Limite Penal (Nova)

O efeito do juiz de garantias no processo penal: Oralidade e imediação

O Processo Penal brasileiro ainda é uma Ilha de práticas Inquisitórias num oceano acusatório.

19/6/2023

O Supremo Tribunal Federal iniciou, no dia 14 de junho de 2023, o julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade ADIs 2943; 3309; 3318; 7175 e 7176, tendo por objeto: [a] Estrutura Acusatória do Processo Penal [art. 3-A] [b] Juiz das Garantias [arts. 3-B-3F]; [c] Novo regime de Arquivamento [art. 28, caput]; [d] Acordo de Não Persecução Penal [art. 28-A]; [e] Prova Ilícita e Impedimento do Juiz [§ 5º, art. 157]; [e] Audiência de Custódia e Relaxamento da Prisão; e, [f] Vacatio legis.

A par da tendência de improcedência dos pedidos formulados nas ADIs, com a ressalva de ajustes pontuais quanto a interpretação conforme à constituição de alguns dispositivos, este artigo abordará exclusivamente as consequências da declaração de constitucionalidade do art. 3º-A:

“Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”.

O Processo Penal brasileiro ainda é uma Ilha de práticas Inquisitórias num oceano Acusatório. A tendência à implementação da orientação do Princípio Acusatório é mundial, enquanto setores autoritários, inspirados na herança do Código de Processo Penal fascista de Rocco, transposto para o CPP de 1941, ainda resistem, com argumentos obsoletos, antidemocráticos ou de esquiva democrática [Jacinto Nelson de Miranda Coutinho [Crítica à Teoria Geral do Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001]. Um dos autores da coluna de hoje, inclusive, já escreveu sobre isso antes, fazendo referência a que chamou de “Movimento da Sabotagem Inquisitória [MSI]:

“O Juiz passou a ser Juiz, ou seja, julgar, sem qualquer atividade probatória, prevalecendo a gestão da prova como fator de distinção entre os sistemas, como afirmou diversas vezes Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. Mas o ‘Movimento da Sabotagem Inquisitória (MSI)’ que acha que Juiz é o gestor da prova, que faz e acontece, busca resistir com argumentos frágeis, negacionistas. Em resumo, querem dizer: onde se lê ‘estrutura acusatória’ deve se ler ‘estrutura inquisitória’. Beira ao ridículo”.

LOPES JR, Aury; MORAIS DA ROSA, Alexandre. “A estrutura acusatória atacada pelo MSI – Movimento Sabotagem Inquisitória”, Conjur, 2020. 

Neste sentido, a divisão funcional entre o Juiz das Garantias e o Juiz de Julgamento nada mais é do que a atribuição das mesmas funções hoje concentradas na figura de um único Juiz, com a finalidade de preservar as condições objetivas, subjetivas e cognitivas da imparcialidade. A tendência é a de que o STF também reconheça a constitucionalidade, até porque, como afirmou o Presidente do IBCCRIM, Renato Stanziola Vieira, em sua sustentação oral perante o STF, no dia 15.06.2022, se o Poder Legislativo delibera pelo Juiz das Garantias, qual o motivo da inconstitucionalidade? – e indaga ao final: “se não agora, quando?”.  

Aliás, a doutrina é clara quanto ao delineamento do lugar e da função do Juiz das Garantias, valendo destacar, dentre outros, o trabalho de Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi [El ‘Juez de Garantías’ y el sistema penal: (Re)planteamientos sócio-criminológicos hacia la (re)significación de los desafíos del poder Judicial frente a la política criminal brasileña. Florianópolis: Empório do Direito, 2017] e Danielle Nogueira Mota Comar [Imparcialidade e Juiz das Garantias. Belo Horizonte: D’Plácido, 2022].

O escopo será o de ajustar o Sistema Processual Penal à orientação dominante na América Latina e no mundo Ocidental quanto à cisão funcional entre o exercício das funções relacionadas à Reserva de Jurisdição das Etapas de Investigação e de Julgamento. Embora já tenhamos assumido a Estrutura Acusatória, ainda nos falta integrar os consectários da Estrutura Acusatória, consistentes na assunção da Oralidade [superação das formas escritas]; Protagonismo das Partes [atividade probatória da acusação e da defesa]; da Imediação [prova produzida perante autoridade judiciária: direta ou diferida]; do Contraditório Significativo, Ampla Defesa e Construção Participativa do Provimento Judicial. [GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2014; MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de; GONZÁLEZ POSTIGO, Leonel; NUNES DA SILVEIRA, Marco Aurélio; PAULA, Leonardo Costa de. Reflexiones brasileñas sobre la reforma procesal penal en Uruguay: Hacia la Justicia penal acusatoria en Brasil. Curitiba; Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2019].

Décio Alonso Gomes [Prova e imediação no processo penal. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 243] explicita a extensão do Princípio da Imediação:

“Quanto ao seu conteúdo princípio da imediação predetermina a situação e atitude processual do juiz competente para conhecer da causa, ou de uma concreta fase ou incidente, diante dos sujeitos contendores e dos elementos que vão servir para formar sua convicção, toda vez que impõe ao julgador a obrigação de encontrar-se em conexão direta e em unidade espaço-temporal com eles”.

Embora a doutrina e o Supremo Tribunal Federal declarem reiteradamente o desenho acusatório do Processo Penal brasileiro em face da Constituição e dos Tratados de Direitos Humanos [STF, HC 188.888, Min. Celso de Mello], a introdução do art. 3º-A, no corpo do Processo Penal deve implicar não somente a criação do Juiz das Garantias, mas principalmente a alteração substancial do “formato do procedimento”, com o abandono da prevalência do formato “escrito” em prol do “oral”, sob a “imediação” do órgão jurisdicional.

Abandona-se o formato dos atos escritos para assumir as audiências como o centro de gravidade do Processo Penal, momento em que as partes poderão ofertar documentos, produzir provas, sem a constante juntada de documentos, perícias e, principalmente do produto da Etapa de Investigação Criminal.

Logo, os incidentes serão documentados o mínimo possível, abrindo-se espaço à construção da Teoria do Caso oralmente, fazendo preponderar o contraditório entre as partes, sem a referência incessante aos autos. Em consequência, as partes preparam o julgamento oral, sem que o julgador estude previamente os autos, nem leia o que fora produzido anteriormente na Etapa de Investigação Criminal. Pode parecer contraintuitivo, mas o estudo prévio, neste caso, é ruim. E é ruim porque representará porta aberta ao viés confirmatório. É justamente o ponto em que se preserva a imparcialidade [objetiva, subjetiva e cognitiva]. No lugar do estudo prévio dos autos do processo, o que se espera do juiz é que se mantenha atento ao que é produzido diante dos seus olhos, bem próximo aos seus ouvidos. A postura é antes de humildade e modéstia epistêmica, e não de soberba daquele que acha que “já sabe de tudo”. A disposição para ver e ouvir ambos os lados. Até porque, pela própria estrutura do procedimento, só depois disso é que estará em condições de decidir.

Além de eleger o Princípio da Oralidade como o centro de gravidade das deliberações, há também o compromisso de se evitar ao máximo as peças escritas até o encerramento do julgamento:

“A criação do Juiz das Garantias implica repensar a estrutura do sistema processual penal, de cariz acusatório [CPP, art. 3º-A], não apenas pela imposição de funções diferenciadas [Juiz das Garantias e Juiz de Julgamento], mas do modo de funcionamento de todo o processo penal. A inserção da figura do Juiz das Garantias [art. 3º, B, C, D e E] se inscreve na democratização do processo porque opera a cisão funcional entre os momentos de investigação e julgamento, típico da estrutura acusatória [CPP, art. 3º-A].

“Funções Distintas e Garantia de Imparcialidade: A separação, sem comunicação ostensiva entre as fases procedimentais, modifica o modo como se prepara o julgamento, já que não se trata da mera modificação do personagem que conduz o processo e sim porque o Juiz do Julgamento somente recebe o sumário da primeira fase e não os autos na totalidade, os quais deverão permanecer acautelado no Juiz das Garantias [CPP, art. 3-B, § 3º], com acesso às partes [CPP, art. 3-B, §4º], acabando-se com o uso manipulado de declarações da fase de investigação [só valerá e poderá ser valorado o que for produzido oralmente perante o Juiz de Julgamento]. Abandona-se o procedimento escrito/inquisitório em nome da oralidade e da imediação que deverão presidir os pedidos, normalmente em audiências presenciais ou por videoconferência [exceção justificada]. [...] sem que o Juiz de Julgamento tenha acesso a todo caderno processual [autos] justamente para evitar a contaminação [CPP, art. 3-B, § 3º], mantendo-se a imparcialidade objetiva, subjetiva e cognitiva. Na fase de investigação e recebimento da acusação atuará o Juiz das Garantias, enquanto na fase de julgamento, o Juiz de Julgamento não receberá, nem se contaminará pelo produzido na fase anterior, já que somente as provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas e antecipação de provas serão encaminhadas”. (MORAIS DA ROSA, Alexandre. [Guia do Processo Penal Estratégico. Florianópolis: EMais, 2023, no prelo)

Por consequência, a declaração da Estrutura Acusatória demanda um realinhamento metodológico no formato dos procedimentos, contexto em que poderemos aprender muito com as práticas dos países latino-americanos quanto às objeções e às resistências de setores de Mentalidade Autoritária. Assim como não foi o Legislador de 2019 que inventou o Juiz das Garantias, também não seremos os primeiros a enfrentar os desafios da implementação.

O grande salto é que não se terá mais a lógica atual de “segundo os autos do processo”, justamente porque ele deixa de ser contínuo, a saber, não se transfere simplesmente os autos do Juiz das Garantias para o Juiz de Julgamento. Logo, rompe-se com o modelo de autos escritos e acumulativos de toda a Investigação Criminal, típicos da Estrutura Inquisitória, atualmente apensada à Ação Penal [porque o art. 12 do CPP será automaticamente revogado, por incompatível: “O inquérito policial acompanhará a denúncia ou queixa, sempre que servir de base a uma ou outra”.] Cindir as funções entre Juiz de Garantais e Juiz de Julgamento sem a radical separação de autos transforma a reforma em mera falácia garantista [FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. São Paulo. RT, 2002]. Os autos do Juiz das Garantias ficam acautelados na secretaria [CPP, art. 3º-C, § 4º: “Fica assegurado às partes o amplo acesso aos autos acautelados na secretaria do juízo das garantias”], devendo, por oportunidade da Audiência de Instrução e Julgamento cada uma das partes levar o material probatório a ser apresentado, sem juntada aos autos.  

É verdade que a instância recursal deverá ter ciência do que foi acolhido/rejeitado, motivo pelo qual depois de finalizado o julgamento, as provas referidas deverão ser entranhadas nos autos de julgamento, acompanhadas da gravação/reprodução da prova testemunhal. Mas isso não se confunde à tradicional prática de juntada anterior, nem serve de manipulação para aproveitamento abusivo de elementos do Juiz das Garantias.

O que estamos a dizer aqui pode ser sintetizado da seguinte forma: toda a discussão acerca da eficácia da Estrutura Acusatória e do Juiz das Garantias pressupõe genuíno compromisso de romper com o formato por meio do qual tradicionalmente sempre se deu o processamento do caso penal.  Do contrário, será uma reforma “gatopardista” (em referência ao Il Gattopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa). O romance de 1958 retratou a decadência da nobreza siciliana, presenteando-nos a célebre frase “se quisermos que tudo continue como está é preciso que tudo mude”. Ali, o personagem do aristocrata Tancredi fazia referência à ameaça do advento da República; a forma de evitar alterações efetivas que tocassem em seus privilégios seria curvando-se às etiquetas recém-chegadas, preenchendo-as, contudo, do mesmo conteúdo de sempre. Trazendo para o nosso contexto jurídico-penal, a reforma gatopardista consistiria na concessão a simples mudanças no texto normativo para que tudo pudesse seguir exatamente como sempre foi.

Neste sentido, não cabe mais a mera declaração de que estamos sob uma Estrutura Acusatória. Postura como essa seria equivalente a conservar intacta a Alma Operacional Inquisitória. Já é tempo de superar a fraude de rótulos e de demonstrar que, enfim, estamos além das promessas vazias. Eis o desafio.

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Colunistas

Alexandre Morais da Rosa é doutor em Direito pela UFPR. Professor do Programa de graduação, mestrado e doutorado da Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI. Juiz de Direito do TJ/SC. Membro do Comitê de Governança de Tecnologia da Informação - CGOVTI no âmbito do TJSC (2022-2024). Membro Honorário da Associação Ibero Americana de Direito e Inteligência Artificial/AID-IA. Coordenador do Grupo de Pesquisa SpinLawLab (CNPq UNIVALI).

Aury Lopes Jr. é doutor em Direito Processual Penal pela Universidad Complutense de Madrid. Professor Titular no Programa de pós-graduação em Ciências Criminais da PUC/RS. Membro do Escritório Aury Lopes Jr Advogados, com sede em Porto Alegre e Brasília. Autor da Editora SaraivaJur.

Jacinto Nelson de Miranda Coutinho é professor Titular de Direito Processual Penal da UFPR (aposentado). Professor do programa de pós-graduação em Ciências Criminais da PUC/RS. Professor do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade Damas, Recife. Professor do programa de pós-graduação em Direito da UNIVEL, Cascavel. Especialista em Filosofia do Direito (PUC/PR), mestre (UFPR), doutor (Università degli Studi di Roma "La Sapienza"). Presidente de Honra do Observatório da Mentalidade Inquisitória. Procurador do Estado do Paraná (aposentado). Advogado. Membro da Comissão de Juristas do Senado Federal que elaborou o anteprojeto de Reforma Global do CPP, hoje Projeto 156/2009-PLS.

Janaina Matida é professora de Direito da Universidad Alberto Hurtado (Chile). Doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha). Assessora de ministro do STJ. Co-coordenadora da Rede Latino-americana de Epistemologia Jurídica.

Marcella Mascarenhas Nardelli é professora de Direito Processual Penal da Universidade Federal de Juiz de Fora/MG. Doutora em Direito Processual pela UERJ. Advogada. Membro da Rede Latino-americana de Epistemologia Jurídica.

Rachel Herdy é professora associada da Faculdade de Direito da Universidad Adolfo Ibáñez (UAI), Chile. Doutora em Sociologia pela UERJ. Membro da Rede Latinoamericana de Epistemologia Jurídica.