Me recordo de uma velha lição que ouvi de um experiente professor nos bancos da faculdade. Dizia que o direito civil se assentava em três pilares: a propriedade, o contrato e a família. Já se foram muitos anos desde que aquelas palavras encheram o meu pensamento de perplexidades. Se o direito civil representava a constituição do cidadão e governava toda a sua vida, então o universo se resumia àqueles três elementos: propriedade, contrato e família. O excesso desta proposição, evidentemente, pretende assinalar a enorme relevância desses fundamentos para a tradição do Direito Privado.
No direito romano a figura central era a propriedade, sua segurança e estabilidade, com vistas à conservação e ao aproveitamento das riquezas. Era o direito por excelência. Ao contrato se reservava a função de aquisição e disposição da propriedade, e suas formalidades eram ditadas em favor da proteção dos contratantes enquanto proprietários. O contrato não tinha maior relevância, visto somente como um meio de transmitir a propriedade.
Com a Revolução Francesa e o Code de Napoleão de 1804, voltado para uma sociedade de economia prevalentemente rural e com particular interesse sobre a propriedade imóvel, o contrato passa a ser reconhecido como uma garantia de conservação da propriedade, na medida em que se protege com rigor a autonomia da vontade. Ninguém poderia ser privado dos seus próprios bens sem o concurso da sua vontade livre. O contrato, portanto, recebe toda a atenção necessária à garantia da livre manifestação da vontade. A forma do contrato, importante para os romanos, cede lugar de importância à vontade dos contratantes. É o consensualismo, fundamental na teoria clássica do contrato. Essa transformação do contrato decorreu em boa medida da forma como era utilizado na Idade Média, no âmbito dos usos do comércio (Lex Mercatoria), entre os mercadores, que se interessavam pela celeridade das contratações e pelo desenvolvimento do tráfico de mercadorias. É o contrato como meio de fazer negócios.
É na moderna sociedade industrial que o contrato se afasta da propriedade para servir, agora, como instrumento característico da atividade empreendedora, voltada para a produção e o mercado. A exigência de produção e circulação de riqueza prevalece sobre a propriedade.
Nos Novecentos se acentua a tendência de objetivar o contrato, reduzindo o valor subjetivo da vontade das partes. É a crise do consensualismo1, que já foi identificada por Grant Gilmore como a morte do contrato2. Essa tendência ganha impulso a partir do final do século passado, com a aplicação pela jurisprudência das cláusulas gerais da boa-fé, equidade, equilíbrio e função social, concorrentes com a vontade das partes e com a lei. Em favor da equidade e da justiça contratual, o juiz se habilita a corrigir o ato de autonomia contratual e a restabelecer o equilíbrio das prestações. É o que Francesco Galgano chamou de “governo judiciário da discricionariedade contratual”3 ou, simplesmente, nas palavras de Guido Alpa, “controle judicial do contrato”4.
Essa intervenção no contrato veio com a crise do Estado moderno, que é uma crise da legalidade, segundo Paolo Grossi, uma crise que se refletiu no ordenamento positivo e na ideia de que o contrato faz lei entre as partes, o que levou o grande economista Keynes a afirmar, em notável conferência sobre “O fim do laissez-faire”, depois escrita e publicada, que não há direito absoluto no contrato.5
Um outro aspecto desta evolução se verifica já na fase pós-industrial, quando o contrato passa a servir a uma economia das finanças, dos valores mobiliários e instrumentos financeiros, portando engenhosa técnica contratual criativa de novas riquezas (new properties). Se fala em um Terzo Contratto5 e na revisão da sua classificação.
O que mais tem suscitado o interesse dos juristas atualmente sobre o contrato, e ele está vivo, como sempre esteve, é efetivamente o controle judicial, que coloca em questão a relação entre a autonomia da parte e os limites do ordenamento jurídico, limites que podem ser aplicados pelo juiz no exame dos contratos.
Ao escrever sobre o Projeto do Código Civil, Miguel Reale observava que, “se o contrato é o produto da autonomia da vontade, não quer dizer que essa vontade deva ser incontrolada: a medida de seu querer nasce de uma ambivalência, de uma correlação essencial entre o valor do indivíduo e o valor da coletividade. O contrato é o elo que, de um lado, põe o valor do indivíduo como aquele que o cria, mas, de outro lado, estabelece a sociedade como lugar onde o contrato vai ser executado e onde vai receber uma razão de equilíbrio e de medida. E é por esta razão que estabelecemos um artigo do Projeto do Código Civil, que me parece muito importante ter presente, no qual se declara que contrato terá que ser analisado em razão de sua função social. É o princípio da socialidade governando o Direito Obrigacional."7
Esses limites podem versar sobre o mérito do interesse perseguido pela parte, sua legitimidade ou conformidade com a lei, sobre a sua licitude ou reprovabilidade social e até mesmo sobre a sua conformidade moral e ética. Percebe-se que esse controle pode ser muito amplo, sondando os elementos do contrato, como a sua causa, objeto, forma e elementos acidentais, assim como os precedentes da sua formação, como a fase de tratativas, de troca de informações e documentos. Esse controle pode dar lugar à responsabilidade pré-contratual, contratual e extracontratual, observando a sua execução, frustração, extinção e os impedimentos ao seu exato cumprimento.
O espaço de valoração do contrato e de operatividade do juiz, e os limites da sua discricionariedade, são ainda mais amplos quando as disposições aplicáveis contêm cláusulas e princípios gerais, como a boa-fé, solidariedade, razoabilidade, proporcionalidade, função social etc.
Aproveitando a observação de Guido Alpa, se pode dizer que é amplíssimo o raio de ação de controle judicial, um raio que foi alargado no curso do tempo, partindo da aplicação literal e restritiva da lei a uma interpretação elástica, atenta a novas exigência sociais e econômicas, proporcionada pela “explosão” das cláusulas gerais.8
O poder que tem o juiz de “controlar” o contrato não é, contudo, ilimitado. O limite da discricionariedade de valoração do contrato pelo juiz deve ser encontrado também no ordenamento jurídico, e principalmente na jurisprudência. Como afirmou Eros Roberto Grau, “por mais que isso revolte a doutrina, a segurança e a previsibilidade dos contratos passa, necessariamente, pela interpretação que as Cortes dão às avenças. O reconhecimento do crucial papel do Poder Judiciário talvez seja o início da superação de tantos entraves enfrentados pela ordem jurídica na promoção do comércio.”9
Os precedentes da nossa Corte Superior, que tem a última palavra na interpretação da lei infraconstitucional, dão conta do reconhecimento e da amplitude dos poderes do juiz no exame dos contratos. Destaco dois julgados representativos:
“O acórdão recorrido está em consonância com a Jurisprudência do STJ quando sustenta que a autonomia privada, como bem delineado no Código Civil de 2002 (arts. 421 e 422) não constitui um princípio absoluto em nosso ordenamento jurídico, sendo relativizada, entre outros, pelos princípios da função social, da boa-fé objetiva e da prevalência do interesse público; e que o Direito brasileiro admite, expressamente, a revisão contratual, diante da alteração superveniente das circunstâncias que deram origem ao negócio jurídico. Precedentes.” (AgInt no AREsp 1450387/AP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 04/06/2019, DJe 11/06/2019)
“Ademais, a jurisprudência deste Tribunal Superior é firme no sentido de que o princípio da pacta sunt servanda pode ser relativizado, visto que sua aplicação prática está condicionada a outros fatores, como, por exemplo, a função social, a onerosidade excessiva e o princípio da boa-fé objetiva dos contratos. Incidência da Súmula 83/STJ. Precedentes.” (AgInt no AREsp 1506600/RJ, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 09/12/2019, DJe 12/12/2019)
A amplitude dos poderes do juiz no exame dos contratos é angustiante para o jurista deste século, porque porta uma insegurança e indeterminação que não havia na modernidade. Também é, todavia, uma característica do momento histórico que vivemos e de um novo paradigma do contrato, segundo Vincenzo Roppo, um contrato no qual a “força de lei” resulta notavelmente atenuada10, não para lhe decretar a sua morte, mas para lhe dar vida. Como diz Eros Roberto Grau, com apoio em Corbin, o jurista deve libertar-se da ilusão da certeza.11
Há aspectos positivos da valorização da jurisprudência neste cenário de transição para a pós-modernidade, refletidos diretamente no Direito Privado. É que as normas decorrentes da jurisprudência, pela sua concretude e historicidade, podem ser mais estáveis e racionais, assim como mais próximas da realidade e dos valores econômicos e sociais. Esta estabilidade, todavia, depende muito da forma como operam racionalmente os juízes. Depende, particularmente, da efetividade das disposições do Novo Código de Processo Civil de 2015 quanto às exigências do seu art. 489 para a motivação das decisões e o respeito aos precedentes. Essa racionalidade que se exige das decisões judiciais, que foi sendo introduzida no direito brasileiro por influência do common law e do seu sistema de precedentes, que promove uma espécie de retorno ao direito, que deve ser pensado e interpretado (compreendido), é a garantia de segurança contratual, e não propriamente de certeza, e também um imperativo do Direito Privado vivente na interpretação dos Tribunais.
A expressão máxima do individualismo, traduzida no poder negocial que dá origem ao contrato, não encontra no controle judicial propriamente uma restrição, mas o equilíbrio necessário à promoção dos valores sociais e econômicos, bem definidos na nossa Constituição Federal.
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2 - É o título do clássico livro de Grant Gilmore – The Death of Contract, que tenho em mãos na versão traduzida para o italiano por Andrea Fusaro, com um prólogo de Guido Alpa (“La morte del contrato”. Milano : A. Giuffrè Editore, 1999)
3 - Para um bom panorama histórico do contrato vale a leitura das primeiras páginas de Francesco Galgano in “Il Contratto” (Cedam, 2ª ed., Milano : 2011).
4 - Le Stagioni del Contratto. Bologna : il Mulino, 2012, p. 161-173.
5 - O fim do “laissez-faire”. In: SZMRECSÁNYI, Tamás (Org.). Economia. Tradução de Miriam Moreira Leite. São Paulo: Ática, 1978. p. 106-7. Um estudo primoroso apresentado na conferência que fez em Oxford (novembro de 1924) e numa palestra na Universidade de Berlim em junho de 1926, publicado em Essays in persuasion – CWJMK. Londres: Macmillan, 1972. v. IX, cap. IV-2. p. 272-94. Keynes escreveu em 1936, aos cinquenta e dois anos, durante a grande depressão americana, a sua obra mais famosa – The General Theory of Employment, Interest and Money (A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda) – considerada, na opinião de Dudley Dillard, professor de economia da Universidade de Maryland (EUA) e conhecedor das teorias de Keynes, “um repúdio dos fundamentos do laissez-faire” (A teoria econômica de John Maynard Keynes. 6. ed. Tradução de Albertino Pinheiro Júnior. São Paulo: Pioneira, 1989. p. 3).
6 - Já tivemos a oportunidade de escrever a respeito (Il Terzo Contratto, uma nova modalidade de contrato empresarial).
7 - Miguel Reale se referia ao atual artigo 421 do Código Civil (O Projeto de código civil: situação atual e seus problemas fundamentais. São Paulo : Saraiva, 1986, p. 10)
8 - Guido Alpa anota que as compilações de jurisprudência na italia, organizadas cientificamente, evidenciam as operações judiciais no controle dos contratos. Esse valor da jurisprudência como fonte do direito, uma característica da pós-modernidade, é resultado, segundo Guido Alpa, da passagem por diversas fases. Inicialmente o valor da jurisprudência como fonte do direito foi muito debatido na doutrina, passando a uma fase factual ou pragmática, mediante o recurso aos precedentes invocados pelos advogados nas suas peças defensivas, e depois na motivação das sentenças. Essa afirmação da jurisprudência como fonte do direito também encontra outra dimensão na atividade legislativa, que muitas vezes transforma os precedentes em disposições legais. (Op. cit., p. 164)
9 - Um Novo Paradigma dos Contratos? Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. V. 96 (2001).
10 - Esse novo paradigma do contrato é resultado de um conjunto de fatores, que não podemos abordar nesta oportunidade. A respeito consultar a obra de Vincenzo Roppo (Il contrato del duemila. Terza edizione. Torino : G. Giappichelli Editore, 2011).
11 - Op. cit.