Novos Horizontes do Direito Privado

Sociedade – contrato plurilateral, finalístico e organizacional

Sociedade – contrato plurilateral, finalístico e organizacional.

9/9/2020

Há muito está superada a controvérsia a respeito da natureza contratual da sociedade. Na doutrina já se sustentou que a sociedade não é constituída por um contrato, mas sim por ato complexo1. Esse entendimento estava fundado na ideia equivocada de que na sociedade não há conflito de interesses entre as partes.

Tullio Ascarelli já assinalava que o contrato de sociedade, desde a sua constituição e durante a vida da sociedade, compreende um natural conflito de interesses entre os sócios. Lembrava, como exemplo, o conflito que pode existir na conferência de bens em favor da integralização do capital, voltado para a avaliação dos bens, conflito muito semelhante àquele que ocorre nos contratos de escambo. Lembrava, ainda, o conflito que pode existir na distribuição de lucros ou na administração da sociedade. Afastou, portanto, a ideia de ato complexo para afirmar a existência de um contrato na sociedade, que distinguiu dos contratos de escambo pela comunhão de objetivos entre os sócios.

Funda-se, exatamente na comunhão de escopo, inerente ao contrato de sociedade, o traço distintivo mais relevante entre o contrato de sociedade e o contrato de escambo2. É esse objetivo comum que pode levar ao falso entendimento de que não há conflito de interesses no contrato de sociedade, do qual também decorrem dificuldades para entender os efeitos causados pelos vícios na formação do contrato e os efeitos do inadimplemento das obrigações contraídas pelos sócios.

Para a formação do contrato de sociedade é necessário o acordo de vontades, como ocorre em qualquer contrato. É certo que há sociedades que não são constituídas por um contrato, e sim por negócio unilateral, como é o caso da sociedade unipessoal, introduzida no Código Civil pela lei 13.874/20193.

Nota-se na redação do dispositivo referido ("Se for unipessoal, aplicar-se-ão ao documento de constituição do sócio único, no que couber, as disposições sobre o contrato social." – art. 1.052, § 2º, CC), que no caso de sociedade unipessoal, em boa técnica, não se fala em contrato, mas em "documento de constituição", ao qual, no que couber, serão aplicadas as disposições do contrato social. Por isso, para dizer da constituição da sociedade, prefere J.M. Coutinho de Abreu falar de "sociedade-ato jurídico", porquanto existem atos constitutivos de sociedades sem natureza contratual (sociedade unipessoal), e mesmo sem natureza negocial, como é o caso de sociedades de capital público, constituídas por lei4.

Não obstante o devido enquadramento da constituição da sociedade em "sociedade ato-jurídico", o contrato é a forma natural de sua criação quando concorre a vontade de duas ou mais pessoas (sócios). Em razão da natureza singular que esse contrato apresenta, a ele igualmente se reconhece um regime jurídico diferente do direito contratual em geral.

J.M. Coutinho de Abreu assinala as características marcantes deste contrato de sociedade: "Trata-se de um contrato de fim comum (a obtenção de lucros distribuíveis pelos sócios) e de organização (o negócio faz nascer uma entidade estruturada orgânico-funcionalmente), não de um contrato comutativo (como é, v.g., a compra e venda)."5

Na doutrina se formou uma forte corrente, liderada por Tullio Ascarelli, no sentido de que o contrato social é uma espécie de contrato plurilateral, no qual cada contratante assume obrigações em relação aos demais, com o objetivo de exploração em conjunto da atividade empresarial, com uma particular característica, que é o fato de surgir do contrato social um novo sujeito de direitos. Essa doutrina recebeu larga consideração em vários países e oferece boas respostas à complexidade desta relação contratual.

Desde logo é importante assinalar que a sociedade, como sujeito de direitos, constituída pelo contrato, também é parte nas relações jurídicas estabelecidas pelo ato constituinte, o que soma complexidade a este contrato.

Há uma íntima relação entre o ato constituinte (contrato social) e a sociedade. Explica J.M. Coutinho de Abreu que "o ato faz nascer a entidade, esta assenta geneticamente nele e por ele é em boa medida disciplinada. Mas, por outro lado, há um considerável desprendimento da sociedade-entidade relativamente ao ato constitutivo: afora o fato da organização e funcionamento internos da sociedade serem em larga medida independentes do ato de constituição (sendo diretamente regidos pela legislação societária), ela é novo sujeito (distinto do sócio), que por si atua e se relaciona com outros sujeitos."6

Quando o sócio deixa de fazer as contribuições que se obrigou pelo contrato, é a sociedade que deverá notificá-lo, e o sócio responderá perante ela pelos danos decorrentes da mora (art. 1.004, CC). Caberá à sociedade, também, restituir o sócio remisso e pagar haveres ao retirante e ao excluído (art. 1.031, CC), e por isso é chamada a integrar sempre o processo no qual se pede a sua dissolução parcial.

Tullio Ascarelli, sob o seu aspecto estrutural, vê no contrato social uma subespécie de contrato, que se distingue dos contratos em geral (contratos de permuta, de trocas, de escambo): (i) pela possibilidade de participação de mais de duas partes: (ii) pelo fato de que, quanto a todas estas partes, decorrem do contrato, quer obrigações, de uma lado, quer direitos, de outro.

Quando se fala em mais de duas partes no contrato plurilateral, evidentemente não se refere ao número de sujeitos. Uma compra e venda com condôminos pode ter vários sujeitos, mas somente duas partes (vendedor e comprador). O contrato plurilateral se apresenta, portanto, com a "possibilidade" de participação de mais de duas partes, como ocorre no contrato de sociedade, no qual não é possível agrupar todas em dois grupos ou dois polos.

Os interesses contrastantes das várias partes na sociedade devem ser unificados por uma finalidade comum. O contrato de sociedade é, portanto, finalístico, e obriga a todos os sócios, inclusive aos aderentes posteriores, em torno de um fim comum, de uma atividade ulterior. As partes, no contrato de sociedade, cumprem as obrigações assumidas com o propósito de organizar o desenvolvimento de uma atividade ulterior, da qual não se pode desviar sem risco para as responsabilidades dos sócios.

Também decorre desta observação a distinção que deve ser feita entre os requisitos de formação do contrato e outros, que dizem respeito à vida da organização, que devem continuamente subsistir. O contrato de sociedade é um contrato de execução continuada, porque formado para desenvolver uma atividade ulterior. Os prazos do contrato de sociedade são determinados, não para o cumprimento de obrigações, mas pelo tempo que deve perdurar essa atividade.

O contrato plurilateral, como é o contrato de sociedade, compreende partes que são titulares de direitos e obrigações. Por esta razão se pode dizer, não quanto à sua formação, mas quanto aos efeitos que produz, que é um contrato "bilateral". No contrato de sociedade cada sócio tem obrigações e adquire direitos em relação a todas as outras partes (sócios). Por isso Ascarelli afirma que as partes se acham como dispostas em círculos e não em extremos de uma linha.

No contrato em geral, a sua conclusão ocorre quando as partes estão simultaneamente presentes, reunindo os consentimentos. No contrato de sociedade, que tem a participação de mais de duas partes, a reunião dos consentimentos não precisa ocorrer simultaneamente, admitindo-se a constituição sucessiva da sociedade pelos ausentes naquele ato de constituição. Por isso pode-se admitir uma nova parte, assim como pode ocorrer a retirada ou exclusão do sócio sem nenhuma solução de continuidade para o contrato de sociedade. Os contratos de sociedade são contratos abertos, no sentido de que admitem a entrada e a saída de partes, o que não ocorre nos contratos em geral.

O aspecto mais relevante da ideia de contrato plurilateral diz respeito aos vícios de adesão e ao cumprimento de obrigações assumidas pelas partes. A atenção à sua peculiar natureza é a condição para o enquadramento das soluções que se deve dar a estas situações.

O vício de vontade na adesão ao contrato de sociedade não tem o efeito produzido nos contratos de escambo em geral. O vício de vontade (incapacidade, erro, dolo, coação etc.) invalida o contrato de escambo, mas não produz igual efeito no contrato plurilateral, porque é possível distinguir o ato de adesão de cada parte (e os vícios existentes). Logo, o vício de adesão ao contrato de sociedade de uma parte invalida somente a manifestação desta parte, não importando em nulidade ou anulabilidade do contrato. Ocorre uma espécie de aplicação do princípio da conservação dos contratos, que propõe não atribuir ao vício consequências além do necessário. A solução pode ser diversa se a invalidade da adesão de uma das partes implicar em substancial redução de capital a tornar impossível a consecução do objeto social.

O contrato de sociedade constituí uma organização destinada a entrar em relação com terceiros. Esta característica impõe uma solução diversa aos casos de vícios de adesão da parte, impedindo efeitos retroativos, que poderiam prejudicar terceiros (credores). Exige-se, portanto, uma solução diversa no tratamento dos vícios do contrato plurilateral em favor de uma necessária tutela dos interesses de terceiros, havendo uma tendência em conter internamente estes efeitos invalidantes.

Cabe lembrar que o contrato plurilateral apresenta, ainda, outra característica, que é a separação entre as relações internas (entre os sócios) e as relações externas (estabelecidas com terceiros, quase sempre credores). São estas últimas relações decorrentes da natureza de organização e do caráter instrumental do contrato.

Outro aspecto relevante da natureza plurilateral do contrato de sociedade diz respeito à inexecução das obrigações contraídas pelas partes. O inadimplemento da obrigação em relação a uma das partes, não determina a resolução do contrato. A resolução ocorre somente em relação ao vínculo do sócio inadimplente, sem nenhum prejuízo ao contrato de sociedade, quando ainda possível a consecução dos seus fins sociais.

Questão interessante suscita a sinalagma própria dos contratos bilaterais. Caso uma das partes do contrato de sociedade não cumpra a obrigação contraída (v.g. integralização do capital), questiona-se se as outras partes estão autorizadas a não cumprir também as suas obrigações, alegando exceptio inadimpleti contractus.

A resposta é negativa. A ideia de contrato plurilateral oferece solução adequada a esta questão. Nega-se, portanto, a existência de sinalagma (ao menos no sentido que se lhe atribui normalmente) no contrato plurilateral, que é a relação de dependência, ou propriamente de interdependência, entre as prestações. A parte não está autorizada a não cumprir a obrigação se outra não o fez, como ocorre nos contratos de escambo, porque a inexecução das obrigações de uma parte não exclui a permanência no contrato entre as demais, a não ser que a consecução do seu fim não possa ser alcançada.

Existe no contrato plurilateral uma equivalência entre as prestações, mas é uma equivalência entre as obrigações e direitos de uma parte em relação a todas as outras partes. Nesse sentido explica Giuseppe Ferri que existe interdependência entre as várias obrigações, seja no momento genético, seja naquele funcional, somente enquanto todas elas são assumidas em função de um escopo estabelecido previamente. A obrigação do sócio não constitui o correspectivo da obrigação do outro, mas junto com esta o meio para realizar o escopo comum. Exatamente pela realização do escopo comum é que o sócio receberá o benefício ou vantagem correspectiva à obrigação assumida7.

A influência da obrigação de um sócio sobre o contrato por inteiro se determina, de acordo com Ferri, "através do diafragma do escopo comum". Explica Ferri que esse entendimento não permite ao sócio negar o cumprimento da sua obrigação em razão do inadimplemento da obrigação do outro sócio, não se admitindo a exceção do contrato não cumprido, salvo se o cumprimento da obrigação do outro é condição necessária para alcançar o escopo comum. E acrescenta, portanto, que o contrato de sociedade não sofre nenhum efeito pela morte, exclusão ou recesso do sócio, a não ser que importe substancial impedimento para alcançar o escopo comum8.

Resolvido o contrato em relação ao sócio inadimplente, a sua substituição na sociedade não tem a natureza de novação e não altera substancialmente o contrato.

O Código Civil seguiu a doutrina do contrato plurilateral, como se percebe em diversas passagens. No enunciado que precede ao art. 1.028 e seg., que cuida da resolução da sociedade em relação a um sócio, se vê aplicada a solução preconizada para o contrato plurilateral. São hipóteses previstas nestes dispositivos pelas quais o contrato se desfaz em relação a somente um dos sócios (morte, retirada do sócio, sócio remisso, exclusão por falta grave e falência do sócio).  Também em relação à sociedade limitada o Código Civil cuida da resolução da sociedade em relação ao sócio minoritário, quando se entender que um os mais sócios estão pondo em risco a continuidade da empresa em virtude de atos de inegável gravidade (art. 1.085, CC).

De outra parte, a natureza de organização que é própria do contrato de sociedade implica na gestão desta organização e, consequentemente, no reconhecimento de direitos das partes na administração e na tomada de deliberações por maioria. Diz Ascarelli que é justamente na comunhão de escopo existente na sociedade que se assenta o poder da maioria. Quanto mais intensos os interesses comuns, mais se legitima a deliberação pelo poder da maioria.

A organização externa constituída pelo contrato implica na criação de uma pessoa jurídica (o contrato plurilateral é o substrato da pessoa jurídica) e a partir da sua existência algumas características mais interessantes do contrato plurilateral, no seu aspecto externo, são reveladas: (i) o patrimônio da sociedade é separado e não está sujeito a um regime de condomínio, porque ele pertence à pessoa jurídica e não aos participantes do contrato; (ii) as obrigações contraídas pela pessoa jurídica não são obrigações dos participantes.

A natureza plurilateral do contrato de sociedade quase sempre permanece nas sombras das decisões que envolve a complexidade do contrato de sociedade, mas não passa ao largo da jurisprudência, da qual nos ocuparemos em outra oportunidade.

*Na próxima edição da nossa coluna contaremos com a honrosa participação do doutor Almir Gasquez Rufino, que organizou, junto com Jacques de Camargo Penteado, as duas edições dos "Grandes Juristas Brasileiros", publicadas pela Editora Martins Fontes. Teremos, portanto, um pouco da memória do nosso Direito Privado. Não percam!

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1 Tullio Ascarelli explica que esta distinção entre contrato e ato complexo decorre da observação de que no contrato as partes são animadas por interesses contrapostos, enquanto no ato complexo as partes apresentam-se animadas por idêntico interesse. Ascarelli logo desfaz esta ideia equivocada, no sentido de que não há conflito de interesses na sociedade, para defender a existência de um contrato (O Contrato Plurilateral. "Problemas das Sociedades Anônimas e Direito Comparado" 2ª ed. São Paulo : Saraiva, 1969, p. 258). O Código Civil brasileiro é expresso ao estabelecer no art. 997 que "a sociedade constitui-se mediante contrato escrito, particular ou público."

2 Nesse sentido a doutrina de Pier Giusto Jaeger, Francesco Denozza e Alberto Toffoletto (Appunti di Diritto Commerciale – impresa e società. 7ª ed. Milano : Giuffrè Editore, p. 82-84).

3 É certo que antes da modificação legislativa referida já era reconhecida no direito brasileiro a sociedade unipessoal em casos de dissolução parcial da sociedade, quando se permitia a existência temporária da sociedade com apenas um sócio até que a pluralidade fosse restabelecida.

4 Jorge Manuel Coutinho de Abreu. Curso de Direito Comercial. Vol. II. 5ª ed. Coimbra : Almedina, p. 20.

5 Op. cit, p. 95.

6 Op. cit., p'. 20.

7 Giuseppe Ferri. Manuale di Diritto Commerciale. 15ª ed. a cura di C. Angelici e G.B. Ferri. Milano : Utet, 2017, p. 175.

8 Op. cit., p. 175.

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Coordenação

Carlos Alberto Garbi Pós-Doutor em Ciências Jurídico Empresariais pela UC - Universidade de Coimbra. Mestre e Doutor em Direito Civil pela PUC - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Professor de Direito Privado das FMU - Faculdades Metropolitanas Unidas. Vice-Presidente do Conselho do INBRADIM. Membro Acadêmico-Associado da ABDC - Academia Brasileira de Direito Civil. Diretor Nacional de Publicações da ADFAS - Associação de Direito de Famiília e das Sucessões. Advogado. Consultor. Parecerista.