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Trespasse – Alienação do estabelecimento empresarial

Trespasse – Alienação do estabelecimento empresarial.

19/5/2021

A alienação do estabelecimento empresarial é negócio que, embora comum, suscita muitas dúvidas, especialmente no campo da responsabilidade. Abordamos a seguir um sucinto panorama jurídico deste negócio, que poderá servir de orientação básica para a sua realização, o que não dispensa, obviamente, a assessoria técnica.

Pode o Estabelecimento ser objeto unitário de direitos e de negócios jurídicos, translativos ou constitutivos, que sejam compatíveis com a sua natureza (Arts. 90, 91 e 1.143, CC).

A venda do Estabelecimento se faz pelo negócio conhecido como trespasse, de trespassar, no sentido de transferir, negociar, passar à frente.

Naturalmente a alienação do Estabelecimento, que é um bem com valor patrimonial, está sujeita a certas formalidades e restrições, especialmente porque esse valor que representa o Estabelecimento é também a garantia dos credores.

Portanto, o contrato que tenha por objeto a alienação, o usufruto ou arrendamento do estabelecimento, só produzirá efeitos quanto a terceiros depois de averbado à margem da inscrição do empresário, ou da sociedade empresária, no Registro Público de Empresas Mercantis, e de publicado na imprensa oficial (Art. 1.144, CC).

Essa averbação equivale ao arquivamento previsto na LRE. Por isso é necessário que o negócio seja feito por escrito, para que se faça a sua averbação. Enquanto não averbado, o trespasse não produz efeitos (eficácia) contra terceiros, embora válido. Na prática, infelizmente, não é comum essa averbação, o que representa risco maior para o adquirente.

Se ao alienante não restarem bens suficientes para solver o seu passivo, a eficácia da alienação do estabelecimento depende do pagamento de todos os credores, ou do consentimento destes, de modo expresso ou tácito, em trinta dias a partir de sua notificação (Art. 1.145, CC).

É preciso não confundir a venda do estabelecimento com a cessão da própria sociedade. Por isso é que o empresário ou a sociedade empresária, no caso de trespasse, continua devedor. Logo, o empresário ou sociedade empresária não pode se desfazer desse patrimônio sem reservar outros ativos suficientes ao pagamento dos seus credores.

O Estabelecimento é, como visto, a garantia dos credores e responde pelas dívidas (que poderão recair sobre ele), mesmo depois de transferido ao adquirente. Por isso, ao alienante, se não restarem bens suficientes a responder pelas dívidas, cabe colher o consentimento expresso dos seus credores ou promover a notificação deles, com prazo de trinta dias, para que venham, se quiser, opor-se ao trespasse. O silêncio será interpretado como consentimento (tácito). Se o credor concordar, ele está renunciando à garantia que tinha no Estabelecimento do empresário devedor não poderá se voltar contra o adquirente.

As consequências para a não observância do art. 1.145 do Código Civil são graves. O empresário poderá ter a falência decretada (Art. 94, III, "c", LRF), considerando-se ineficaz a alienação em relação à massa falida (Art. 129, VI, LRF), o que autoriza reivindicar o estabelecimento do adquirente, ainda que de boa-fé, ou seja, que não tenha conhecimento do estado de crise econômico-financeira do alienante ou a intenção deste fraudar credores. É fácil perceber, portanto, que a preocupação maior no trespasse deve ser do adquirente.

O adquirente do Estabelecimento é considerado pela lei como seu sucessor. Logo, o adquirente do Estabelecimento responde pelo pagamento dos débitos anteriores à transferência, desde que regularmente contabilizados, continuando o devedor primitivo solidariamente obrigado pelo prazo de um ano, a partir, quanto aos créditos vencidos, da publicação, e, quanto aos outros, da data do vencimento (Art. 1.146,CC).1

É interessante notar aqui que o Estabelecimento tem uma afetação às obrigações precedentes ao trespasse, vinculando-se ao seu cumprimento.

O adquirente terá direito de regresso contra o alienante pelas dívidas que tiver de pagar, anteriores ao trespasse. Não vale contra os credores a cláusula, muito comum em trespasse, liberatória do adquirente do passivo. A garantia dos credores está expressa na lei, não se admitindo derrogação por contrato sem a participação dos credores.

É válida, todavia, a cláusula de transferência de passivo ao adquirente, que assume a obrigação pelo pagamento das dívidas. Caso surja depois do trespasse dívida não conhecida pelo adquirente, caberá em favor dele direito de regresso contra o alienante. É o caso de condenações judiciais que ocorreram depois do trespasse, mas encontram causa em fato anterior.

Em relação aos credores trabalhistas a CLT é expressa no sentido de que a mudança na propriedade ou na estrutura jurídica da empresa não afetará os contratos de trabalho dos respectivos empregados (Arts. 10 e 448, CLT). Ao sucessor é imputada pela lei a responsabilidade pelas dívidas trabalhistas anteriores: "Art. 448-A. Caracterizada a sucessão empresarial ou de empregadores prevista nos Arts. 10 e 448 desta Consolidação, as obrigações trabalhistas, inclusive as contraídas à época em que os empregados trabalhavam para a empresa sucedida, são de responsabilidade do sucessor. Parágrafo único.  A empresa sucedida responderá solidariamente com a sucessora quando ficar comprovada fraude na transferência."

A responsabilidade do alienante, de acordo com as novas disposições da CLT, só ocorre em caso de fraude. Há aparente conflito entre a redação atual da CLT e o CC. Mas deve prevalecer a disposição do art. 1.146 do CC para impor ao alienante, até um ano, a obrigação solidária pelas dívidas em geral, independentemente da prova da fraude.2

Quanto às dívidas tributárias, o CTN estabelece que o adquirente responde, subsidiariamente com o alienante (se este prosseguir na atividade empresária) ou integralmente (se o alienante cessar a atividade). Esta responsabilidade não se aplica em caso de alienação judicial.3

Para superar a crise econômico-financeira do empresário, a LRF admitiu a venda de filiais ou UPIs – Unidades Produtivas Isoladas do devedor e estabeleceu que o adquirente não será considerado sucessor e não responderá pelas obrigações do devedor de qualquer natureza, incluídas, mas não exclusivamente, as de natureza ambiental, regulatória, administrativa, penal, anticorrupção, tributária e trabalhista (Arts. 60 e 141, LRF).4

Estas disposições visam preservar o fundo de empresa e proporcionar o melhor resultado para os credores do empresário em crise econômica-financeira. A recente reforma da LRF procurou dar mais segurança ao adquirente. O tema das UPIs recomenda uma abordagem exclusiva em outra oportunidade.

Prevê a Lei também que o alienante não pode concorrer com o adquirente nos cinco anos subsequentes ao trespasse, salvo autorização expressa no contrato (Art. 1.147, CC). É o que se chama também de restabelecimento do alienante. Procura-se proteger o adquirente da concorrência desleal, impondo-se na aplicação da proibição o exame da natureza da nova atividade empresária e o território para se verificar a ocorrência ou não de efetiva concorrência que se quer impedir.

É possível que o Estabelecimento seja objeto de arrendamento ou usufruto. Naturalmente durante o tempo deste negócio não poderão o arrendante e o proprietário fazer concorrência ao arrendatário e ao usufrutuário (Art. 1.147, par. único, CC).

A ideia de que o adquirente do Estabelecimento é sucessor do alienante determina também que, "salvo disposição em contrário, a transferência importa a sub-rogação do adquirente nos contratos estipulados para exploração do estabelecimento, se não tiverem caráter pessoal, podendo os terceiros rescindir o contrato em noventa dias a contar da publicação da transferência, se ocorrer justa causa, ressalvada, neste caso, a responsabilidade do alienante" (Art. 1.148, CC).

Essa regra é genérica e não afasta o cumprimento dos requisitos especiais exigidos de acordo com a natureza da relação jurídica. É o caso do contrato de locação, que não se transfere ou se sub-roga somente por força do trespasse.5

Os contratos de natureza pessoal podem ser rescindidos, como é o caso dos contratos de trabalho.

Igual efeito se aplica aos créditos do estabelecimento: "Art. 1.149. A cessão dos créditos referentes ao estabelecimento transferido produzirá efeito em relação aos respectivos devedores, desde o momento da publicação da transferência, mas o devedor ficará exonerado se de boa-fé pagar ao cedente."

A esta cessão de crédito devem ser aplicadas as disposições dos Arts. 286-298 do Código Civil. Destaca-se o impedimento da cessão quando a isso se opuser a natureza da obrigação, a lei ou a convenção com o devedor (Art. 286, CC).

O Estabelecimento pode ser objeto, ainda, de garantia real, como o penhor (Art. 1.451, CC).

O trespasse é negócio jurídico importante para o desenvolvimento da atividade empresarial e existe um grande mercado de aquisições no Brasil, não só das sociedades empresárias, ou do controle das sociedades empresárias, mas igualmente dos estabelecimentos empresariais. Com o cuidado necessário, as boas oportunidades podem ser aproveitadas.

__________

1 O Superior Tribunal de Justiça decidiu que "O suporte fático normativo previsto no art. 1.146 do Código Civil, impõe outros requisitos além da mera transferência do estabelecimento comercial para a cristalização da solidariedade entre alienante e adquirente, notadamente a exigência de regular contabilização dos débitos anteriores à alienação, circunstância que não foi sequer alvo de argumentação da parte em sede recursal." (AgInt no REsp 1457672/DF, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 20/09/2018, DJe 25/09/2018).

2 Nesse sentido a interpretação do Enunciado n. 13, Comissão 1, da ANAMATRA, da 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho (2017) – XIX Congresso Nacional dos Magistrados do Trabalho – Conamat (2018): "Sucessão trabalhista. A teor do art. 1.146 do código civil, aplicável ao Direito do Trabalho (CLT, art. 8º), é cabível a responsabilidade solidária do sucedido e do sucessor pelos créditos trabalhistas constituídos antes do trespasse do estabelecimento, independentemente da caracterização de fraude."

3 É esta a disposição do CTN: Art. 133. A pessoa natural ou jurídica de direito privado que adquirir de outra, por qualquer título, fundo de comércio ou estabelecimento comercial, industrial ou profissional, e continuar a respectiva exploração, sob a mesma ou outra razão social ou sob firma ou nome individual, responde pelos tributos, relativos ao fundo ou estabelecimento adquirido, devidos até à data do ato: I - integralmente, se o alienante cessar a exploração do comércio, indústria ou atividade; II - subsidiariamente com o alienante, se este prosseguir na exploração ou iniciar dentro de seis meses a contar da data da alienação, nova atividade no mesmo ou em outro ramo de comércio, indústria ou profissão. § 1º O disposto no caput deste artigo não se aplica na hipótese de alienação judicial: I – em processo de falência; II – de filial ou unidade produtiva isolada, em processo de recuperação judicial. § 2º Não se aplica o disposto no § 1º deste artigo quando o adquirente for:  I – sócio da sociedade falida ou em recuperação judicial, ou sociedade controlada pelo devedor falido ou em recuperação judicial; II – parente, em linha reta ou colateral até o 4º (quarto) grau, consangüíneo ou afim, do devedor falido ou em recuperação judicial ou de qualquer de seus sócios; ou III – identificado como agente do falido ou do devedor em recuperação judicial com o objetivo de fraudar a sucessão tributária. § 3º Em processo da falência, o produto da alienação judicial de empresa, filial ou unidade produtiva isolada permanecerá em conta de depósito à disposição do juízo de falência pelo prazo de 1 (um) ano, contado da data de alienação, somente podendo ser utilizado para o pagamento de créditos extraconcursais ou de créditos que preferem ao tributário.     

4 Dispõe a LRF: "Art. 60. Se o plano de recuperação judicial aprovado envolver alienação judicial de filiais ou de unidades produtivas isoladas do devedor, o juiz ordenará a sua realização, observado o disposto no art. 142 desta Lei. Parágrafo-único.  O objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor de qualquer natureza, incluídas, mas não exclusivamente, as de natureza ambiental, regulatória, administrativa, penal, anticorrupção, tributária e trabalhista, observado o disposto no § 1º do art. 141 desta Lei." (Redação dada pela lei 14.112, de 2020)    

5 O Superior Tribunal de Justiça decidiu exatamente nesse sentido: "RECURSO ESPECIAL. TRANSFERÊNCIA DO FUNDO DE COMÉRCIO. TRESPASSE. CONTRATO DE LOCAÇÃO. ART. 13. DA LEI N. 8.245/91. APLICAÇÃO À LOCAÇÃO COMERCIAL. CONSENTIMENTO DO LOCADOR. REQUISITO ESSENCIAL. RECURSO PROVIDO. 1. Transferência do fundo de comércio. Trespasse. Efeitos: continuidade do processo produtivo; manutenção dos postos de trabalho; circulação de ativos econômicos. 2. Contrato de locação. Locador. Avaliação de características individuais do futuro inquilino. Capacidade financeira e idoneidade moral. Inspeção extensível, também, ao eventual prestador da garantia fidejussória. Natureza pessoal do contrato de locação. 3. Desenvolvimento econômico. Aspectos necessários: proteção ao direito de propriedade e a segurança jurídica. 4. Afigura-se destemperado o entendimento de que o art. 13 da Lei do Inquilinato não tenha aplicação às locações comerciais, pois, prevalecendo este posicionamento, o proprietário do imóvel estaria ao alvedrio do inquilino, já que segundo a conveniência deste, o locador se veria compelido a honrar o ajustado com pessoa diversa daquela constante do instrumento, que não rara as vezes, não possuirá as qualidades essenciais exigidas pelo dono do bem locado (capacidade financeira e idoneidade moral) para o cumprir o avençado. 5. Liberdade de contratar. As pessoas em geral possuem plena liberdade na escolha da parte com quem irão assumir obrigações e, em contrapartida, gozar de direitos, sendo vedado qualquer disposição que obrigue o sujeito a contratar contra a sua vontade. 6. Aluguéis. Fonte de renda única ou complementar para inúmeros cidadãos. Necessidade de proteção especial pelo ordenamento jurídico. 7. Art. 13 da lei 8.245/914 aplicável às locações comerciais. 8. Recurso especial provido." (REsp 1202077/MS, Rel. Ministro VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS), TERCEIRA TURMA, julgado em 01/03/2011, DJe 10/03/2011).

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Coordenação

Carlos Alberto Garbi Pós-Doutor em Ciências Jurídico Empresariais pela UC - Universidade de Coimbra. Mestre e Doutor em Direito Civil pela PUC - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Professor de Direito Privado das FMU - Faculdades Metropolitanas Unidas. Vice-Presidente do Conselho do INBRADIM. Membro Acadêmico-Associado da ABDC - Academia Brasileira de Direito Civil. Diretor Nacional de Publicações da ADFAS - Associação de Direito de Famiília e das Sucessões. Advogado. Consultor. Parecerista.