Há algum tempo me interessou investigar a rigidez das regras legais de adimplemento da obrigação. O enorme poder que a lei confere ao credor sempre incomodou o meu espírito acadêmico. Escrevi a respeito na minha tese de doutorado1 e um pouco depois publiquei um artigo em obra coletiva2. Volto ao tema, contido pelos limites da nossa coluna, com o propósito de compartilhar as minhas reflexões e questionar esse poder olímpico que os nossos códigos liberais concederam ao credor.
Orlando Gomes afirmava que "a satisfação da prestação devida é indispensável ao cumprimento exato da obrigação. Se consiste em dar coisa certa, há de entregar precisamente essa coisa, e não outra. Nas obrigações de fazer, está adstrito a prestar o serviço ou praticar o ato a que estritamente se obrigou. E assim por diante. Nas obrigações de dar o devedor não pode substituir a coisa por outra, somente por acordo entre as partes se admitindo a substituição, mediante dação em pagamento – datio in solutum –, que produz o mesmo efeito, como ocorre quando o devedor, não podendo saldar uma dívida pecuniária, oferece ao credor, em troca, um bem imóvel. Se este aceita a substituição, a obrigação extingue-se. No Direito moderno não se admite a dação em pagamento coativa que, sob a forma de benefício, era aceita no Direito Romano. O beneficium dationis in solutum consistia na faculdade de substituição concedida ao devedor que não possuísse dinheiro ou móveis. Permitia-se que pagasse dívida pecuniária, transmitindo ao credor bem imóvel, para o qual não houvesse encontrado justo preço. Não se tolera, outrossim, o pagamento parcelado da dívida exigível por inteiro, ainda que a prestação seja divisível. A execução há de ser integral"3.
Percebe-se nitidamente na doutrina clássica uma interpretação rigorosa a respeito do adimplemento da obrigação, o que se explica pelo valor que sempre se deu à autonomia da vontade nos Códigos Liberais. O rigor se reflete particularmente em dois dispositivos do Código Civil. No art. 313 a lei acolheu o princípio da correspondência ou identidade da prestação e estabeleceu a impossibilidade de substituição do objeto da prestação (O credor não é obrigado a receber prestação diversa da que lhe é devida, ainda que mais valiosa), e no art. 314 a lei firmou o princípio da indivisibilidade ou integridade da prestação (ainda que a obrigação tenha por objeto prestação divisível, não pode o credor ser obrigado a receber, nem o devedor a pagar, por partes, se assim não se ajustou)4. Ambos os dispositivos representam o princípio da intangibilidade da obrigação.
Esse rigor não existia no Direito Romano. José Carlos Moreira Alves anota: "No período justinianeu, admitia-se o beneficium dationis in solutum, que era uma dação em pagamento (datio in solutum) coativa, pela qual o devedor, independentemente do consentimento do credor, se eximia da obrigação; esse beneficium se concedia a devedor de quantia certa que, possuindo apenas imóveis, não encontrasse comprador que lhe oferecesse preço justo com que pagasse o débito, motivo por que podia, então, desobrigar-se com a entrega ao credor de um ou de alguns dos imóveis, pelo valor da avaliação por autoridade competente. Por outro lado, alguns devedores somente podiam ser condenados in id quod facere possunt (naquilo que podem fazer), em virtude do beneficium competentiae, cuja função variou no direito clássico e no direito justinianeu"5. O devedor, de acordo com José Carlos Moreira Alves, não poderia ser condenado a pagar mais do que seu patrimônio permitia. E o autor registra: "No direito justinianeu, modifica-se a função do beneficium competentiae: o devedor que dispõe dele contra o credor não pode ser privado, para o cumprimento integral da obrigação, dos meios indispensáveis à sua subsistência"6.
A questão da indivisibilidade da prestação7, quando a natureza do objeto admite fracionamento (divisibilidade objetiva), está diretamente ligada à vontade das partes ou da lei, o que determina outra visão sobre o problema e atenua o rigor com o qual sempre se tratou a possibilidade de modificação do cumprimento da obrigação originariamente constituída. Se a vontade não tem hoje o valor absoluto que a ela emprestou o Liberalismo, já não há dificuldade maior para admitir a modificação do que foi estritamente contratado8.
A rigidez no direito obrigacional se situa mais precisamente, como visto, no princípio que reclama o cumprimento exato da obrigação. Defende-se, a partir da ideia de que a justiça está nos termos do contrato e de que a vontade tem valor absoluto, que a obrigação deve ser rigorosamente cumprida, na forma, tempo e lugar contratados. Qualquer desvio representa inadimplemento e autoriza a parte a resolver o negócio e a exigir perdas e danos. Por isso o credor não está obrigado a aceitar em partes o que se convencionou entregar por inteiro, como não está obrigado a aceitar coisa diversa, ainda que de maior valor.
Não se propõe, quando se fala em flexibilização das regras legais de adimplemento do contrato, o relaxamento do vínculo obrigacional, e por isso não se sustenta a quebra dos princípios que se traduzem na intangibilidade do contrato. O que se propõe é o reconhecimento de que o princípio que exige o exato cumprimento da obrigação comporta certa flexibilidade, não para descaracterizá-lo, mas, ao contrário, para que se possa encontrar os meios necessários à execução da obrigação, evitando o rompimento do contrato.
Conduzir as partes ao cumprimento do contrato, ainda que de forma diversa daquela programada, é reconhecer a força obrigatória que ele tem.
A ideia de flexibilização do cumprimento das obrigações não é nova e Pothier, a seu tempo, já defendia a possibilidade de pagamento parcial da prestação que se convencionou por inteiro, por decisão do juiz, em consideração da pobreza do devedor9.
Reconhece Orlando Gomes que a regra proibitiva de o devedor pagar em parcelas a dívida não é absoluta e anota duas exceções: a) a que é imposta pelo preceito segundo o qual os herdeiros do devedor, feita a partilha, só respondem, cada qual, em proporção da parte, que na herança lhe coube. b) a que decorre da insuficiência dos bens do devedor executado judicialmente; se não são bastantes, o credor recebe a parte cobrável, remanescendo o crédito na parte restante10. Acrescenta Pontes de Miranda outra hipótese de exceção: concurso de credores. O credor pode cobrar somente parte, embora tenha ação e pretensão pelo todo11.
O credor tem o direito de exigir o cumprimento exato da obrigação, dada a intangibilidade da relação, da qual decorre o princípio da integridade da prestação. No entanto, há certas situações que a modificação da forma de execução da obrigação não é capaz de prejudicar o fim para o qual ela foi constituída e que representa o interesse de ambas as partes programado no contrato.
Em vez do contrato irrevogável, fixo, cristalizado de ontem, sustenta Arnoldo Wald, "conhecemos um contrato dinâmico e flexível, que as partes devem adaptar para que ele possa sobreviver, superando, pelo eventual sacrifício de alguns dos seus interesses, as dificuldades encontradas no decorrer da sua existência. A plasticidade do contrato transforma a sua própria natureza, fazendo com que os interesses divergentes do passado sejam agora convertidos numa verdadeira parceria, com maior ou menor densidade, na qual todos os esforços são válidos e necessários para fazer subsistir o vínculo entre os contratantes, respeitados, evidentemente, os direitos individuais"12. Trata-se "de uma verdadeira nova concepção do contrato, já agora como ente vivo, como vínculo que pode ter um conteúdo variável, complementado pelas partes, por árbitros ou até pelo Poder Judiciário"13.
O anteprojeto do Código Europeu dos Contratos, que constitui verdadeira teoria geral dos contratos e que deve orientar a aplicação do direito nos países da comunidade europeia, admite a possibilidade de dilação de prazo para o cumprimento das obrigações, concedido pelo juiz por motivos razoáveis. Está é a redação do respectivo dispositivo: "Art. 96. Mora del deudor 1. No puede considerarse que el deudor incurre en mora: a) si no se ha pactado para el cumplimiento ninguna fecha final, ni término constituido por un periodo determinado de días, meses o años, y el acreedor no ha requerido previamente al deudor, por escrito, el cumplimiento de la obligación fijándole un plazo razonable; b) si el acreedor o el juez han concedido previamente al deudor un plazo adicional para el cumplimiento."14
O aprazamento está sujeito a certos requisitos: "Si el acreedor o el juez han concedido al deudor la facultad de pagar a plazos la deuda, éste pierde el beneficio del aplazamiento si no efectúa un desembolso superior a la octava parte de la deuda" (art. 110.2)15.
No mesmo sentido a exigência de fixação de prazo adicional de cumprimento da obrigação para a resolução do contrato encontrada no art. 8.106 dos Princípios de Direito Europeu de Contratos: "En caso de retraso en el cumplimiento, que no sea sustancial, la parte prejudicada que ubiera notificado la fijación de un nuevo plazo de una duración razonable, puede dar por terminado el contrato al finalizar ese período."16
Também se vê a relativização das regras sobre a execução da obrigação nos Princípios UNIDROIT sobre os Contratos Comerciais Internacionais (2004), cujo art. 6.1.3 admite a oferta de cumprimento parcial da obrigação se o credor não tem legítimo interesse para recusá-la.
A relativização das regras de adimplemento é, como visto, um imperativo de justiça nas relações obrigacionais e um fenômeno presente nos movimentos de universalização ocidental do direito privado. Não há mais aceitação no moderno direito contratual das posições absolutas fundadas na antiga autonomia da vontade. O superamento das vicissitudes da execução das obrigações passa pela razoável flexibilização das regras que, no modelo liberal, enrijeceram para atender interesses que não estão mais presentes no Estado Social (queiram ou não é o Estado definido pela nossa Constituição). Vencer o egoísmo, o abuso e o individualismo exigem a aplicação inteligente das regras de adimplemento, colocadas finalisticamente em proveito não só do interesse das partes, mas da sociedade, num processo de humanização das relações que está hoje amparado e promovido pela Constituição.
A flexibilização das rígidas regras de adimplemento e a possibilidade de criteriosa dilação da execução da obrigação ou divisibilidade da prestação são, nos casos justificados, medida de justiça.
À doutrina e à magistratura, nas palavras de Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber, "cabe romper definitivamente com a tradição liberal e individualista, buscando construir um direito obrigacional coerente com a legalidade constitucional, que se proponha não à manutenção neutra e acrítica de uma pretensa submissão do devedor ao credor, mas à proteção de interesses compatíveis com a dignidade humana, com a solidariedade social e com a igualdade substancial, caracterizando a tendência à eticização das relações negociais. A persecução desse objetivo – que corresponde ao ditado constitucional – consiste na premissa metodológica que deve guiar a interpretação do direito das obrigações no Código Civil"17.
Os códigos geralmente não surgem muito bons, observa Renan Lotufo, "mas, pouco a pouco, com o trabalho da doutrina e da jurisprudência, vai-se lendo o que neles não está escrito, deixando-se de ler, muitas vezes, o que nele está e, no final de certo tempo, por força da sua utilização, da comutação dessas lacunas, da eliminação de certos princípios da sua literalidade, o código vai melhorando e, no final de certo tempo, já se considera que é um bom código"18.
A mudança de paradigmas incomoda o espírito conservador do civilista e as novas soluções encontradas para antigos problemas se afiguram às vezes teratológicas diante da velha lógica subsuntiva. Por isso já observava Orlando Gomes que "passando o modo de agir na sociedade a se condicionar a interesses coletivos, vigilantemente defendidos pelo Estado e por grupos de potencialidade social desenganada, a quantidade das ações orientadas nesse sentido converte-se necessariamente em qualidade, isto é, determina novo tratamento, a que se tornaram imprestáveis princípios, construções e conceitos ordenados em função de outro tipo de conduta. Os juristas acadêmicos, atônitos diante de novos fatos que desacreditam velhos conceitos, encaram como insuportáveis monstruosidades jurídicas as soluções criadas para atender às novas exigências da convivência social, e tentam reduzir os fatos novos aos conceitos tradicionais a que repugnam. Mas o esforço que fazem nesse sentido tem concorrido apenas para avivar a incompatibilidade"19.
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1 O texto integral da tese de doutorado foi publicado pela Escola Paulista da Magistratura, com o título: A intervenção judicial no contrato em face do princípio da integridade da prestação e da cláusula geral da boa-fé – uma nova visão do adimplemento contratual. Pode ser acessado livremente aqui.
2 A flexibilização do princípio da integridade da prestação e a possibilidade do parcelamento da dívida. "Temas Relevantes do Direito Civil Contemporâneo". Coord. de Renan Lotufo, Giovanni Ettore Nanni e Fernando Rodrigues Martins. São Paulo : Atlas, 2012.
3 GOMES, Orlando. Obrigações. Atualizada por Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 112.
4 São disposições iguais aos arts. 863 e 889 do Código Civil de 1916, com pequenas modificações de redação que não alteraram o conteúdo. Antes do Código Civil de 1916 preceitos semelhantes eram encontrados na Nova Consolidação das Leis Civis de Carlos Augusto de Carvalho (arts. 867, 1.046 e 888, § 2º).
5 ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986, v. II. p. 41.
6 Op. cit., p. 41-2.
7 Na verdade, a indivisibilidade ou divisibilidade da prestação está ligada ao adimplemento. É, portanto, o adimplemento que se divide ou não. Nesse sentido também é o comentário feito por Judith Martins-Costa: "Isto está a significar que a indivisibilidade, ou divisibilidade, é do adimplemento, e não do objeto (indireto) da prestação." (Comentários ao novo Código Civil: volume V, tomo I – do direito das obrigações, do adimplemento e da extinção das obrigações. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 184)
8 Esse valor absoluto conferido à liberdade, fonte da autonomia da vontade, revelou que o interesse privado e o social nem sempre se harmonizam naturalmente. Por isso Keynes atacou as bases do laissez-faire afirmando que "não é verdade que os indivíduos possuem uma ‘liberdade natural’ prescritiva em suas atividades econômicas. Não existe um contrato que confira direitos perpétuos aos que os têm ou aos que os adquirem. O mundo não é governado do alto de forma que o interesse particular e o social sempre coincidam. Não é administrado aqui embaixo para que na prática eles coincidam. Não constitui uma declaração correta dos princípios da Economia que o autointeresse esclarecido sempre atua a favor do interesse público. Nem é verdade que o autointeresse seja geralmente esclarecido; mais frequentemente, os indivíduos que agem separadamente na promoção de seus próprios objetivos são excessivamente ignorantes ou fracos até para atingi-los" (KEYNES, John Maynard. A teoria geral do emprego, do juro e da moeda. Tradução de Mário R. da Cruz. São Paulo: Nova Cultural, 1985. p. 120. – Os Economistas).
9 POTHIER, Robert. Tratado das obrigações pessoaes e reciprocas. Tradução de José Homem Corrêa Telles. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1906. t. II. p. 23. Era também, segundo Orosimbo Nonato, a doutrina de Dumoulin, segundo o qual "témoigne avoir vu diviser le payement, de la dette, afin de le rendre plus facile à dês débiturs malheureux et pauvres". Registra Orosimbo Nonato que os juristas antigos também pensavam assim e lembra Delvincourt, Toullier, Bononne, Rodière, Zachariae, Aubry et Rau e Colmet de Santerre. Anota, ainda, que esses juristas sempre invocavam, entre outras lições, aquela encontrada na Bíblia, no Evangelho de São Mateus, que se refere à "parábola do credor incompassivo" (cap. 18, vv. 23-35). A referida passagem bíblica conta a condenação do servo credor que, tendo sido ouvido e perdoado pelo senhor quando exigido o pagamento de suas dívidas, não foi tolerante e igualmente compreensivo com o seu devedor, que lhe suplicava o pagamento em parcelas (NONATO, Orosimbo. Curso de obrigações, segunda parte. Rio de Janeiro: Forense, 1960. v. I. p. 130-1).
10 Obrigações. Atualizada por Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 112-3.
11 Tratado de direito privado. Atualizado por Vilson Rodrigues Alves. 1. ed. Campinas: Bookseller, 2003. t. XXII. p. 196).
12 Um novo direito para a nova economia: a evolução dos contratos e o Código Civil. In: DINIZ, Maria Helena; SENISE LISBOA, Roberto (Coord.). O Direito Civil no século XXI. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 86.
13 WALD, Arnoldo. Op. cit., p. 87.
14 Tradução para o espanhol de Gabriel García Cantero, Catedrático de Direito Civil, Emérito da Universidad de Zaragoza e Membro da Academia de Jusprivatistas Europeos de Pavía (Disponível aqui. Em outros dispositivos há regra semelhante (arts. Art. 92, 93 e 94).
15 Cuida este dispositivo do prazo suplementar e benefício de pagamento a prazo concedido ao devedor: "Art. 110. Plazo suplementario y beneficio de pago a plazos 1. Si el acreedor o el juez han concedido un plazo suplementario al deudor que todavía no ha iniciado el cumplimiento o que sólo lo ha efectuado parcialmente, el acreedor no puede, hasta el vencimiento del término, hacer uso de los remedios previstos en los artículos siguientes, a reserva de la facultad de solicitar al juez medidas cautelares o la suspensión de tal plazo, sin perjuicio de eventuales daños y perjuicios. 2. Si el acreedor o el juez han concedido al deudor la facultad de pagar a plazos la deuda, éste pierde el beneficio del aplazamiento si no efectúa un desembolso superior a la octava parte de la deuda." (Tradução para o espanhol de Gabriel García Cantero, Catedrático de Direito Civil, Emérito da Universidad de Zaragoza e Membro da Academia de Jusprivatistas Europeos de Pavía. Ibidem).
16 Tradução para o espanhol de DÍEZ-PICAZO, Luis; TRIAS, E. Roca; MORALES, A. M. Los principios del derecho europeo de contratos. Madrid: Civitas, 2002. p. 63.
17 Código Civil comentado: direito das obrigações – artigos 233 a 420. In: AZEVEDO, Álvaro Villaça (Coord.). São Paulo: Atlas, 2008. v. IV. p. 3.
18 LOTUFO, Renan. Código Civil comentado: parte geral (arts. 1º a 232). São Paulo: Saraiva, 2003. v. 1. p. 5-6.
19 GOMES, Orlando. Transformações gerais do direito das obrigações. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980. p. 5-6.