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O Direito à livre associação e a cobrança de contribuições de manutenção e conservação de loteamentos de proprietários e possuidores não associados

O Direito à livre associação e a cobrança de contribuições de manutenção e conservação de loteamentos de proprietários e possuidores não associados.

23/12/2020

Há anos a controvertida cobrança de contribuições, promovida por associações de proprietários e moradores de loteamento contra não associados, ocupa os Tribunais brasileiros. De um lado, os interesses de proprietários que se reuniram e formaram uma associação visando melhorias no loteamento. De outro lado, proprietários e possuidores que não desejaram se associar e que resistem à cobrança de contribuições em favor de entidade da qual não participam. A discussão passa pelo direito constitucional de liberdade de associação (art. 5º, XX, CF), sempre defendido pelos não associados, e pela alegação de enriquecimento sem causa, defendida pelas associações.

A matéria chegou ao Supremo Tribunal Federal pelo RE 432106, julgado pela Primeira Turma, em 20.09.2011. Pelo voto do Relator, Ministro Marco Aurélio, se decidiu que: ”Por não se confundir a associação de moradores com o condomínio disciplinado pela Lei nº 4.591/64, descabe, a pretexto de evitar vantagem sem causa, impor mensalidade a morador ou a proprietário de imóvel que a ela não tenha aderido. Considerações sobre o princípio da legalidade e da autonomia da manifestação de vontade – artigo 5º, incisos II e XX, da Constituição Federal.” (RE 432106, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 20/09/2011, DJe-210 DIVULG 03-11-2011 PUBLIC 04-11-2011 EMENT VOL-02619-01 PP-00177).

Logo depois, em 20.10.2011, ao julgar o AI 745.831 RG/SP, no RE 595911/SP, o plenário do Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência de repercussão geral desse tema, pelo voto do Min. Dias Toffoli, vencido o Min. Marco Aurélio. A ementa da decisão diz o seguinte: “AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXIGIBILIDADE DE COBRANÇA DE TAXAS DE MANUTENÇAO E CONSERVAÇÃO DE ÁREA DE LOTEAMENTO. DISCUSSÃO ACERCA DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA LIBERDADE DE ASSOCIAÇÃO. MATÉRIA PASSÍVEL DE REPETIÇÃO EM INÚMEROS PROCESSOS, A REPERCUTIR NA ESFERA DE INTERESSE DE MILHARES DE PESSOAS. PRESENÇA DE REPERCUSSÃO GERAL.”

Afetada a matéria, portanto, no Tema 492 de Repercussão Geral, o seu julgamento foi realizado em sessão virtual, cujo resultado foi proclamado em 18 de dezembro último, nos termos seguintes: “Decisão: O Tribunal, por maioria, apreciando o tema 492 da repercussão geral, deu provimento ao recurso extraordinário e fixou a seguinte tese: "É inconstitucional a cobrança por parte de associação de taxa de manutenção e conservação de loteamento imobiliário urbano de proprietário não associado até o advento da Lei nº 13.465/17, ou de anterior lei municipal que discipline a questão, a partir da qual se torna possível a cotização dos proprietários de imóveis, titulares de direitos ou moradores em loteamentos de acesso controlado, que i) já possuindo lote, adiram ao ato constitutivo das entidades equiparadas a administradoras de imóveis ou (ii) sendo novos adquirentes de lotes, o ato constitutivo da obrigação esteja registrado no competente Registro de Imóveis", nos termos do voto do Relator, vencidos os Ministros Edson Fachin, Ricardo Lewandowski, Rosa Weber, Roberto Barroso e Gilmar Mendes, que negavam provimento ao recurso. O Ministro Marco Aurélio deu provimento ao recurso e fixava tese nos termos de seu voto. Sessão Virtual de 04.12.2020 a 14.12.2020.”

Tivemos a oportunidade de participar do julgamento do tema de repercussão geral, atuando como advogado da ANVIFALCON – Associação Nacional de Vítimas de Falsos Condomínios, admitida como amicus curiae. Prevaleceu no julgamento, por maioria, o voto do Min. Dias Toffoli.

A decisão interessa a milhares de pessoas e lamenta-se que o julgamento deste tema, sensível, tenha sido realizado em sessão virtual, restringindo, senão anulando, o debate público da causa pelo colegiado, como deveria ocorrer. Não me parece aceitável que a nossa Suprema Corte tenha adotado essa forma de julgar os processos mais importantes do país, não obstante as dificuldades surgidas em razão da pandemia. Esta questão envolvendo o julgamento virtual fica para outro momento.1

A matéria de repercussão geral em julgamento diz respeito ao que se convencionou chamar de “loteamento fechado”, que é um loteamento constituído na vigência da Lei nº 6.766/79, mas que teve o acesso fechado, restringido ou “controlado” por concessão municipal em favor de associações de proprietários. Assemelha-se ao condomínio, mas não é. É o falso condomínio. Não há no “loteamento fechado” partes comuns ou unidades autônomas, como não há Convenção de Condôminos. Implantado o loteamento, o lote é “um novo todo”, na feliz expressão de Arnaldo Rizzardo2, propriedade singular e independente dos demais lotes e do próprio loteamento.

O voto do Ministro Dias Toffoli enfrenta a discussão a respeito da “possibilidade de administradora de loteamento imobiliário urbano, constituída sob forma de associação de moradores, exigir de proprietário ou possuidor de lote, que manifesta desejo de a ela não se associar, o pagamento de taxas de conservação, de manutenção de serviços e realização de benfeitorias”.

A identificação dessas associações como administradoras de loteamentos, como ocorreu na interpretação do Relator, veio com a Lei nº 13.465/2017, que incluiu o art. 36-A, na Lei do Parcelamento do Solo Urbano (Lei nº 6.766/1979), para dizer que essas associações “vinculam-se, por critérios de afinidade, similitude e conexão, à atividade de administração de imóveis”.

Não concordamos com essa interpretação, porque a administração depende de contrato e impõe prestação de contas, que não existem para o não associado. Não nos parece que a atividade dessas entidades é propriamente de administração, que pressupõe a sua sujeição à vontade dos contratantes. A associação tem vida própria, segundo as deliberações tomadas por maioria de votos, e não pode ser entendida como prestadora de serviços contratados. Não há razão para dizer que essas associações são administradoras de loteamentos, até porque o loteamento não está sujeito à administração. Uma vez implantado, os lotes estão livres de qualquer vínculo.

A par desta questão, o voto do Ministro Dias Toffoli afirma que a Lei nº 13.465/2017, que dispõe de modo inaugural acerca da questão dos loteamentos fechados, representa um marco legislativo do tema. Assinala que as premissas que orientaram o julgamento do RE 432.106/RJ (que destacamos acima) continuam válidas, com adição da Lei nº 13.465/2017, a partir da qual as obrigações decorrentes da atividade das associações não vinculam somente os associados, como ocorria antes do advento da Lei.

Admite que os direitos fundamentais, no caso o direito de liberdade de associação, podem ser limitados por lei, embora a restrição ao direito de liberdade deva ser mínima. Afasta o princípio da vedação do enriquecimento sem causa, o princípio da eticidade e a remissão à obrigação propter rem, não previstos constitucionalmente, como argumentos para contraposição à liberdade associativa definida na Constituição, que deve ser sopesada em face do princípio da legalidade. Conclui que a obrigação só pode ser imposta por lei ou pela vontade. Em consequência o Ministro Dias Toffoli afirma: “exigir daquele que não deseja se associar o pagamento de taxas ou encargos cobrados em função dos serviços prestados por uma associação a determinada coletividade significaria, na prática, obrigar o indivíduo a se associar por imposição da vontade coletiva daqueles que, expressamente, anuíram com a associação e seus encargos. Equivaleria, também, a fabricar e legitimar fonte obrigacional que não seja a lei nem a vontade.”

Este entendimento está de acordo com a decisão anterior da primeira Turma do Supremo Tribunal Federal e bem interpreta a liberdade constitucional de associação.

O voto do Ministro Dias Toffoli ganha corpo e inova a partir do momento em que afirma a equiparação da associação de proprietários à administradora de imóveis e a equiparação dos loteamentos de acesso controlado a condomínios edilícios.

Com efeito, a lei nº 13.465/2017, que não pode ter efeitos retroativos, não equiparou o loteamento de acesso controlado ao condomínio de lotes. Constou do novo art. 1.358-A, § 2º, do Código Civil, que: “Aplica-se, no que couber, ao condomínio de lotes o disposto sobre o condomínio edilício...”

Portanto, a aproximação das figuras ou tipos (e não equiparação) ocorreu entre o condomínio de lotes e o condomínio edilício. Não há equiparação do condomínio edilício ao loteamento de acesso controlado, justamente o chamado “falso condomínio”. Logo, se não há equiparação, e não há mesmo, não tem sustentação, com este fundamento, a possibilidade de cotização, e nem se pode dizer que o ato constitutivo da associação tem o efeito de uma Convenção para prever a obrigação, porque lhe falta a manifestação de vontade.

Aceitar a obrigação do não associado, mesmo depois da lei nº 13.465/2017, autoriza o uso do mesmo argumento que defendeu o voto do Ministro Dias Toffoli, que me permito reproduzir novamente: “exigir daquele que não deseja se associar o pagamento de taxas ou encargos cobrados em função dos serviços prestados por uma associação a determinada coletividade significaria, na prática, obrigar o indivíduo a se associar por imposição da vontade coletiva daqueles que, expressamente, anuíram com a associação e seus encargos. Equivaleria, também, a fabricar e legitimar fonte obrigacional que não seja a lei nem a vontade.”

Há um outro aspecto do voto referido que igualmente suscita dúvida. Afirmou-se: “Assim, para que exsurja para os beneficiários o dever obrigacional de contraprestação pelas atividades desenvolvidas pelas associações (ou outra entidade civil organizada) em loteamentos, é necessário que a obrigação esteja disposta em ato constitutivo firmado após o advento da Lei nº 13.465 /2017 (e que este esteja registrado na matrícula atinente ao loteamento no competente Registro de Imóveis, a fim de se assegurar a necessária publicidade ao ato).”

Não me parece possível fazer o registro (depois indicado como “averbação”) deste ato constitutivo como referido no voto. Não há matrícula do loteamento aberta para receber o registro. Há matrícula dos lotes de terreno nas quais não tem acesso o “ato constitutivo da obrigação”, salvo por força de uma inovadora interpretação dos atos e fatos registráveis ou inscritíveis.

Admite o voto, ainda, que lei municipal possa definir essa obrigação de cotização, pelo exercício concorrente da competência legislativa. Anota nesse sentido o que se decidiu no RE 607.940/DF, pelo voto do Min. Teori Zavascki, que julgou constitucional lei do Distrito Federal que disciplinava “unidades autônomas e áreas comuns condominiais”, que é figura semelhante aos loteamentos com acesso controlado, segundo entendeu o Ministro Dias Toffoli no caso em discussão.

Contudo, com todo respeito, as situações são bem diferentes. A lei do Distrito Federal fala explicitamente na Lei nº 4.591/64, em unidades autônomas, condomínio e áreas comuns. É certo que se refere a lotes, mas incluídos, ao que é dado entender, “no condomínio”. A hipótese é diferente do loteamento que, por concessão do poder municipal, passou a ter acesso controlado.

Com esses fundamentos, o voto do Ministro Dias Toffoli conclui que, à luz dos princípios constitucionais da liberdade associativa e da legalidade, não é possível cobrar do proprietário não associado qualquer contribuição até o advento da Lei 13.465/17, ou de lei anterior municipal, que disponha sobre essa obrigação, fixando a tese nos termos seguintes:

“É inconstitucional a cobrança por parte de associação de taxa de manutenção e conservação de loteamento imobiliário urbano de proprietário não associado até o advento da Lei nº 13465/17, ou de anterior lei municipal que discipline a questão, a partir da qual se torna possível  cotização dos proprietários de imóveis, titulares de direitos ou moradores em loteamentos de acesso controlado, que i) já possuindo lote, adiram ao ato constitutivo das entidades equiparadas a administradoras de imóveis ou (ii) sendo novos adquirentes de lotes, o ato constitutivo da obrigação esteja registrado no competente Registro de Imóveis.”

Decorre do enunciado que o proprietário ou possuidor de lote que não é associado, ou deixou de ser, só poderá ser obrigado ao pagamento de qualquer contribuição a partir da lei n° 13.465/2017, ou lei municipal anterior, que defina essa obrigação, desde que também atendidas a uma das duas condições: se associou ou o ato constitutivo da obrigação foi registrado no Registro de Imóveis antes da aquisição.

Percebe-se que o enunciado da tese fixada não decorre integralmente dos fundamentos do voto e condiciona a obrigação de contribuição à existência de lei e ao registro do ato constitutivo da obrigação, este último para o caso de novos adquirentes. Deixa dúvidas a respeito desse ato constitutivo da obrigação e do seu registro, assim como oferece dúvida quanto à legalidade da obrigação, porque não se verifica a equiparação de loteamento a condomínio na lei, se é que é possível atribuir por lei efeitos iguais a coisas diferentes.

A decisão representa um enorme avanço no tratamento do tema, em favor da liberdade associativa constitucional, e de deve ser comemorada, mas há questões que merecem ser esclarecidas.

Cabe registrar que este artigo está fundado na “minuta” do voto, divulgada pelo site do Supremo Tribunal Federal, que poderá sofrer modificação de redação antes da publicação. Também deve ser lembrado que a decisão está sujeita a embargos de declaração. Em outra oportunidade pretendemos voltar ao tema.

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1- Vale lembrar a carta pública, de 14 de abril de 2020, dirigida ao Presidente do STF, assinada por mais de 100 advogados, contra essa forma de julgamento, na qual se encontram as razões para a revogação da ampliação da competência do plenário virtual, que não assinei por falta de oportunidade, mas que reitero hoje, noticiada pelo Migalhas aqui.

2- Considera-se “lote”, “o terreno servido de infra-estrutura básica cujas dimensões atendam aos índices urbanísticos definidos pelo plano diretor ou lei municipal para a zona em que se situe” (art. 2º, § 4º, Lei nº 6.766/1979, incluído pela Lei nº 9.785/1999).  Feita da divisão da gleba em lotes, bem anota Arnaldo Rizzardo, “estes não mais são parte daquela, mas propriedades separadas, que passam a constituir, cada uma, um novo todo, uma nova propriedade” (Promessa de compra e venda e parcelamento do solo urbano. 6ª ed. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 35.).

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Coordenação

Carlos Alberto Garbi Pós-Doutor em Ciências Jurídico Empresariais pela UC - Universidade de Coimbra. Mestre e Doutor em Direito Civil pela PUC - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Professor de Direito Privado das FMU - Faculdades Metropolitanas Unidas. Vice-Presidente do Conselho do INBRADIM. Membro Acadêmico-Associado da ABDC - Academia Brasileira de Direito Civil. Diretor Nacional de Publicações da ADFAS - Associação de Direito de Famiília e das Sucessões. Advogado. Consultor. Parecerista.