embora delimite sua pesquisa empírica à cidade de São Paulo. É possível perceber essa dinâmica em todo o país, por exemplo, as políticas de reformas urbanas demonstradas por planos diretores na primeira metade do século XX, que expulsaram as pessoas negras dos centros das cidades, destruindo as habitações, as Igrejas do Rosário, os cemitérios e seu lugares onde ser realizavam suas celebrações e manifestais culturais e religiosas em relação harmônica com o ambiente natural.
O esbulho, a grilagem e a expropriação são a marca da aquisição de propriedade privada individual no século XX na experiência brasileira, embora essa realidade tenha sido apagada e silenciada. Evidencia-se na realidade nacional o privilégio na aquisição da propriedade privada individual e a negação da propriedade coletiva, sobretudo no tocante à expulsão dos povos originários e dos descendentes de africanos escravizados, livres e libertos dos lugares, ameaçando os seus modos de criar, fazer e viver.
Em suma, considero essa batalha desproporcional, considerando que a cultura jurídica brasileira, apesar da normatização prevista no ordenamento jurídico, ainda está no "planeta" do absolutismo da propriedade privada individual. Contudo, permaneço com a esperança expressa pelo professor Grossi como objetivo do livro, que os "incêndios" possibilitem olhar além, rumo a um futuro de mudança de mentalidades.
*Vanilda Honória dos Santos é doutoranda em Teoria e História do Direito pelo PPGD da Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre em Filosofia. Graduada em Direito e Filosofia.
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1 Disponível aqui.
2 GROSSI, Paolo. O mundo das terras coletivas: Itinerários jurídicos entre o ontem e o amanhã. São Paulo: Editora Contracorrente, 2021.
3 Cf. NUNES, Diego; SANTOS, Vanilda Honória dos. Por uma história do conceito jurídico de quilombo no Brasil entre os séculos XVIII e XX. Revista da Faculdade de Direito UFPR, Curitiba, v. 66, n. 1 (2021). Disponível aqui; SANTOS, Vanilda Honória dos. O direito à memória histórica dos Quilombos: indícios e sinais na perspectiva da reparação e da história do direito. ANAIS X COPENE: (Re)Existência intelectual negra e ancestral. 12-17 out. 2018, Uberlândia/MG. Disponível aqui.
4 Sobre a intersubjetivação como categoria teórico-metodológica para as ciências jurídicas, vejam-se: e o curso Filosofia Africana e Direitos Humanos, disponível aqui.
5 RIBEIRO, Anna Lyvia Roberto Custódio. Racismo estrutural e a aquisição da propriedade. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020.