Novos Horizontes do Direito Privado

Culpa civil, bem comum e doação de alimentos

Culpa civil, bem comum e doação de alimentos.

21/10/2020

Introdução

Somos uma República que se fundamenta no bem comum. Na dignidade da pessoa humana, na provisão das necessidades dela e numa ordem jurídica justa, estável e segura. Essa República, assim alicerçada, constitui um Estado Democrático de Direito, um governo do povo, pelo povo e para o povo, uma democracia vivificada pela Justiça.

A dignidade é um atributo da pessoa humana1; é o atributo que, pelo reconhecimento da transcendência daquela, trata-a como princípio, sujeito e fim de todas as instituições sociais, que devem ser ordenadas para a consecução da felicidade humana2, outorgando ao homem todos os direitos, todas as garantias e toda a estrutura operacional do Estado, para ensejar aquela plena realização de cada um, segundo as potencialidades individuais3. Trata-se da essência, da substância do próprio Estado Democrático de Direito. Sem a preservação da inata dignidade do ser humano não há Estado, Democracia e Direito. Restaria a barbárie.

Formado por espírito e matéria, o ser humano tem concretas e variadas necessidades intelectuais, afetivas, morais, corporais, e o Estado se legitima com o planejamento e a execução de políticas públicas econômicas e sociais que satisfaçam aquelas, em igualdade, e a ampliação da satisfação das mesmas em conformidade com o desenvolvimento coletivo. Da concepção ao nascer e respirar ar puro4 até o último suspiro e o repouso num pedaço de chão5, passando pelo comer, beber e sonhar, a pessoa humana tem essas necessidades que o Estado deve satisfazer.

Este ser, social por natureza, com necessidades que geram dever público e obrigação privada, precisa de uma ordem jurídica – Estado de Direito –, justa, estável e segura. Justa, decorrente da atribuição do devido a cada qual. Estável, invariável em seu núcleo – vida, liberdade, igualdade – e progredindo para os direitos de terceira geração. Segura, protegida pelas garantias e direitos individuais, e pela efetividade deles.

Fontes

A República, por se fundamentar no bem comum e constituir num Estado Democrático de Direito, depende de três coisas para alcançar o seu fim: a doutrina, a norma e a jurisprudência. Fontes do direito ou não, elas constituem as mais importantes bases da ordem jurídica justa, estável e segura.

A doutrina é o resultado da produção científica dos juristas, o estudo que fazem sobre a origem do Direito, as suas divisões e classificações, as suas definições, os seus conceitos, as sistematizações que empreendem, as críticas e sugestões sobre as normas e as decisões administrativas e judiciais, iluminando o caminho dos legisladores e dos julgadores. Ao exarar opinião comum sobre certa matéria, essa obra assume especial relevância na compreensão do Direito e na promoção da Justiça.

A norma é um preceito geral e abstrato, dotado de coercibilidade, compreendendo o resultado da produção legislativa, desde emendas constitucionais até resoluções, passando pela lei complementar, delegada ou provisória (art. 59, incs. I a VII, Constituição da República).

A jurisprudência é o resultado da atividade-fim do poder jurisdicional. O conjunto das decisões dos tribunais que, na medida em que se são harmônicas entre si e caminhem na mesma direção, assumem um papel mais importante na constituição da ordem jurídica justa, estável e segura. Outorgam segurança para o exercício dos direitos das pessoas físicas e jurídicas que, na dinâmica da vida, precisam conhecer e, na medida do possível, prever o alcance e a aceitação de seus atos e omissões perante a coletividade e às autoridades. Inteligência alguma, artificial ou não, suprimirá a dicção do direito aplicável aos casos concretos, pois os seres humanos, com a sua inteligência e vontade, voltam-se ao aperfeiçoamento constante, operando com criatividade e consciência de si e do próximo6.

Ao lado dos princípios gerais do direito, da analogia e dos usos e costumes (art. 4º, Lei de Introdução ao Código Civil), a doutrina, a lei e a jurisprudência formam o conteúdo básico da ordem jurídica e de sua qualidade dependem a justiça, a estabilidade e a segurança dessa disposição conveniente das coisas que, por sua vez, ao lado da provisão das necessidades do ser humano e da preservação de sua dignidade, podem constituir uma sociedade livre, justa e solidária, um efetivo Estado Democrático de Direito ou um governo absolutista, assumido ou disfarçado.

Esses pontos são vitais para o Direito e incidem direta e concretamente da vida de cada cidadão, posto que é regido pelas normas, que devem obedecer um processo legislativo moderno, serem iluminadas pela doutrina e bem interpretadas pelos julgadores7.

Culpa civil

O compromisso com o bem comum e a importância da doutrina, da lei e da jurisprudência, podem ser ilustradas com uma breve incursão sobre a culpa em direito civil.

Uma das mais importantes matérias do Direito Privado é a responsabilidade civil, pois a vida em sociedade gera danos que devem ser reparados com justiça para que se mantenha a ordem jurídica justa, estável e segura, a paz social. A disciplina jurídica dessa reparação foi se desenvolvendo ao longo da história, recebendo a contribuição de grandes juristas, aplicada em inúmeros julgamentos e integrando os mais elaborados Códigos de Leis. Essa dedicação à obrigação de indenizar formou um verdadeiro tesouro que a civilização precisa manter, aprimorar e transmitir às novas gerações. "Não é novidade que as leis anteriores sejam aproveitadas pelas posteriores"8. Suprimir esse legado implica  desastrosa involução.

A ação, o dano e o nexo causal constituem os três pressupostos da responsabilidade civil. Os seus fundamentos são a culpa e o risco. A responsabilidade subjetiva baseia-se na culpa em sentido amplo: dolo e culpa em sentido estrito (imprudência, negligência e imperícia). A responsabilidade objetiva funda-se no risco, não importando a culpa, bastando os pressupostos: ação, dano e nexo causal.

A responsabilidade subjetiva é a teoria clássica, tradicional. A culpa pode ser lata, leve e levíssima. Contratual ou extracontratual (aquiliana). In eligendo (escolha do representante) ou in vigilando (fiscalização do representante). Por ação ou por omissão. In custodiendo (dever de bem guardar). Em concreto ou em abstrato. O atual Código Civil, ao tratar do ato ilícito, dispõe que aquele "que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito" (art. 186)9 e quem, por ato ilícito, "causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo" (art. 927, Código Civil).

A culpa extra contratual é subjetiva. O prejudicado tem que provar a culpa do causador do dano. Na culpa contratual, esta resulta do próprio descumprimento do contrato.

Deve ser verificada a imputabilidade do causador do dano, a sua vontade apta à compreensão da conduta, pois se faltar essa consciência, a responsabilidade poderá ser do seu representante legal.

A regra geral é a responsabilidade por culpa.

A responsabilidade objetiva implica a responsabilidade sem culpa do autor. Indeniza-se o prejuízo causado pela ação lesiva a partir da presença do dano e do nexo causal entre aquele e esta. Prevalece a teoria do risco criado pela atividade do agente que, ao desempenhá-la e colocar os demais em situação de risco, tem que reparar quem sofre dano provocado por ela. Sustenta o dever de indenizar nas relações de consumo, nas questões ambientais, na responsabilidade civil do Estado, nos acidentes de trabalho, entre diversas outras situações em que, a proteção dos bens jurídicos especialmente relevantes para o bem comum, a vulnerabilidade do prejudicado, a superioridade do criador do risco e outras circunstâncias, recomenda que se prescinda da apuração de culpa do autor do fato, sob pena de impossibilitar a reparação do prejuízo sofrido.

No atual estágio de nosso Direito, sempre em evolução10, harmoniza-se a aplicação dessas teorias. A subjetiva é o padrão e, nas situações acima apontadas, vige a teoria objetiva11.

A comum opinião dos doutores costuma inspirar as codificações e as principais normas que regem a responsabilidade civil. Os Tribunais Superiores, em harmonia com essa antiga tradição jurídica, formulam diversas súmulas para disciplinar as lides submetidas à jurisdição civil12.

Responsabilidade civil e doação de alimentos

Incidindo nas relações humanas, a responsabilidade civil tem aplicação vasta. Há um problema vital que pode ilustrar a importância de sua cognição, observância de seus princípios e cooperação para o seu desenvolvimento. Trata-se da produção, conservação e distribuição de alimentos. Obra essencial para a pessoa humana, especialmente em período de calamidade pública, com efeitos intensos e ainda não totalmente apurados, na vida, na saúde, na educação e na economia do universo. Projeta-se que está crescendo o número de famintos e se premiam os estudos para a solução do problema13.

Nesse contexto, chamam a atenção uma lei recente14 e um Projeto de Lei em tramitação no Senado Federal15. Ambas versando a doação de alimentos. Naquela, há expresso comando de que essa doação não configura relação de consumo (art. 2º, parágrafo único) e haverá responsabilidade do doador somente se agir com dolo (art. 3º). Neste, propõe-se que a doação configura exceção ao regime de responsabilidade civil objetiva e afasta expressamente a incidência do Código Civil e do Código de Defesa do Consumidor. Não implica relação de consumo. A responsabilidade civil depende de dolo (arts. 9º, 11º e 12º).

Por evidência, o conteúdo atual da responsabilidade civil, como a consagraram os povos cultos, ao longo dos séculos, não é estático. Pode e deve ser aperfeiçoado. O sistema jurídico deve ser observado em sua globalidade. Ao Poder Legislativo compete editar normas que contribuam para o bem comum. As pessoas, físicas e jurídicas, devem observar essas regras. Os conflitos devem ser resolvidos pelo Poder Judiciário, com base nas leis, na doutrina e nos precedentes dos tribunais. Romper com a tradição e se desviar radicalmente de monumento jurídico tão importante como a construção milenar da responsabilidade civil, parece não contribuir para a civilização dos povos. A população precisa amar e respeitar os seus juízes. Não se pode desconfiar deles, subtrair-lhes o poder de distribuir justiça, violar a separação de poderes.

Conviver é preciso. Alimentados. Não se precisaria de comandos legais para fazer o bem ao próximo. Muito menos, porque o próximo está faminto, isentar de responsabilidade objetiva o doador, por evidência dotado do poder de controle geral de sua conduta. A doação de alimento pressupõe a entrega de produto saudável e não deteriorado. A doação de alimento estragado implica a responsabilidade civil objetiva do doador.

Viver é um risco. Conviver humaniza. Humanizar é progredir.

O progresso é coletivo e universal. A proteção dos bens jurídicos especialmente relevantes para o bem comum, a vulnerabilidade do faminto, a superioridade do doador, o seu controle sobre essa atividade humanística e as demais circunstâncias desse benefício tão importante para a sociedade, recomendam que se prescinda da apuração de culpa do autor do fato, sob pena de impossibilitar a reparação do prejuízo sofrido. Não está conforme ao bem comum, fundamento republicano, vedar ao Poder Judiciário a classificação jurídica de fatos, a exclusão da disciplina legal das relações de consumo e a restrição da responsabilidade civil às hipóteses de dolo, livrando o doador de alimentos de agir com a prudência, a diligência e a perícia exigíveis de todos para o bem de todos, especialmente para os famintos.       

*Jaques de Camargo Penteado é consultor e advogado. Mestre e doutor pela USP e procurador de Justiça aposentado (MP/SP).

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1 "C. METAF - Característica essencial de uma substância" (LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico de Filosofia. São Paulo:Martins Fontes, 1999, p. 110). Ver ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo:Martins Fontes, 2003, p. 94. Atributo do homem, a dignidade é inerente à natureza humana, e tem existência, validade e eficácia plena independentemente do direito posto que, assim, deve positivá-la para a legitimidade do mesmo.

2 "Do direito reclama-se ser uma causa eficiente – não a única, por certo, se nos lembramos do amor e, menos felizmente, da força –, uma causa eficiente para que a nossa vida, a de todos nós, seja feliz, para que possamos ser felizes na nossa defectível condição humana. A primeira coisa que se exige do direito é que respeite a primazia da realidade de nossas pessoas: um ordenamento normativo que não assegure a existência pessoal é um contra-sentido, um contra-direito" (DIP, Ricardo Henry Marques. Execução Jurídico-Penal ou Ético-penal? In Caetano Lagrasta Neto, José Renato Nalini e Ricardo Henry Marques Dip (Coord),  Execução Penal – Visão do Tacrim-SP, São Paulo, Juarez de Oliveira, 1998, p. 173).

3 PENTEADO, Jaques de Camargo. A dignidade humana e a Justiça Penal. In Jorge Miranda e Marco Antonio Marques da Silva (Coords.), Tratado luso-brasileiro da dignidade humana. 2ª ed. São Paulo:Quartier Latin, 2009.

4 PENTEADO, Jaques de Camargo e DIP, Ricardo Henry Marques. A Vida dos Direitos Humanos - Bioética Médica e Jurídica, Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris, 1999.

5 "E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida)" (MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida severina, Rio de Janeiro, Objetiva, 2012, p. 76).

6 DINIZ, Maria Helena. Fontes do Direito. Enciclopédia Jurídica PUCSP, Teoria Geral e Filosófica do Direito, 1/6/2017.

7 Sobre a importância dos grandes doutrinadores, a codificação das leis e a contribuição para o julgamento: RUFINO, Almir Gasquez. Teixeira de Freitas e Clóvis Beviláqua. Dois Juristas. Destinos que se cruzam. Migalhas, 23.9.2020.

8 D.1.3.26 Paulus Libro III quaestionum (MADEIRA, Hélcio Maciel França. Digesto de Justiniano, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2002, p. 50).

9 O abuso de direito também constitui ato ilícito (art. 187, Código Civil).

10 Sobre novas tecnologias e avanço das ciências e a responsabilidade civil, ver GARBI, Carlos Alberto. Responde o Médico e a Clínica que realizou o procedimento de vasectomia mal sucedido pela gravidez indesejada?

11 MONTEIRO, Washington de Barros. MALUF, Carlos Alberto Dabus. SILVA, Regina Beatriz Tavares da. Curso de Direito Civil, Direito das Obrigações, 2ª Parte, 38ª ed., São Paulo, Saraiva, 2011, pp. 565-612.

12 Súmula Vinculante nº 22 (competência da Justiça do Trabalho para julgar as indenizações por danos morais e patrimoniais decorrentes de acidentes de trabalho; 187, 261, 490,491, 492 e 562, STF; 37, 43, 54, 132, 154, 221, 229, 297, 362, 370, 387, 388 e 403, STJ). Os mais importantes Tribunais do País consolidaram imenso repertório da jurisprudência mansa e pacífica sobre a responsabilidade civil. Há notáveis tratados doutrinários sobre o tema escritos por Juristas como Orlando Gomes, Sérgio Cavalieri Filho, Rui Stoco, dentre muitos outros.

13 Sem políticas públicas, emergenciais e sem a volta do crescimento econômico, o cenário será desfavorável, segundo PEREZ, Marcos Augusto (Entrevista Rádio USP, 30.9.2020). O Prêmio Nobel foi dado a organismos de combate à fome.

14 Lei 14.016, de 24.6.2020.

15 Projeto de Lei do Senado  672/15.

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Coordenação

Carlos Alberto Garbi Pós-Doutor em Ciências Jurídico Empresariais pela UC - Universidade de Coimbra. Mestre e Doutor em Direito Civil pela PUC - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Professor de Direito Privado das FMU - Faculdades Metropolitanas Unidas. Vice-Presidente do Conselho do INBRADIM. Membro Acadêmico-Associado da ABDC - Academia Brasileira de Direito Civil. Diretor Nacional de Publicações da ADFAS - Associação de Direito de Famiília e das Sucessões. Advogado. Consultor. Parecerista.