Ao final de cada ano é muito comum olhar para o que passou e procurar nas experiências vividas os acertos e erros cometidos. A passagem para o novo ano é sempre uma oportunidade de reflexão, para tentar novamente, fazer o que deixou de ser feito, reorganizar a nossa vida, inovar no trabalho, enfim, começar de novo. É natural neste momento o impulso de fazer uma retrospectiva, listar acontecimentos e decisões importantes dos tribunais.
Pretendemos nesta oportunidade olhar menos para o passado e mais para o futuro do Direito Privado.
No próximo ano entra em vigor a Nova Lei de Recuperação e Falência (lei 14.112, de 24 de dezembro de 2020), trinta dias depois da sua publicação. Esta nova legislação, que altera substancialmente o regime vigente, terá um papel importante na solução da crise das empresas, especialmente em razão dos efeitos da pandemia.
No Direito Empresarial surgem novas e renovadas questões, que interessam ao leitor, como é o caso ainda da desconsideração da personalidade jurídica, depois da Declaração da Liberdade Econômica, e das coligações e relações de grupo de sociedades, pouco desenvolvidas no Direito brasileiro. No Direito Societário o financiamento de empresas, que encontrou novos modelos, tem efeitos importantes sobre as sociedades, sócios e credores, que devem ser estudados. A responsabilidade dos administradores e controladores das sociedades empresárias é um tema sempre aberto.
Os efeitos da pandemia serão sentidos mais acentuadamente no próximo ano. Os contratos serão afetados. Pretendemos trazer ao leitor desta coluna algumas observações comparativas do nosso direito com as recentes reformas do Direito Contratual francês (Ordonnance nº 2016-131) e do Direito Contratual alemão (Schuldrechtsmodernisierungsgesetz - 2002), especialmente do ponto de vista da imprevisão, que tanto interessa ao direito brasileiro nesse momento.
Cabe lembrar, ainda no campo contratual, as dúvidas que ainda existem sobre os efeitos da modificação das circunstâncias existentes ao tempo da contratação, bem como sobre o dever de renegociação dos contratos e os limites da sua readequação por decisão do juiz. Um tema antigo e correlacionado, e que ganha atualidade, é a teria da imprevisão, já superada em outros países, que adotaram orientação diversa, mas que está na letra do nosso Código.
Há outras questões do Direito Contratual que suscitam debate, como é o caso da dualidade de regimes (civil-liberal e do consumidor) incapaz de resolver adequadamente todas as questões que se apresentam.
O Direito de Família e o direito da sucessão reclamam mudanças. Não obstante a aparente evolução dos últimos anos, indicada nas decisões de nossos tribunais, os resultados não são bons, refletidos no crescente litígio e incertezas nessas relações. Devemos nos questionar se o que fizemos até agora trouxe estabilidade e segurança para as relações de família e ao direito das sucessões. Cabe investigar se demos a devida atenção à ordem constitucional, que tem na família a base da sociedade e que reconhece, por isso, o interesse de ordem pública no ordenamento dessas relações.
Dúvidas sobre a Constituição e efeitos da união de fato, sobre o direito a alimentos (transitórios, compensatórios, sancionatórios etc.), sobre a prisão civil, sobre a parentalidade, sobre o afeto, sobre a monogamia, sobre os múltiplos e simultâneos relacionamentos e sobre as novas famílias continuam desafiadoras. Delimitar o espaço de liberdade e de autonomia da pessoa nessas relações ainda é um tema aberto.
A violência doméstica, a violência de gênero e a responsabilidade parental são ainda questões que não encontraram respostas eficientes do nosso ordenamento.
Repensar o Direito de Família e o Direito das Sucessões se impõe quando se verifica que existe incerteza e insegurança no direito que praticamos, incapaz de dizer com clareza, por exemplo, se o companheiro de uma dupla relação (concubinária) tem direito ou não a dividir a pensão deixada pelo companheiro morto, como verificamos no recente julgamento do Supremo Tribunal Federal, decidido por um voto. Devemos reconhecer que o direito que praticamos não tem apresentado resultados aceitáveis. A família não pode viver e se organizar sob a intranquilidade que verificamos hoje na definição de direitos.
No campo da responsabilidade civil, ou do direito de danos, há inúmeras outras questões que merecem atenção, como é o caso do dano coletivo e dos danos decorrentes da violação dos dados pessoais, para dizer apenas do que se apresenta mais recentemente. A efetividade da reparação é um problema permanente.
O Direito Privado não passa ao largo do amplo debate sobre a crise do Estado e da Legalidade, bem como sobre a produção do direito e o ordenamento jurídico. Nesse campo tem especial interesse o direito vivente nas decisões judiciais e as influências que recebemos, e são benvindas, do sistema do common law.
Entender e aplicar o sistema de precedentes no Brasil é o grande desafio, não só técnico, mas sobretudo cultural, especialmente para o Direito Privado. Estamos convencidos de que o sistema de precedentes, se aperfeiçoado, poderá trazer a racionalidade que se perdeu no Direito brasileiro.
Me recordo de uma observação de Robert Weaver Shirley, numa pequena monografia publicada em 1987 a respeito da antropologia jurídica, um tema pouco tratado no Brasil. Dizia o autor que "do ponto de vista da ciência jurídica pura e da lógica técnica no elaborar as leis, o Brasil pode ser considerado um país desenvolvido. É na aplicação das leis, entretanto, que surgem os problemas; na divisão nítida entre a teoria e a prática, que permitiu que a forte tendência liberal na filosofia brasileira existisse lado a lado com uma das mais elitistas e estratificadas sociedades de classe do mundo. (...) Essa lacuna entre o direito formal e o aplicado é real em todos os países, mas no Brasil alcançou proporções quase surrealistas. Os brasileiros simplesmente não acreditam na lei. Creem, sim, numa estrutura de poder e em mediadores do poder que se movem paralelamente à ordenação formal das leis substantivas do País."1
O tempo não mudou muito a realidade. O Direito Privado deve ser vivente também no dia a dia de todos nós. Podemos, todos nós, fazer alguma coisa a respeito. Convidamos o leitor a participar desta empreitada no próximo ano, interagindo com a nossa coluna, que oferece espaço para comentários e sugestões.
Agradeço a todos que dedicaram a sua atenção à leitura desta coluna em 2020 e auguro um ano novo com paz e saúde.
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1 Antropologia jurídica. São Paulo : Editora Saraiva, 1987, p.89.