A credibilidade atribuída a peritos, principalmente àqueles que atuam de forma oficial no sistema de justiça criminal, pode carecer de justificação. Isso ocorreria, por exemplo, nos casos de condenações exclusivamente fundamentadas em laudos periciais baseados em teorias ou técnicas de baixa fiabilidade científica. Outro exemplo seriam as condenações exclusivamente fundamentadas em laudos periciais cujas conclusões tenham sido emitidas de forma categórica, quando na verdade os peritos deveriam ter empregado uma linguagem probabilística baseada na lógica das incertezas.
O excesso de credibilidade que juízes ou jurados atribuem a peritos criminais – seja qual for a sua razão – é um fenômeno especialmente preocupante, pois muitas críticas vêm sendo direcionadas à fiabilidade das ciências forenses nas últimas décadas. Em 2009, por exemplo, foi publicado um pioneiro e importante relatório, pela Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, sobre o estado de diferentes práticas e técnicas das ciências forenses. O relatório concluiu que existe uma grande variedade no grau de fiabilidade de diferentes práticas científicas que auxiliam os julgadores nos tribunais, e que falta a todas elas a previsão de protocolos de atuação pericial, treinamento contínuo dos peritos e mecanismos de certificação.
Outros relatórios se seguiram, tanto dentro como fora dos Estados Unidos, que se preocupam com a qualidade epistêmica de suas decisões judiciais. Lamentavelmente, pelo que se viu no relatório produzido em 2022 pelo nosso Conselho Nacional de Justiça, "Perícia criminal para magistrados", as autoridades brasileiras não só parecem ignorar os relatórios estrangeiros, amplamente discutidos na literatura, como demonstra pouca preocupação com a fiabilidade de técnicas já descartadas como cientificamente infundadas – este é caso das marcas de mordedura.
O relatório da Academia Nacional de Ciências mencionado acima foi produzido em resposta a uma série de erros em investigações e condenações. Um dos casos com maior repercussão naquela época foi a prisão do advogado norte-americano Brandon Mayfield, cuja impressão digital havia sido identificada, de forma categórica, como a fonte do vestígio encontrado em uma bolsa plástica contendo detonadores em uma localidade próxima ao ataque terrorista que ocorreu nos trens de Madrid no ano de 2004. Os exames comparativos da marca de impressão digital que levaram à prisão de Mayfield haviam sido produzidos por três peritos do FBI, e depois confirmado por um expert independente.
O Departamento de Justiça dos Estados Unidos, no relatório que buscou explicações para o erro cometido na identificação de Mayfield, reconhece que os peritos podem ter sido enviesados por informações contextuais irrelevantes à interpretação da fonte do vestígio. Munidos da informação de que Mayfield havia se casado com uma mulher egípcia, se convertido à religião islâmica e atuado como advogado de um imigrante muçulmano condenado por terrorismo, os peritos foram levados a concluir que ele era mesmo a fonte do vestígio encontrado. Contudo, segundo o relatório do Departamento de Justiça, isso teria ocorrido somente na fase de revisão das conclusões alcançadas, pois no momento inicial da análise comparativa, os peritos não possuíam tal informação – o FBI insiste que as semelhanças entre o vestígio e a impressão digital de Mayfield eram grandes para justificar a sua identificação e investigação.
Independentemente da discussão sobre se os peritos do FBI estavam ou não enviesados pela informação a respeito da religião de Mayfield, é interessante notar que o próprio Departamento de Justiça dos Estados Unidos reconheceu o excesso de credibilidade atribuído aos seus peritos. "A religião de Mayfield não foi a única ou primeira causa da falha do FBI em questionar a identificação errônea inicial e detectar o seu erro. Os fatores primários foram as similaridades entre as impressões e o excesso de confiança do laboratório na superioridade de seus examinadores" (p. 12).
Este caso é um bom exemplo do fenômeno que aqui estamos discutindo. As palavras dos peritos receberam excessiva credibilidade quando comparada com a palavra do próprio suspeito e, sobretudo, com as demais informações existentes no caso: Mayfield não tinha passaporte válido; não havia saído do território estadunidense; e sua impressão não fora identificada como um possível match por parte das autoridades espanholas.
A credibilidade injustificada atribuída a experts em geral foi recentemente classificada pela epistemóloga social Jennifer Lackey como um tipo de injustiça epistêmica testemunhal1. Este tipo de injustiça epistêmica assume uma perspectiva mais ampla em relação aos fatores identitários que provocam o erro na atribuição (ou melhor, na distribuição) da credibilidade em contextos discursivos. Os exemplos clássicos oferecidos por Miranda Fricker envolvem fatores identitários como raça, gênero e status social. Contudo, o fator que explicaria a injustiça testemunhal neste caso é simplesmente o fato de que alguém é considerado uma autoridade epistêmica. De fato, este mesmo tipo de injustiça testemunhal por excesso de credibilidade pode ser visto também nos casos de inflação da fala de policiais, que igualmente gozam de uma posição de "autoridade".
Segundo Lackey, a palavra do perito é inflacionada pelo simples fato de que se trata de alguém com as respectivas credenciais: "aos expertos se lhes outorga um excesso de credibilidade injustificado em virtude do fato mesmo de que são tomados por expertos" (p. 155). O exemplo que ela nos oferece é o famoso caso da Síndrome do bebê sacudido, que gerou um padrão de julgamentos condenatórios nos Estados Unidos. Os sintomas de sangramento em membranas externas ao cérebro, rupturas de vasos no cérebro e na retina e inchaço do crânio tinham como causa única o abuso infantil – concluía-se sempre que o bebê fora violentamente sacudido.
Mesmo quando a ciência demonstrou que fatores não traumáticos poderiam levar à ocorrência de sintomas idênticos no bebê, como a presença de alguma infecção ou a constatação de que o bebê possuía a condição genética de anemia falciforme, os testemunhos dos experts oferecidos pelo ministério público eram sobrevalorizados. Como escreveu Lackey (p. 156) , "não importa quanta evidência esteja do lado da defesa – a ré pode manter consistente e firmemente sua inocência, pode ter anos de trabalho com crianças sem história ou incidentes de violência, pode haver uma infinidade de testemunhas de caráter, pode não haver sinal algum de trauma no bebê supostamente abalado e assim por diante –, esta é totalmente devastada pelo testemunho de um único 'especialista'".
A injustiça testemunhal distributiva ocorre quando, devido a preconceitos de um ouvinte, "a credibilidade é distribuída de forma inapropriada entre membros de uma comunidade ou contexto conversacional" (Lackey, p. 157). No contexto judicial, o juiz ou o tribunal do júri, como ouvintes e destinatários dos meios de prova produzidos, atribuem um excesso de credibilidade a certas autoridades, como policiais ou peritos oficiais, em razão de estereótipos que operam de forma positiva e sem calibrar adequadamente o seu juízo em relação às demais informações que constam do conjunto probatório.
A ideia de injustiça testemunhal por excesso de credibilidade introduz uma dimensão relacional fundamental para a análise das transações epistêmicas que ocorrem no contexto judicial. O processo é um ambiente conflituoso por excelência, pois as partes oferecem teses em franca oposição. Ainda que se atribua a credibilidade devida a uma das partes – por exemplo, ainda que a fala do réu não seja deflacionada ou receba algum descrédito em razão de preconceitos identitários –, o excesso de credibilidade que se possa atribuir à fala de outro sujeito que com ele se relacione de forma conflituosa neste mesmo contexto discursivo provocará um dano epistêmico. Como afirma Lackey, o excesso de credibilidade que se dá ao testemunho de alguém pode ser visto como o equivalente funcional do déficit de credibilidade que se dá ao testemunho de outrem. Segundo esta perspectiva, a credibilidade é um bem social de natureza finita, que pode gerar injustiças em razão de sua má distribuição na comunidade. E talvez o contexto judicial seja um cenário perfeito para pensar em situações deste tipo.
As injustiças testemunhais foram pensadas originalmente como um tipo de déficit de credibilidade. O ouvinte deflaciona o testemunho de um falante em razão de preconceitos identitários: porque o falante é negro, porque é mulher, porque é transexual, porque é morador da periferia ou de comunidade carente etc. Fatores identitários, como raça e gênero, costumam explicar os casos de deflação do testemunho de um falante. Estereótipos negativos que afetam certas categorias sociais funcionam como preconceitos.
Mas e quando a fala de alguém é inflacionada? E se a pessoa recebe um excesso de credibilidade justamente em razão de um estereótipo? Pensemos no caso de uma interlocução entre uma autoridade, de um lado, e um morador da favela, de outro. Se a autoridade supõe que o morador da favela, por esta única razão, é portador de conhecimentos sobre certas práticas criminosas, como tráfico de drogas e armas, ele atribuirá a ele um injusto excesso de credibilidade.
No Brasil, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF) já se manifestaram sobre a ocorrência de injustiças epistêmicas no processo penal2. Este reconhecimento judicial de um tipo de injustiça cuja discussão até então não se estendia para além das fronteiras mais avançados da academia é algo que não parece encontrar paralelo no mundo e merece nossa atenção. Pelo menos até onde temos conhecimento, as injustiças epistêmicas não parecem ter atraído a atenção de magistrados de nenhum outro sistema jurídico. O Brasil, portanto, está na vanguarda de um movimento importante de reconhecimento dos danos que pessoas oprimidas sofrem na condição de agentes epistêmicos – isto é, como produtores de conhecimento e transmissores de informação, sobre si próprios e sobre o mundo exterior.
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1 O termo "testemunhal" ou "testemunho" é empregado no sentido epistemológio, o qual possui uma denotação mais ampla que a figura jurídica do testemunho.
2 Ver, inter alia, STJ, AgResp 1.940.381/AL, Relator Ministro Ribeiro Dantas; STF, Ag. Reg. no HC 224.294/PR, Relator Ministro Gilmar Mendes.