Apesar do reduzido espaço deste escrito, não constitui tarefa custosa assinalar a importância de Teixeira de Freitas e Clóvis Beviláqua para a história do Direito nacional, em especial no Direito Privado, de que se ocupa esta prestigiosa coluna. Facilita-nos, sem dúvida, o fato de o fazermos da perspectiva privilegiada do presente, quando já decorreram tantos anos da morte de um e de outro.
Não é preciso dizer que se está diante de dois juristas extraordinários, muito acima da média, do seu tempo e também deste; ambos francamente comprometidos com o projeto de codificação civil, iniciado na segunda metade do século XIX, ainda no Império. Parece difícil de sustentar que pudessem ficar de fora de qualquer lista dos nossos juristas mais representativos, a partir dos antigos e chegando aos contemporâneos. Bem por essa razão, aliás, que os dois, juntamente com Tobias Barreto, são os únicos brasileiros incluídos na obra Juristas Universales, dirigida por Rafael Domingo e publicada pela Editora Marcial Pons no ano de 20041, em quatro alentados volumes. Eles três, mais Rui Barbosa e Pontes de Miranda, também compõem o quadro de notáveis juristas brasileiros inseridos no dicionário biográfico reorganizado no ano de 2001 pelo historiador alemão Michael Solleis, em que se buscou sintetizar vida e obra dos mais proeminentes juristas universais, do período da antiguidade até o século XX2.
Comecemos por Teixeira de Freitas. Como os grandes destinos são imprevisíveis, ninguém poderia imaginar que a criança nascida em 1816 na cidade de Cachoeira, no Recôncavo baiano, distante mais de cem quilômetros de Salvador, viria a se tornar o maior jurisconsulto do Império3. Não alcançou os 70 anos de idade, mas decerto que a morte não teve, ao menos quanto a ele, o poder de apagar, quando menos deslustrar, a memória da sua existência. Basta dizer que ainda hoje, mesmo depois de transcorrido mais de um século, não é possível ignorar-lhe o nome e a importância em qualquer trabalho que se proponha com seriedade a relatar a história da codificação civil nacional e sul-americana.
Seguindo a linha do tempo, é interessante sublinhar que Pontes de Miranda nem sequer era nascido por ocasião da morte de Teixeira de Freitas; tampouco Orlando Gomes, Caio Mário da Silva Pereira, San Tiago Dantas, Serpa Lopes e Washington de Barros Monteiro, para mencionar tão somente nossos mais notáveis civilistas. Naquela mesma época, em 1883, Clóvis Beviláqua, recém-formado em Direito, contava apenas 24 anos de idade. Eduardo Espínola, Orosimbo Nonato e Carvalho Santos (João Manuel de), juristas que também moldariam a história do direito privado, ainda brincavam nas ruas, como fazem todos os meninos. Carvalho de Mendonça (Manoel Inácio) graduara-se em Direito fazia pouco tempo, o que também ocorreria logo após com Tito Fulgêncio. Por sua vez, Antonio Joaquim Ribas, o Conselheiro Ribas, professor da Faculdade de Direito de São Paulo, consagrara-se como jurista por meio do seu Curso de Direito Civil brasileiro, publicado em 1866. Morreria em 1890, seis anos depois de Teixeira de Freitas. Quanto ao mineiro Lafayette Rodrigues Pereira, sabemos que já era respeitado jurisconsulto e aclamado jurista, autor das obras clássicas Direitos de Família (1869) e Direito das Coisas (1877). Com justiça reputado um dos maiores civilistas do Império e dos primeiros anos da República, morreu em 29 de janeiro de 1917, poucos dias após a entrada em vigor do nosso primeiro Código Civil. No ponto, não se poderia deixar de recordar a figura de Lacerda de Almeida, morto em 1943; jurisconsulto bastante prestigiado, deixou-nos como o mais expressivo legado o estudo original e sistemático do Direito Civil no período de 1887 a 1934.
O grande e justificado mérito de Teixeira de Freitas traduz-se, num primeiro momento, na consolidação sistemática e lógica das nossas leis civis até então vigentes (que incluíam não apenas as centenárias e obsoletas Ordenações Filipinas, como também extensa e multifária legislação extravagante, sem falar dos costumes presentes, resultando num acúmulo desordenado e confuso), revelando, já aí, espírito analítico e genialidade sintética, em perfeita combinação. O texto pronto, acrescido de inúmeras e enriquecedoras notas de rodapé, logrou aprovação em dezembro de 1858, tendo sido observado, com o "status" de lei, por várias décadas, até o início de vigência do Código Civil de 1916. Como apreendeu Carvalho de Mendonça (Manoel Inácio), Teixeira de Freitas deu "corpo a um amontoado de leis caóticas; construiu a ordem com a desordem por uma forma originalíssima. Teve pontos de vista inolvidáveis, como a original classificação de direitos de sua Introdução à Consolidação das Leis Civis"4. Adiciono que essa erudita Introdução, com viés crítico, sintetizava os grandes problemas do Direito da época, abarcando doutrina, direito comparado, filosofia, economia e história (supérfluo aduzir que o acesso à informação não era fácil naquele tempo). Rodrigo Otávio considerou-a, com acerto, uma das "páginas mais notáveis de Direito escritas na América Latina, capaz, por ela só, de fazer a fama de seu autor, como jurisconsulto, não somente pelo conhecimento da lei, mas como possuindo uma ideia construtiva das necessidades jurídicas da sociedade"5.
Seguiu-se, num segundo momento, também por incumbência do Governo imperial, a elaboração do Esboço do Código Civil6, assim designado pelo próprio Teixeira de Freitas. Depois de alguns anos de intenso labor, onde aplicou todo o seu engenho com prejuízo do exercício da advocacia, a tarefa acabou inconclusa (até então, o texto entregue já reunia 4908 artigos) por decisão dele mesmo em novembro de 1866, movido por uma intersecção de fatores: exaustão física e mental, dificuldades financeiras, injustificada lentidão dos trabalhos da Câmara revisora e, sobretudo, a frustração de concretizar, como ideal de perfeição, a ampla unificação do Direito Civil com o Mercantil num só corpo legislativo (Código Geral de Direito Privado)7. Assim se despediu, pesaroso, da mais cara esperança de entregar à Nação seu primeiro Código Civil. No entanto, releva sublinhar que esse monumental trabalho não podia e deveras não foi perdido, tendo sido confessadamente aproveitado, em parte, como todos sabem, por Velez Sarsfield no projeto de Código Civil da Argentina (1869) e, mais tarde, nos estatutos civis do Uruguai e Paraguai, entre outros8.
Nos anos seguintes, depois de mais de uma tentativa malograda de levar adiante o projeto de codificação (com Nabuco de Araújo, Felício dos Santos e Coelho Rodrigues), o Governo da República encarregou, afinal, Clóvis Bevilaqua para a empresa, isso em 1899. Cearense de Viçosa, com aproximados quarenta anos de idade e boa reputação, atuava como um humilde professor de Legislação Comparada da Faculdade de Direito do Recife. Disciplinado e operoso, desincumbiu-se da tarefa em poucos meses, para tanto concorrendo o fato de já ter à sua disposição, como valiosos subsídios, não apenas o Esboço de Teixeira de Freitas, como também, e especialmente, o projeto de Coelho Rodrigues, sem falar dos trabalhos legislativos que precederam o BGB (Código Civil alemão). Decorridos mais de quinze anos de debates nas duas Casas Legislativas e submetido à crítica severa, à frente o então Senador Ruy Barbosa, o projeto foi sancionado em 1916. Muito embora não se apresentasse como modelo para todos copiarem pelo mundo afora, porque já descompassado com a época da promulgação, o certo é que vigorou por quase um século. Seja como for, não é exagero afirmar que todos esses projetos de codificação devem algo a Teixeira de Freitas, inclusive o atual Código Civil.
Se nos é possível traçar um paralelo, cabe acrescentar que Teixeira de Freitas viveu e morreu no século XIX, enquanto Clóvis Beviláqua testemunhou o nascimento de um novo século. Ambos de origem nordestina, formaram-se pela célebre Faculdade de Direito do Recife e os dois faleceram, sem quaisquer riquezas, no Rio de Janeiro. Deixaram muitas obras como precioso e imperecível legado, que até hoje podem ser lidas com gosto e proveito. Muito embora com temperamentos diferentes, eram pessoas simples, de modéstia desafetada, desprendidas de vaidades e com boas intenções. Seus dons intelectuais e de caráter eram admirados por todos os lados9. Passaram à história do Direito Privado como os grandes protagonistas da causa da codificação civil nacional.
Para concluir, pode ser – e devemos todos esperar que assim seja – que estas páginas suscitem em quem as ler um especial interesse por esses dois juristas, que os estudiosos da história do Direito procuram exaltar na mesma medida em que eles próprios nunca buscaram fama e prestígio.
*Almir Gasquez Rufino é advogado. Membro do Ministério Público (Procurador de Justiça) de São Paulo (aposentado). Coautor e organizador, juntamente com Jaques de Camargo Penteado, da obra "Grandes Juristas Brasileiros", editada pela Martins Fontes, SP, em 2003 e 2006 (segunda série).
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1 Coube ao professor Ignacio Poveda, da Universidade de São Paulo, a elaboração das três breves biografias.
2 Juristen - Ein Biographisches Lexikon - von der Antike bis zum 20. Jahrhundert, München: Beck, 2001. Os cinco verbetes que nos interessam são de autoria de Wolf Paul, professor em Frankfurt.
3 Ninguém menos que Pontes de Miranda considerava Teixeira de Freitas o "gênio do direito civil na América" no século XIX (Fontes e Evolução do Direito Civil Brasileiro, Rio de Janeiro: Forense, RJ, 1981, 2ª ed., § 7º, p. 63). O “mais genial de nossos jurisconsultos”, destacou Miguel Reale na qualidade de supervisor da comissão revisora e elaboradora do Código Civil de 2002 (item 12 da Exposição de Motivos).
4 Do usufruto, do uso e da habitação, Rio de Janeiro: Candido de Oliveira, 1922, p. 17.
5 Teixeira de Freitas e a unidade do Direito Privado, Arquivo Judiciário, 1933, vol. 35, p. 61.
6 Obra gigantesca e original, qualificou Mario G. Losano, à medida que se "distanciava do 'Código Napoleônico' em muitos pontos: inicialmente, antecipando o código civil alemão de 1900, dividia o código civil em uma parte geral e uma parte especial; nesta, introduzia a distinção entre direitos reais e direitos pessoais, chegando a liberalizar as normas jurídicas relativas à escravidão" (Os grandes sistemas jurídicos, São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 298).
7 O que apenas ocorreria muito mais tarde, ao menos em parte, no Código Civil de 2002, com a unificação do Direito das Obrigações.
8 "Muitas disposições que se acham no 'Bürgesliches Gesetzbuch' e no 'Zivilgesetzbuch' acham-se nele, talvez sem que o soubessem os novos legisladores" (Pontes de Miranda, ibidem).
9 Há uma nota final que não podemos deixar passar. Em agosto de 1916, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em sessão comemorativa do centenário do nascimento de Teixeira de Freitas, ao conceder a palavra a Clóvis Bevilaqua, o palestrante, Ruy Barbosa declarou: "Dou a palavra ao maior civilista vivo, para que fale sobre o maior civilista morto".