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O direito de recesso nos contratos de concessão comercial - A semelhança entre os casos da Ford do Brasil e da Renault Itália

O direito de recesso nos contratos de concessão comercial - A semelhança entre os casos da Ford do Brasil e da Renault Itália.

20/1/2021

No Brasil, assim como ocorreu em outros países, foi adotado o modelo da concessão comercial para a distribuição de veículos pelas montadoras. Prefere a montadora de automóveis, por uma escolha de ordem econômica e empresarial, concentrar seus esforços na produção e deixar a concessionários a distribuições dos seus produtos e a assistência aos consumidores. A relação contratual que se estabelece entre a montadora e a sua concessionária é sabidamente marcada pela dependência econômica e pela desigualdade de forças. A lei 6.729/79, conhecida como Lei Ferrari, veio justamente para regular essa relação desigual. É uma lei, como afirma Humberto Theodoro Júnior e Adriana Mandim Theodoro de Mello, "de ordem pública, editada com o propósito de interferir no relacionamento estabelecido entre o fabricante de veículos automotores, de via terrestre, e seus revendedores, visando tutelar a parte economicamente mais fraca – o concessionário – quase sempre sujeito a grandes investimentos técnicos para desempenhar a concessão. Por isso, a preocupação central da lei 6.729 é com a duração do contrato e com a sua ruptura" (Contratos de Colaboração Empresarial. Ed. Forense,  p. 344).

Bem a propósito desta observação, cabe lembrar o que constou na exposição de motivos da Lei Ferrari: "... a própria circunstância de uma grande empresa necessitar de uma rede para a comercialização e assistência técnica de seus produtos, ao mesmo tempo em que evidencia o seu extraordinário porte econômico e tecnológico, suscita a desigualdade decorrente do estilhaçamento da relação, na medida em que confronte a grande unidade da empresa concedente com os concessionários, limitados na sua capacidade negocial em razão de seu porte e de sua multiplicidade. A concedente, como grande empresa, tende a tornar-se o senhor da relação contratual e fazer prevalecer sobre cada concessionário isolado a sua vontade, pois detém, graças a sua cadeia de monopólios justapostos, um terrível poder de domínio."

Na lição de Miguel Reale, que participou da elaboração da Lei Ferrari, "a lei 6.729 surgiu, assim, em razão de plena consciência de haver uma estrutura oligopolística (a das "montadoras" de veículos) perante a qual os "distribuidores" se colocavam em visível desvantagem, sem condições de per si  obterem o reconhecimento de normas contratuais reconhecedoras de seu autônomo status  empresarial, na conclusão do contrato e ao longo de sua execução" (Estrutura Normativa da lei 6.729 sobre Concessões Comerciais entre Produtores e Distribuidores de Veículos automotivos Terrestres. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, vol. 91/1996, p. 63-103. Acesso aqui).

A situação dos concessionários brasileiros, não obstante o esforço legislativo, continua a evidenciar esse enorme poder que as montadoras têm nessa relação contratual, e por conta de uma equivocada interpretação, reduzida a um binário tratamento entre os contratos de modelo clássico liberal e os contratos de consumo, muitos tipos contratuais, especialmente envolvendo empresas, não têm recebido dos tribunais a devida atenção para a realidade da dependência econômica e para a claríssima desigualdade de forças existentes1, reconhecida pela própria Lei Ferrari nos contratos de concessão. A recente notícia do encerramento das atividades da Ford no Brasil suscitou novamente a fragilidade dessa relação entre os concessionários e as montadoras.

Há alguns anos na Itália, entre 1992 e 1996, se verificou uma situação que guarda alguma semelhança com esta que ocorre agora no Brasil com a Ford. A poderosa montadora francesa Renault (Renault Itália spa) decidiu exercer o direito de recesso e encerrar o contrato de concessão comercial com aproximadamente 200 distribuidores na Itália. O motivo teria sido a necessidade de reestruturação da empresa. Entendendo abusivo o exercício do direito de recesso neste caso, os ex-concessionários da Renault Itália, reunidos em uma associação (Associazione Concessionari Revocati), demandaram em 1997 na Justiça italiana a indenização pelos danos causados em razão do rompimento dos contratos. O tribunal de Roma e a Corte de Apelação (Corte d'Appello) negaram a pretensão, entendendo indevido o controle judicial do exercício abusivo do direito de recesso previsto no contrato (autonomia privada). O caso chegou à Corte de Cassação Italiana, que, pela famosa decisão de 18 de setembro de 2009 (CASSAZIONE CIVILE, Sez. III, 18 settembre 2009, n. 20106 - Pres. Varrone - Rel. Urban - P. M. Destro - A. G. c. Renault Italia S.p.a.), reconheceu a violação da boa-fé objetiva no exercício do recesso.

A decisão da Corte de Cassação italiana tem fortes fundamentos no princípio da boa-fé objetiva, e reconhece admissível o controle judicial do ato de autonomia privada. Quando no exercício de um ato de autonomia privada se verifica um interesse contrastante com outras partes da relação contratual, entendeu a Corte italiana que é sempre possível o seu controle judicial, porque a decisão reclamada do juiz impõe a interpretação do contrato e da vontade das partes, segundo a boa-fé, que é o instrumento com o qual o juiz deve operar em busca do equilíbrio da relação contratual.

Afirmou a Suprema Corte italiana que o exercício do recesso pelo contratante envolve uma decisão econômica e empresarial que não pode ser objeto do controle judicial. É uma prerrogativa do empreendedor que opera no mercado e assume o risco das suas escolhas. O que deve ser examinado judicialmente, ou sindicado, é o abuso ou desvio que eventualmente pode ocorrer no ato de autonomia que é praticado em favor daquela escolha. Essa interpretação, e propriamente o controle judicial sobre o ato de autonomia privada, devem ser feitos tendo em conta a supremacia e dependência de uma parte em relação a outra, buscando o temperamento dos interesses opostos. Entendeu a Corte de Cassação italiana que deixar de examinar o recesso neste caso, à luz da boa-fé objetiva e da relevância do seu exercício abusivo, é consentir que o recesso se transforme em recesso arbitrário, ad libitum, seguramente não permitido pelo ordenamento jurídico. Destacando a colaboração entre os contratantes como característica deste contrato e a dependência econômica existente nesta relação, a Suprema Corte cassou a decisão da Corte de Apelação de Roma (Corte d’Appello) e devolveu a causa para nova decisão, na qual o ato de recesso deverá ser examinado com base na boa-fé objetiva .

Em novo julgamento da causa, a Corte de Apelação de Roma (Corte d'Appello), em 5 de fevereiro de 2018 (decisione n. 691/2018),  passou a considerar se o recesso da Renault, não obstante o pré-aviso e a previsão contratual, poderia ser admitido como um ato inesperado e surpreendente, e, portanto, se a concedente criou a legítima expectativa de continuação do contrato ou, em outras palavras, se ocorreu a violação da boa-fé objetiva. Não se examinou o motivo pelo qual o recesso ocorreu, mas a forma de agir da concedente (procedimento). No caso, é importante lembrar que os autores do pedido levantaram a hipótese de que o motivo do recesso foi o fato de interessar à concedente colocar ex-dirigentes na rede de vendas, para evitar elevadas despesas com o rompimento da relação de trabalho. A Corte de Apelação (Corte d’Appello) não examinou esse fato, como também não examinou a alegação de reorganização empresarial da concedente como motivo do recesso, entendendo que não é possível decidir sobre a validade dos motivos, que estão fora do poder de controle judicial, sob pena de transformar o direito de livre recesso (ad nutum) em recesso por "justa causa". Não examinou, igualmente, a hipótese de abuso de direito no ato de recesso.

A nova decisão concentrou o exame somente na forma como ocorreu o ato de recesso em face da boa-fé objetiva e reconheceu que a concedente não atendeu ao dever de lealdade e correção, em razão da desproporção dos interesses em jogo, porque aos concessionários a concedente havia preordenado incremento de vendas, investimentos em novo show room, publicidade, abertura de subconcessionárias, aumento de capital social, construção de sedes e aquisição de materiais e contratação de pessoas, tudo sem que pudessem amortizar esses investimentos diante do curto espaço de tempo do pré-aviso, que foi de 12 meses, ou que pudessem negociar a duração do contrato ou, ainda, que fossem indenizados. Ao final, reconheceu que a concedente violou o dever de boa-fé objetiva e causou danos aos concessionários, que confiaram na justa expectativa de continuidade dos contratos. Determinou o pagamento de indenizações, calculadas individualmente em favor de cada concessionário (um pouco mais de vinte concessionários), alcançando globalmente a soma aproximada de dois milhões de euros.

Este caso foi muito debatido na Itália e levou anos a encontrar uma decisão final. Resulta como ponto de maior interesse deste julgamento o entendimento que se consolidou no sentido de que o ato de recesso, ou rompimento unilateral dos contratos de concessão, mesmo quando atendidos aparentemente o direito vigente e o regime contratual, podem ser examinados em juízo, não pelo conteúdo da decisão empresarial, mas pela forma com a qual ela é levada a efeito, protegendo os interesses da parte mais fraca na relação com base exclusivamente na boa-fé objetiva.

A decisão deste caso suscitou um vivo debate na doutrina italiana, porque a Corte de Cassação decidiu fundamentalmente examinar o ato de exercício da autonomia privada com base no princípio da boa-fé objetiva. Não obstante as críticas que recebeu, a decisão bem considerou a justa expectativa dos concessionários em dar continuidade ao contrato quando determinou a indenização pelo rompimento não esperado, que impossibilitou a recuperação dos investimentos realizados.

No contrato de concessão comercial, em razão dos investimentos que o concessionário é levado a fazer, o tempo de duração dessa relação tem especial relevância. A nossa Lei Ferrari identifica muito bem a natureza de duração desse contrato, assim como ocorreu expressamente com o Regulamento n. 1.400/2002 da União Europeia, que cuida das práticas no setor de automóveis, constando dos seus considerandos a necessidade de que seja assegurado ao concessionário o tempo necessário para recuperar o seu investimento, alargando-se o aviso de recesso pela concedente, mesmo nos casos de contratação por tempo determinado. É o que está escrito no ítem 9, in verbis: "Por outro lado, para reforçar a independência dos distribuidores e oficinas de reparação face aos seus fornecedores, devem ser previstos períodos mínimos para a comunicação da não renovação de acordos concluídos por um período limitado e para a rescisão de acordos concluídos por um período ilimitado."

No caso da Ford do Brasil temos como certo que as expectativas dos concessionários, em relação à duração dos respectivos contratos, certamente pesará na solução que se deve encontrar para a despedida do nosso país da centenária e emblemática fabricante de automóveis.

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1 Escrevemos a respeito deste tema aqui nesta Coluna, no artigo "Os contratos paritários na Teoria Geral dos Contratos – Uma visão crítica".

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Coordenação

Carlos Alberto Garbi Pós-Doutor em Ciências Jurídico Empresariais pela UC - Universidade de Coimbra. Mestre e Doutor em Direito Civil pela PUC - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Professor de Direito Privado das FMU - Faculdades Metropolitanas Unidas. Vice-Presidente do Conselho do INBRADIM. Membro Acadêmico-Associado da ABDC - Academia Brasileira de Direito Civil. Diretor Nacional de Publicações da ADFAS - Associação de Direito de Famiília e das Sucessões. Advogado. Consultor. Parecerista.