O tema das garantias é um daqueles que está sempre em discussão nos processos de insolvência. Ao tempo da concordata não foi diferente, consolidando-se o entendimento no sentido de que o credor não perdia as garantias reais e pessoais que lhe assegurava o direito de demandar os coobrigados e excutir bens, pelo valor integral da dívida.
A lei 11.101/2005, embora tenha introduzido um modelo inovador no tratamento da crise econômico-financeira da sociedade empresária, parece ter a memória do passado da concordata, preservando o direito do credor. No seu art. 49, § 1º, afirmou que "Os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso". Depois, no art. 50, § 1º, ao tratar dos meios de recuperação judicial, deixou claro que "na alienação de bem objeto de garantia real, a supressão da garantia ou a sua substituição somente serão admitidas mediante aprovação expressa do credor titular da respectiva garantia".
Ao dispor sobre o efeito da novação decorrente da aprovação do plano de recuperação, a lei 11.101/2005 estabeleceu, no seu art. 59, caput, que o plano obriga o devedor e todos os credores, titulares de créditos anteriores ao pedido, "sem prejuízo das garantias".
Por conta destas disposições, especialmente, se construiu o forte entendimento no sentido de que o plano de recuperação judicial não pode dispensar as garantias sem o expresso consentimento do respectivo credor. E se foi além: se o plano estabelecer disposição nesse sentido, o Juiz ou o Tribunal poderão, de ofício, aplicar a norma de ordem pública e anular a cláusula respectiva.
Antes das modificações promovidas pela recente lei 14.112/2020, o Egrégio Superior Tribunal de Justiça, pela sua Terceira Turma, passou a decidir, por maioria de votos, que é válida a disposição do plano de recuperação judicial que dispensa as garantias reais e fidejussórias, se aprovado pelos credores da respectiva classe, de acordo com o princípio majoritário, obrigando, assim, aos demais credores que não aderiram, ou mesmo votaram contra o plano, a se sujeitar a dispensa da garantia. Esse entendimento foi aplicado no julgamento dos Recursos Especiais ns. 1.532.943/MT (DJe 10/10/2016) e 1.700.487/MT (DJe 26/4/2019).
Destaca-se a recente decisão, também nesse sentido, proferida no REsp nº 1.863.842-RS, de 1º de dezembro de 2020 (DJe: 18.12.2020), por maioria de votos, no qual prevaleceu o entendimento defendido pelo Ministro Marco Aurélio Bellizze, relator para o acórdão, seguido pelos Ministros Paulo de Tarso Sanseverino e Moura Ribeiro. Ficaram vencidos os Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva e Nancy Andrighi.
Os votos vencidos se firmaram no sentido de que a dispensa das garantias só poderia ocorrer validamente com a anuência prévia dos respectivos titulares. Esse entendimento, não obstante fundado na letra da Lei, também pesou a preocupação com as consequências que a dispensa da garantia para os credores não concordantes poderia trazer para o crédito no Brasil.
O voto que prevaleceu está bem delineado nas premissas anotadas pelo Ministro Marco Aurélio Bellizze. Lembra a disposição do art. 49 da lei 11.101/2005, que determina a sujeição de todos os créditos existentes na data do pedido à recuperação judicial. Destaca, como ponto em comum ao entendimento de todos os Ministros (não obstante a divergência), que é válida a cláusula supressiva das garantias quando o credor votar pela aprovação do plano, o que reconhece a natureza disponível do direito sobre as garantias e a possibilidade de o plano dispor de forma diversa a respeito das obrigações e garantias originariamente contratadas (art. 49, § 2º).
Segue o voto do Ministro Bellizze com a afirmação do modelo majoritário para a tomada de deliberações pelos credores na recuperação judicial, levando-se em conta o valor do crédito na respectiva classe. No silêncio do plano de recuperação judicial, anota o voto, "a lei é peremptória em possibilitar, em paralelo à recuperação judicial, a execução do mesmo crédito em face dos coobrigados, fiadores e obrigados de regresso. Todavia, a lei não veda (nem poderia vedar, em atenção à natureza disponível dos direitos em comento) a possibilidade de o plano de recuperação judicial estabelecer, eventualmente, cláusula supressiva de garantias – a qual, para produzir efeitos, haverá de ser aprovada pela respectiva classe de credores, em observância detida ao quórum legal."
O ministro Marco Aurélio Bellizze prossegue com irrefutável argumentação, que destacamos:
"Importante, nesse passo, tecer a seguinte assertiva: O princípio majoritário vale para todos, indistintamente, seja no caso de aprovação, seja no caso de rejeição, inclusive no que toca à cláusula supressiva das garantias.
Efetivamente, em absoluto respeito ao poder de voto dos credores, caso a cláusula supressiva tivesse sido rejeitada segundo o quórum legal, não poderia ter aplicação nem sequer para aqueles que votaram favoravelmente. Aliás, nesse caso, não haveria nenhuma razão idônea para que os credores, com menor poder de influir no resultado da votação, não tivessem o mesmo tratamento daqueles que votaram favoravelmente pela aprovação da supressão das garantias.
Na hipótese, como visto, os credores, com poder maior de influir no resultado da votação, segundo seu crédito na respectiva classe, compreenderam, ao contrário, ser viável suprimir as garantais fidejussórias, segundo as renúncias que se mostraram dispostos a suportar, este resultado haverá de repercutir em toda a classe, indistintamente.
Bem de ver, assim, que considerações extrajurídicas, tais como o suposto encarecimento do crédito, a fim de sustentar a inviabilidade da disposição contratual inserta no plano de recuperação judicial, não se coadunam com a realidade dos fatos, já que são as instituições financeiras, na grande maioria dos casos (justamente pelo segmento de concessão de crédito em que atuam), os credores que possuem o maior poder de influir na votação da cláusula em comento.
Assim, caso o órgão máximo representativo dos credores delibere por assentir com a supressão das garantias fidejussórias, é de se presumir que esta providência converge, numa ponderação de valores, com os interesses destes (credores) majoritariamente.
De se reconhecer, portanto, que a supressão das garantias reais e fidejussórias, tal como previsto no plano de recuperação judicial e desde que aprovado pela assembleia geral, segundo o detido quórum legal, como parte integrante das tratativas negociais, vincula todos os credores titulares de tais garantias."
Conclui o seu voto que a supressão das garantias nestas condições não impede a via executiva contra os terceiros garantidores, caso o plano não seja cumprido, porque os credores terão reconstituídos os seus direitos e garantias nas condições originariamente contratadas (art. 61, § 2º).
Essas decisões causaram grande preocupação e, não se pode deixar de reconhecer, enorme surpresa para todos aqueles que durante anos se acostumaram com a preservação do direito dos credores sobre as garantias.
A divergência no âmbito da Terceira Turma, e a não apreciação da matéria pela Quarta Turma, do Superior Tribunal de Justiça, provocou a afetação do tema à decisão da Segunda Seção daquele Tribunal, cujo julgamento, muito esperado, teve início no REsp 1.797.924/MT, mas não foi concluído, tendo em vista o acolhimento da prejudicial do recurso (o plano de recuperação objeto do recurso foi anulado pelo Tribunal de origem e outro fora aprovado, esvaziando o recurso no qual se afetou a matéria). Naquela oportunidade, o Ministro Luis Felipe Salomão proferiu voto-vista identificando quatro posições sobre o tema:
"Existem basicamente quatro posições a respeito do tema: i) a primeira entende que é ilegal a cláusula de supressão de garantias prevista no Plano de Recuperação, uma vez que acaba impondo aos credores a desconsideração das garantias prestadas nos contratos que deram origem aos créditos objeto da novação, exonerando coobrigados, fiadores e avalistas; por conseguinte, deve haver o prosseguimento das execuções e ações ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados, já que o plano vincula apenas as partes envolvidas (devedor em recuperação e credores); ii) a segunda corrente, adotada pela ilustre Relatora, advoga a tese de que o Plano de Recuperação poderá novar a dívida dos coobrigados, desde que a eficácia de tal cláusula supressória se limite aos credores que a aprovaram sem ressalvas, não podendo alcançar os credores ausentes, os que não votaram (apesar de presentes) e os que votaram contrariamente à aprovação do plano; este entendimento é consubstanciado por parcela da Terceira Turma - Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva e Nancy Andrighi – conforme se extrai do voto prolatado nestes autos e dos votos prolatados no Resp 1.700.487/MT; (iii) a terceira corrente, por sua vez, defende que a cláusula supressória será existente, válida e eficaz para todos os credores da recuperanda, ainda que tenham votado contra os termos do plano ou efetivado qualquer ressalva sobre referida disposição, bastando para tanto que tenha havido a aprovação pelo quórum legal, devidamente homologado pelo juízo. É a tese majoritária da Terceira Turma do STJ, corroborada pelos Ministros Marco Aurélio Bellizze, Moura Ribeiro e Paulo de Tarso Sanseverino, conforme manifestações no Resp n. 1.700.487/MT; (iv) a quarta, capitaneada pelo professor Fábio Ulhoa Coelho, traz solução intermediária entre as duas anteriores."
O ministro Luis Felipe Salomão, examinando a doutrina e o direito estrangeiro, entendeu que a Lei não autoriza a supressão da garantia fidejussória sem a concordância do credor e concluiu: "Diante disso, penso que a ineficácia da cláusula supressória deve ser restrita às garantias pessoais e desde que não tenha havido anuência posterior ao Plano pelos respectivos credores, sendo, no entanto, plenamente eficaz no que tange às garantias reais."1
A discussão iniciada no julgamento do REsp 1.797.924/MT não foi concluída, visto ter sido julgado prejudicado o recurso. O tema se encontra novamente afetado à Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça no REsp 1.885.536/MT, sem previsão de julgamento.
Embora respeitável o entendimento em sentido contrário, as razões sustentadas no voto do Ministro Marco Aurélio Bellizze, seguidas pela maioria da Terceira Turma, são muito convincentes e razoáveis, fundadas no princípio majoritário, que é essencialmente a base do modelo de tratamento da insolvência, entregando-se a decisão sobre o destino do crédito aos próprios credores, coletivamente. O que é melhor para a maioria, deve ser melhor para todos.
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1 Esse entendimento está expresso no direito italiano no novo Codice dela crisi d’impresa (Decreto Legislativo 12 gennaio 2019, n. 14), no seu art. 59, 2. in verbis: "2. Nel caso in cui l'efficacia degli accordi sia estesa ai creditori non aderenti, costoro conservano impregiudicati i diritti contro i coobbligati, i fideiussori del debitore e gli obbligati in via di regresso" (em tradução livre: No caso de eficácia estendida dos acordos aos credores não aderentes, eles conservam sem prejuízo os direitos contra os coobrigados, os fiadores do devedor e as obrigações em via de regresso).